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terça-feira, maio 31, 2005

MARXISMO E EXISTENCIALISMO 

Bastantes anos após a publicação de "L`Être et le Néant", aparece nas montras das livrarias novo livro de Jean-Paul Sartre dedicado a problemas filosóficos. Trata-se do tomo I da "Critique de la Raison Dialectique", o qual, inserindo também, de começo, o ensaio "Question de Méthode", eleva-se às bonitas proporções de um volume de 753 páginas impresso em caracteres minúsculos. Que nos reservará o tomo II, meu Deus?!
"Question de Méthode" denominou-se, primitivamente, "Existencialisme et Marxisme", quando editada, em 1957, nas colunas duma revista polaca. Sartre modificou-lhe, depois, o título e compreende-se porquê. Por um lado, repugnava-lhe falar em existencialismo como se se tratasse já dum sistema fechado, acabado — e podia lá julgar-se o existencialismo algo de acabado enquanto ele Sartre, seu pontífice máximo, estivesse ainda em pleno labor intelectual?
Por outro lado, o estudo aludido possuía, de facto, um puro aspecto metodológico, não se adaptando ao seu limitado conteúdo uma epígrafe que abrangia marxismo e existencialismo, na totalidade, sem distinções.
Simplesmente, segundo cremos, para a obra imensa e exaustiva de que "Question de Méthode" é agora, um simples prólogo, já tal epígrafe tem perfeito cabimento, tanto mais que, embora isso pese a Sartre, considerar o existencialismo um sistema concluído e liquidado possui a melhor das justificações. Encontra-se ela, precisamente, na referida obra, pois dominada, por inteiro, pela fascinação de Marx, visa apenas, modestamente, arranjar um pequeno altar na igreja comunista para as primitivas teses do sartrismo.
Assim, é sob a rubrica "Marxismo e Existencialismo" que nos vamos ocupar da "Critique de la Raison Dialectique". Supomos essa rubrica o mais adequada possível, até porque na presente "Critique", a crítica quase só está no nome. Conquanto Sartre invoque o exemplo de Kant manifesta sempre muito pouco senso crítico (no sentido kantiano ou em qualquer outro), conforme passaremos a mostrar o mais claramente que pudermos e soubermos.
Comecemos por notar que Jean Paul-Sartre, apesar de ter colocado o ensaio "Question de Méthode" no início do volume não deixa de reconhecer-lhe um carácter secundário e derivado. «Dos dois trabalhos (...) logicamente o segundo» — a "Critique de la Raison Dialectique" — «devia preceder o primeiro, cujos fundamentos procura estabelecer», escreve o autor de "La Putain Respectueuse".
Nestas circunstâncias, não deve causar estranheza que, cingindo-nos ao básico e ao essencial, não tomemos para objecto das nossas considerações a tão citada "Question de Méthode" e nos restrinjamos, exclusivamente, às congeminações sartrianas em torno da razão dialéctica.
Determinar «a validade e os limites» desta última são os propósitos que o fenomenólogo de "L`Imaginaire" começa por confessar, logo no prefácio.
Contudo uma série de obstáculos lhe surge, imediatamente, a dificultar a ambiciosa tarefa. Na verdade, a razão dialéctica a que aludia não era a de Hegel, onde havia «identidade de ser, fazer e saber», era a de Marx para o qual «a existência material é irredutível ao conhecimento, (...) a praxis ultrapassa com a sua eficácia real o saber». A Marx com efeito é que Sartre diz seguir e proclama inultrapassável, falando mesmo num «acordo de princípio com o materialismo dialéctico».
Torna-se evidente, pois, que o problema é de árdua resolução. Se a realidade é dialéctica e se ultrapassa de longe o conhecimento, como obter um autêntico conhecimento dialéctico, uma razão que expresse a dialéctica mesma das coisas? De que forma a dialéctica real origina a dialéctica cognoscitiva? De que maneira o todo aparecerá reproduzido, por completo, numa das suas partes — o conhecimento — que com ele não coincide e que o não recobre originariamene? Jean-Paul-Sarte repudia a habitual atitude dos comentadores e sequazes de Marx que reduzem o saber a mero facto conhecido, descrevendo a sua génese e estrutura, tal qual estivessem a tratar duma coisa, dum objecto, entre as restantes coisas e objectos. Nessa altura, observa com justeza, a conhecer esse saber que se pressupõe, sem provas, verdadeiro e completamente aderente ao conjunto do real. Cai-se assim em pleno dogmatismo. E em pleno idealismo, igualmente, visto que se fez desaparecer a desproporção e o desnível entre o ser e o saber.
Impõe-se, em consequência, que se mantenha o primado (e a distinção estrutural) do real sobre o conhecimento e, ainda, que se não tente reduzir o conhecimento ao real objectivo (sem olvidar que ambos se integram no ser material).
Pois bem! Dentro destes limites, a prova da dialéctica material tem de consistir num certo número da própria dialéctica material, num aparecer, no domínio cognoscitivo, da dialéctica, da certeza mesma da dialéctica.
Ou seja, de acordo com Sartre: «A única possibilidade de que uma dialéctica exista é ela mesma dialéctica... A dialéctica como racionalidade devia redescobrir-se na experiência directa e quotidiana, a um tempo como ligação objectiva dos factos e método para conhecer e fixar essa ligação». Todavia não basta qualquer experiência. É preciso encontrar «uma experiência apodíctica no mundo concreto da história... Se a razão dialéctica deve ser possível, se devemos fundamentá-la enquanto racionalidade da praxis, se devemos criticá-la, a seguir, é preciso realizar por nós mesmos a experiência situada da sua apodicticidade».
E por que experimentação esperamos manifestar e provar a realidade do processo dialéctico? Quais serão os nossos instrumentos? Qual o ponto de aplicação destes? Qual será a validade da prova?
Para responder a semelhantes perguntas dispomos dum fio condutor o qual não é senão a exigência intrínseca do objecto... Não se trata de constatar a presença da razão dialéctica mas a de «experimentar através dela a sua inteligibilidade, sem descoberta empírica».
Numa palavra: ficaremos perante certa experiência, uma experiência do evidente, do que é indiscutível logicamente, experiência que deriva da realidade da dialéctica material («a experiência da dialéctica é em si dialéctica», ensina Sartre) e que, por isso, só aparece em determinada altura do desenrolar duma tal dialéctica, não sendo admissível e concebível senão excepto numa época precisa (pág. 141).
Antes de tudo o mais urge, portanto, sentir, apreender essa experiência decisiva. E não há dúvida que Sartre, esforçadamente, em centenas de páginas da sua obra não faz outra coisa senão procurar introduzir-nos e desvendar-nos o âmago da transcendente facticidade que nos daria a certeza da razão dialéctica, antecedente necessário da sua crítica (aliás ausente por completo deste tomo I de que nos ocupamos).
Pensamos ser inútil sublinhar que a possibilidade da experiência apodictícia da razão dialéctica é o ponto crucial do livro de Sartre. Tudo o resto depende da sua forçosa inexistência ou da sua presumível existência.
Pela nossa parte não hesitamos em sustentar que tal experiência não passa duma imaginação sem base sólida, dum mito absurdo.
Note-se, para começar, que, aceitando-se o princípio da irredutibilidade do real ao saber, quanto este último exibir como descrição exacta e segura daquele não pode merecer confiança e tem de passar por ilusão subjectiva.
Depois, acontece que a experiência apodíctica mencionada por Sartre, a experiência da dialéctica material surgida na história e fruto da mesma dialéctica material, pressupõe já que o conhecimento é uma resultante dessa dialéctica material e histórica, quer dizer, pressupõe, já, a verdade da dialéctica materialista. E no entanto não é a referida verdade que depende da experiência da dialéctica material, que é um fruto dela?
Numa palavra: o instrumento probatório da dialéctica (a experiência dialéctica) é concebido em função da dialéctica que pretende provar. Se não aceitarmos, previamente, a última nunca aceitaremos que é possível aparecer uma experiência fundamental, derivada de condições histórico-materiais.
Mais ainda. Sartre reconhece que «quaisquer que sejam as ligações constatadas na experiência não serão nunca em número suficiente para fundar um materialismo dialéctico — uma extrapolação de tal grandeza, isto é, infinitamente infinita — é radicalmente distinta da indução científica... os êxitos práticos não bastam: embora as afirmações da dialéctica fossem indefinidamente confirmadas pelos resultados da pesquisa, tal confirmação permanente não permitiria sair da contingência empírica».
Com que direito, então, alicerça a certeza da razão dialéctica numa experiência? É indiscutível que Sartre repudia a semelhança entre a experiência de que fala e as intuições empíricas e algumas experiências científicas. «A experiência dialéctica, afirma, é... dialéctica, quer dizer, prossegue-se e organiza-se em todos os planos... é regressiva porque parte do vivido para encontrar pouco a pouco as estruturas completas da praxis».
Partir do vivido para as estruturas completas da praxis é, ao que parece, uma indução científica e nós já vimos que Sartre acha a indução científica incapaz de nos confirmar a dialéctica. Mas admitamos que não seja indução, admitamos que seja experimentação. Continua a não se compreender porque misterioso processo esse regresso a partir do vivido nos pode dar a universalidade da dialéctica. Pois Sartre não sustenta que uma confirmação experimental indefinida da dialéctica não a validava?
Aliás, frise-se que, em "Question de Méthode", ele defende o que denomina o método progressivo-regressivo, isto é, arrancar dos condicionamentos gerais para o individual e, depois, através deste, iluminar, corrigir, compreender os citados condicionamentos (é um belo círculo vicioso; adiante, porém). Simplesmente sucede que, na determinação da experiência apodíctica, Sartre invoca o conjunto do condicionalismo histórico que a localiza numa época, e, ao mesmo tempo, sustenta a necessidade de se remontar regressivamente do início da experiência dialéctica à totalidade das suas condições. Resumindo: para situar a experiência dialéctica aplica o método progressivo-regressivo. Contudo, tal método, segundo Sartre proclama (a "Critique de la Raison Dialectique" é logicamente o fundamento de "Question de Méthode") só se justifica se a dialéctica for verdadeira. O dialelo é, assim, bem nítido.
Finalmente, note-se que Jean-Paul Sartre pretende fazer a crítica da experiência dialéctica e, simultaneamente, considera-a uma experiência apodíctica, com intrínseca inteligibilidade. E dois comentário se impõem. Se a experiência dialéctica é dotada de intrínseca inteligibilidade para que é preciso criticá-la? E como criticá-la, à experiência dialéctica, se nos mostra apodicticamente o cerne, a essência do real? Onde encontrar um ponto de vista superior que alicerce a crítica?
Kant criticou a razão pura pondo-a qual questão a resolver (investigação da possibilidade dos juízos sintéticos, a priori). Se, porém, um problema se der por bem resolvido, criticá-lo ou significa aceitar-lhe a formulação e a solução e integrá-la num plano superior e diverso, ou não tem sentido. Criticar a razão dialéctica seria, portanto, passar a um plano superior a esta. Ora a experiência apodíctica mostra-nos que tal razão representa o todo, que é insuperável. Logo, criticar a razão dialéctica ou envolve a negação da experiência que se aceita e donde se parte, o que é absurdo, ou nada é, nada tem de crítico e sério, e é outro absurdo.
E, agora, salientemos o seguinte, de maior importância ainda. Sartre fala-nos numa experiência apodíctica, numa experiência, fundada por si, da razão dialéctica. Nós não vislumbramos, no entanto, que formule sequer o problema da legitimidade, da razoabilidade de semelhante experiência. E se a crítica possui um significado útil é esse mesmo. O pensador de "Situations" pretende que Kant buscou, apenas, as condições da experiência, partindo já da existência inequívoca desta. Puro equívoco. Kant procurou averiguar como era admissível a experiência, o que a justificava, o que nela havia de universal. Se alguém aceita, em bloco, a presença duma experiência — embora duma experiência de certo tipo especial — e daí parte para o que denomina crítica, esse alguém é Sartre. Ele não discute a validade da experiência que nos propõe, não indaga se se concebe que exista, não a enquadra numa análise do valor da experiência em geral, etc. Nada disso. Unicamente procura situá-la, indicá-la. O tema da sua intrínseca admissibilidade não chega sequer a abordá-lo. No fundo, a sua crítica é uma dogmática, uma aceitação do fáctico, sem discussões.
Não o estranhemos. Já em "L`Être et le Néant" Sartre descobria o «en soi», esfera brutal, opaca, do ser baseando-se no «pour soi», na consciência, que era a negação do primeiro, sem explicar como, logicamente, um e outro podiam entrar em contacto e subsistir na sua recíproca exclusão. O «pour soi» declarava-o facticidade e com isso julgava tudo dito. Traçava bastantes análises subtis do «en soi» e do «pour soi» em que o seu temperamento de homem de letras dava largas às suas tendências. Mas reflexões sobre a relação do «pour soi» como o «en soi», qual problema originário, ninguém lhas via. A consciência parecia-lhe um dado e nenhum esforço fazia para se elevar à raiz desse dado, ao ser dado, ao que se situe, radicalmente, no plano do inultrapassável, do que é, em todo o sentido, princípio.
De resto, não é só o culto do fáctico, do dado, que nós vemos passar de "L`Être et le Néant" para a "Critique de la Raison Dialectique". O materialismo actualmente arvorado por Sartre fora já argutamente denunciado por Gabriel Marcel na análise ao primeiro destes volumes, inserta em "Homo Viator". É que o «en soi», na sua espessura e opacidade irracional, aparecia como algo de seguro e firme perante a consciência, o «pour soi», reduzido a pura negatividade daquele, a uma espécie de parasitismo. Sem dúvida, Sartre tomava o «pour soi» para ponto de partida e a sua inteligência ainda o invoca hoje em dia (cf. pág. 142). O primado que, presentemente, atribui ao «en soi», à matéria (com algumas hesitações perfidamente insinuadas, cf. pág. 166, em nota) é menos fruto das suas preferências mentais do que da fascinação sentimental que o comunismo e o seu profeta Marx exercem sobre os pequenos burgueses da esquerda: snobs, desconhecedores de outros ideários excepto o da revolução e cheios de veneração religiosa pelo poderio das massas e da eficácia prática do partido (de cuja disciplina, aliás, se mantêm sempre prudentemente afastados).
Não é possível negar a Jean-Paul Sartre conhecimento das questões filosóficas e vigor especulativo superior ao de alguns profissionais da filosofia, conquanto o demónio da sua prodigiosa fecundidade literária o possua com frequência e leve a infindáveis digressões e dissertações em torno a problemas de fundo que não chega a abordar directamente.
Seja como for, Sartre, talvez abraçando, ainda, no íntimo, as ideias de Husserl e Heidegger que absorveu (nem sempre fielmente) na sua juventude, pretende, agora, com o seu novo livro, alinhar e enfileirar nas correntes marxistas, imaginando, por certo, estar a desferir golpes tremendos no Fascismo e na reacção.
Tudo quanto conseguiu, porém, foi escrever uma obra grande, não uma grande obra.
António José de Brito
(In Praça Nova, n.º 3, págs. 1/5, Setembro de 1960)

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segunda-feira, maio 30, 2005

AMÂNDIO CÉSAR 

Pouco a pouco a solidão me vai rodeando e uma cortina de isolamento lentamente me cerca. Um a um desaparecem amigos de sempre, impiedosamente ceifados pela morte.
Não há muitos dias chegou até mim, de chofre a notícia do falecimento de Amândio César. Desceu sobre o meu ânimo um espesso sentimento de melancolia, ao passo que, simultaneamente, um turbilhão de imagens me afluía à mente.
Vi-me em Coimbra, primeirista de Direito, bisonho e tímido, entrando na Brasileira. Monárquico então (e monárquico continuo a ser, mas monárquico a sério, e não monárquico-democrático à P. P. M. ou à «Nova Monarquia»), sentava-me junto dos correligionários mais velhos que, caridosamente, me iniciavam no mundo dos boatos, da má língua e das querelas das ideias. Um pouco mais adiante, estava a mesa dos intelectuais que eu contemplava com invejoso respeito. Entre eles destacava-se Amândio César cuja voz tonitruante chegava até nós. Foi o meu primeiro contacto com ele, indirecto e à distância.
Não tardou, todavia, que Amândio César, por vezes, abancasse connosco e eu tivesse ocasião de apreciar a sua imensa vitalidade, a sua truculência, o seu humorismo irreverente. Claro que não fraternizámos logo. Eu retraía-me, acanhado, perante quem já tinha livros publicados, conhecia pessoalmente escritores e artistas de nomeada e proferia juízos acertados sobre individualidades a quem eu, na minha ingenuidade, admirava ainda. Mas, insensivelmente, fomo-nos aproximando. Amândio César, com a sua espontânea simpatia por quem começava, encarou com benevolência as minhas primeiras tentativas doutrinárias (que acabaram por me conduzir à filosofia), eu principiei a experimentar a fascinação da sua personalidade excepcional, espécie de força da natureza, sempre em ebulição e desconhecedora de respeitos humanos.
Uma grande admiração nos era comum — a admiração por Alfredo Pimenta. Ambos aguardávamos, com impaciência, os seus últimos volumes e opúsculos e Amândio César, que se correspondia com o Mestre, dava-me notícia dos projectos e opiniões deste.
À recordação de Alfredo Pimenta nos mantivemos ambos fiéis, tendo Amândio César consagrado valiosos trabalhos à obra do historiador de "Idade Média".
E quando no centenário do seu nascimento se promoveu, no Colégio Pio XII, em Lisboa, uma modesta sessão de homenagem à memória de Alfredo Pimenta, lá nos encontramos, de novo, Amândio César e eu, lado a lado, juntamente com Caetano Beirão, Goulart Nogueira, Couto Viana, Rodrigo Emílio, mostrando, pela nossa presença, que «nem nos esquecíamos, nem nos arrependíamos».
Nos nossos tempos de estudante, tão longínquos, acompanhávamos, na mesma trincheira, com entusiasmo e calor, as polémicas veementes contra os pseudo-monárquicos do "Diário Nacional" ou os furiosos ataques, de estilo camiliano, que o ensaísta de "O Imperialismo Contemporâneo" desferia sobre a «Academia Portuguesa de História».
Até que chegou o final dos cursos. O convívio quase constante, as longas peregrinações da baixa para a alta, pelas ruas desertas na madrugada, falando de omne re scibili, tomaram termo definitivo. Regressei ao Porto. Amândio César, após uns anos em Braga, fixou-se definitivamente em Lisboa. Mergulhou aí na agitação do jornalismo sem deixar de cultivar afincadamente a poesia, o conto, a crítica. Para o julgar, nesse plano, não tenho qualquer espécie de autoridade. Aí sou o simples leitor comum. E como leitor comum apreciava grandemente Amândio César, pensando que só não recebeu o incenso e a mirra dedicados a outros, de muito menos valor, por não ser um homem de esquerda, um progressista inflamado. A meu gosto, merecem destaque especial os estudos consagrados à literatura brasileira, que mostram amplos conhecimentos e por momentos análises delicadas e agudas.
Nem sempre partilhei as posições de Amândio César, ou participei do seu entusiasmo por certos personagens. Os nossos interesses fundamentais, de resto, eram bastante diferenciados: ele primordialmente entregue às letras e eu, no meu canto, procurando sulcar os trilhos da especulação.
Respeitámo-nos, sempre, porém, e a nossa estima mútua nunca diminuiu. Aliás, nos grandes momentos, Amândio César não deixava de vir a terreiro com atitudes desassombradas e dignificantes.
Assim sucedeu por altura da guerra em defesa da soberania portuguesa no Ultramar, a propósito da qual ele nos legou dois livros — um consagrado a Angola e outro à Guiné — com páginas magníficas que são o espelho de um firme nacionalista, ou seja, de um patriota de raiz.
E na grande catástrofe de Abril, Amândio César recusou-se a partilhar o banquete nauseabundo, sofrendo perseguições e agruras.
Na noite de 27 para 28 de Setembro de 1974, juntamente com Ruy Alvim, foi assaltado, ao atravessar a ponte sobre o Mondego, pelos delinquentes das barricadas que por meios violentos se procuravam opor à realização de uma manifestação, legalmente autorizada, ao Chefe de Estado, general Spínola. Este era um democrata e um abandonista de primeira água, mas assacavam-lhe, ao que parece, o terrível defeito de querer entregar as províncias ultramarinas de além-mar à influência americana e não à influência soviética (ao que havíamos chegado). Daí que não tivesse direito a manifestações que firmassem a sua quebrantada autoridade. Amândio César e Ruy Alvim (e uma criança filha deste) seguiam ambos para Lisboa perfeitamente alheios à apoteose spinolista. Reconhecidos e identificados, foram detidos por uma multidão à margem da lei e só por muita sorte conseguiram escapar.
Ao fim da manhã de 28 chegaram a minha casa, Amândio incólume graças a Deus, Ruy Alvim com pensos e adesivos, seu filho, que fora traiçoeiramente separado do pai para ser «interrogado», nervosíssimo, aos vómitos, tendo de ingerir comprimidos de Valium. Contaram-me os acontecimentos, ao mesmo tempo, que nos iam chegando notícias das arbitrárias prisões de velhos e queridos camaradas.
Amândio César e Ruy Alvim seguiram para Braga. Nessa noite transpuseram o Minho a caminho do exílio.
Amândio, primeiro, esteve em Espanha, donde me escreveu uma pungente carta de despedida, ao resolver partir para o Brasil. Não lhe foi este propício, infelizmente, pelo que teve de regressar, após o 25 de Novembro.
Na chegada ofereci-lhe um exemplar dos meus "Diálogos de Doutrina Anti-Democrática", que eu pusera à venda em pleno gonçalvismo.
Amândio César, em agradecimento, enviou-me um poema que me era dedicado, e que conservo com orgulho.
Fomo-nos encontrando cada vez mais raramente, afastados pelos afazeres prementes da luta pela sobrevivência, no mar de lama (para não lhe chamar outra coisa) em que a sublevação dos cravos precipitou esta terra que outrora foi uma nação.
Estivemos no primeiro almoço celebrando o início da Revolução Nacional, a 28 de Maio, e no jantar em idêntica data do ano seguinte, num e noutro tendo Amândio César proferido extraordinários discursos.
E, como já disse, participámos nas comemorações do centenário do nascimento de Alfredo Pimenta.
De longe a longe, trocávamos correspondência (sou muito preguiçoso em epistolografia). Até que, de repente, veio a doença que o vitimou e lhe diminuiu consideravelmente as capacidades. Visitei-o nas minhas rápidas e sobrecarregadas idas à capital numa única ocasião. Pesa-me na consciência não lhe ter aparecido com maior assiduidade, mas surgiam sempre contratempos nas deslocações a Lisboa que me impediam de o fazer. Mas já não há próxima vez, porque o irreparável deu-se.
Com Amândio César, foi como se tivesse desaparecido uma parte de mim mesmo, uma parte da minha juventude, daquilo que fui nos anos de 45, quando me sentava nos bancos da velha universidade coimbrã, sonhando com um Portugal renovado pela ampliação e aprofundamento do que de mais válido tinha o Estado Novo, e uma Europa ressurgida e heróica afastada dos miasmas torpes do demo-liberalismo e do marxismo.
À sua maneira, Amândio César comungou nestes sonhos e, sobretudo, nunca os traiu. Dos que nos acompanhavam, uns tantos iniciaram uma curiosa evolução que acabou por os conduzir a tombar nos braços dos vencedores, integrando-se nos corrilhos, nos partidos, nas Assembleias legislativas do regime abjecto que destruiu a Pátria. Outros mantiveram-se iguais a si próprios e, chegados ao ocaso da vida, recebem o prémio de ter vergonha na cara e não alinhar no cortejo dos adoradores do Sol Nascente; as campanhas de silêncio, a obscuridade, os vexames ou tentativas de vexame (porque não vexa quem quer) e as dificuldades financeiras. Amândio César alinhou entre os últimos e eis porque as trombetas da fama não o celebram com fervor no instante do seu falecimento, como acontece a qualquer medíocre abrilino que vai a enterrar.
Em compensação, pode escrever-se no seu túmulo o epitáfio de que raros, hoje, são dignos: «foi sempre um bom português».
António José de Brito
(In «O Diabo», 18.08.1987, pág. 12)

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O PENSAMENTO DE CAMUS 

Na sua carta "Révolte et Romantisme", dirigida ao jornal "Libertaire" e inserta no volume "Actuelles II", Alberto Camus esclarece que não é um filósofo.
Isso, todavia, não o impediu de abordar, em várias obras, problemas de indiscutível carácter especulativo, discretear, abundantemente, acerca da fenomenologia, dar a sua opinião acerca de questões gnoseológicas e ontológicas, expor com suficiência certos pontos de vista de Heidegger, Kierkegard, Nietzsche, Husserl, etc., etc.
Julgamos, portanto, que não é possível considerar Camus tão-só um simples literato, mais ou menos talentoso, antes se impõe considerá-lo um escritor que é, igualmente, um pensador, e cujas ideias é lícito, assim, submeter à discussão e analisar.
O seu primeiro ensaio doutrinário — o tão celebrado "Mythe de Sisyphe" — Camus inicia-o com a seguinte frase: «existe apenas um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar que a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia».
Se nos apoiarmos nas asserções do autor de "L`Été", o absurdo, de que nos fala, é tornado qual pressuposto indemonstrado, que utiliza no início do seu estudo. «Nesse sentido pode dizer-se que há nele algo provisório. Nenhuma metafísica, nenhuma crença lhe aparecem ligadas nesse momento».
Simplesmente é-nos muito difícil acreditar na plena sinceridade de tais afirmações pois que Camus, embora proclamando o absurdo algo provisório, vai-lhe atribuindo um carácter de certeza, de evidência, que na realidade, o tornam, em vez de provisório, definitivo e firme. Ele escreve, com efeito: «O meu raciocínio tem que ser fiel à evidência que o acordou. Essa evidência é o absurdo. É o divórcio entre o espírito que deseja e o mundo que desilude, a minha nostalgia de unidade, este universo fragmentário e a contradição que liga o primeiro àquele... Agora o principal está feito. Possuo algumas evidências de que não posso separar-me. O que sei, o que é seguro, o que não posso negar, o que não posso rejeitar, eis o que conta. Posso negar tudo... excepto esse desejo de unidade, esse apetite de soluções, essa exigência de clareza e coesão. Posso refutar tudo no mundo que me rodeia excepto esse caos, esse acaso-rei, e essa divina equivalência que nasce da anarquia... E essas duas certezas, o meu apetite de absoluto e de unidade e a irredutibilidade deste mundo a um princípio racional, sei ainda que as não posso conciliar. Que outra verdade consigo reconhecer sem mentir?»
Significa isto que ao fim e ao cabo, para Camus, o absurdo é uma posição irredutível e insuperável, assente em alicerces inabaláveis. E aqui começam as dificuldades a aparecer. Porque o absurdo é a desarmonia, a existir ontologicamente não permitiria que dela tomássemos conhecimento. Se não fosse admissível reduzir, duma forma ou doutra (cognoscitivamente, v. g.) o universo a um princípio racional, nunca saberíamos que o universo se não reduz a um princípio racional, porquanto a razão através de nenhum princípio seu exprimiria o universo, e estaria, dessa forma, impossibilitada de saber alguma coisa acerca dele. Só se compara o que possui algo de comum. E pôr em paralelo as exigências unificadoras da inteligência e o espectáculo do cosmo, é admitir que a primeira está, de alguma maneira, presente no último e vice-versa, apenas variando os respectivos modos e graus de presença. Mas se a inteligência está no mundo e vice-versa, não é este irredutível à razão — pelo contrário.
O absurdo como evidência, o absurdo como verdade, é, ao formular-se, a negação em acto daquilo que proclama. O absurdo como evidência e verdade, é um princípio, um princípio idêntico aos outros princípios da razão. E sendo um princípio da razão que pretende que o cosmo se não reduz a nenhum princípio racional, em última análise, não passa dum novo princípio racional que pretende traduzir a natureza, a essência do cosmo, ou seja, não passa dum outro princípio racional a que se procura reduzir o mundo.
A proposição de Camus referente à impossível conciliação entre o logos e real: «que outra verdade posso reconhecer sem mentir» — merece ser totalmente invertida. «Não posso deixar de mentir a menos que reconheça outra verdade». Mentir significa aqui estar a sustentar uma coisa e ao mesmo tempo sustentar coisa diferente (consoante é o caso de quem dá a categoria de certeza lógica ao irredutível à certeza lógica e por tal modo o engloba na razão), significa nunca poder deixar de asseverar o que quer que se trate sem, simultaneamente, se estar às ocultas a não asseverar isso, significa, em suma, pôr o sim com um disfarçado não e o não com um disfarçado sim.
Dessas inextricáveis contradições e dilacerações internas nunca se consegue evadir Camus, na medida em que teoriza o absurdo. A sua atitude postula, com igual necessidade, o conhecimento e o fracasso do conhecimento.
E diga-se que, sem grandes subtilezas, o dramaturgo de "Calígula", numa mesma página, quase numa mesma frase, se agarra a estas duas incompatíveis exigências. E ei-lo a bradar, sem hesitações: «Isto é verdadeiro para todo o conhecimento. Excepção feita dos racionalistas de profissão, desespera-se hoje do verdadeiro conhecimento. Se fosse preciso escrever a única história significativa do pensamento humano, seria necessário fazer a dos seus arrependimentos sucessivos e das suas impotências».
De que maneira se consiga descobrir algo de verdadeiro acerca do conhecimento, duvidando do conhecimento verdadeiro, é maravilha que nos deslumbra.
Dentro duma idêntica perspectiva mental Camus assevera-nos que «há verdades mas não a verdade».
Coisa que igualmente nos deslumbra, porquanto, nesse caso, as várias verdades não podem ter relação com a verdade e por que milagre são, então, verdades? Haverá, acaso, verdades sem verdade?
(Note-se que Camus, a determinada altura, nos explica, benignamente: «o raciocínio que este ensaio prossegue deixa inteiramente de lado a atitude espiritual mais divulgada no nosso esclarecido século: a que se apoia no princípio que tudo é razão e que visa dar uma explicação do mundo. É natural apresentar-se uma visão clara deste último desde que se admite que ele em si é clareza». Contudo Camus ensina, também, com insistência: «se eu fosse árvore entre árvores, gato entre animais, esta vida teria um sentido... Eu seria este mundo ao qual me oponho por toda a minha consciência... esta razão tão irrisória é ela que me opõe a toda a criação... o que me parece tão evidente devo mantê-lo»; e noutro passo continua: «o absurdo é a razão lúcida que conhece os seus limites». Em face destes textos, nós ficamos na dúvida, sem saber se Camus achando evidente a oposição entre o mundo e a razão e proclamando lúcida essa atitude, julga a valer estar a deixar de lado — e não a atacar — o racionalismo, ou se limita a divertir-se à custa dos leitores mais ingénuos, quando sustenta estar a deixar de lado a posição racionalista que não faz outra coisa senão atacar).
Não insistamos, porém, no absurdo do conceito que Alberto Camus pretende alçapremar à posição de evidência. Passemos, antes a indagar qual a resposta que dá ao problema do suicídio, a partir do referido conceito.
Semelhante resposta aparece, formulada a meio do "Mythe de Sisyphe": «Posso abordar agora a noção de suicídio. Sente-se já que solução é possível dar-lhe. Tratava-se precedentemente de saber se a vida devia ter um sentido para ser vivida. Torna-se claro agora ao contrário que ela será ainda melhor vivida se não tiver sentido algum. Viver uma experiência, um destino é aceitá-lo plenamente ora não se vive um destino sabendo-o diante de si esse absurdo».
Uma argumentação deste género, não hesitamos em dizer que corresponde a um verdadeiro passe de vermelhinha, sem valor lógico ou ontológico. Se a questão era saber se a vida devia ter um sentido para ser vivida, nada adianta explicar que será, ainda, melhor vivida se não tiver sentido. Talvez uma vida sem sentido seja melhor vivida, mas o problema todo está em saber se a vida merece ou não ser vivida e se para ser vivida necessita ou não possuir um sentido. Uma vida melhor ou pior vivida nestas ou naquelas condições, assenta sempre no pressuposto que está em causa, na sua relação com o sentido que o viver tenha ou não tenha. Vive-se estupendamente no absurdo? Aceitemo-lo. Mas porventura importa viver? E absurdo não representará apenas um estímulo para se viver a vida depois de lhe ter retirado o carácter de valor, ou seja, para viver uma vida que alguém, arbitrariamente, em qualquer momento, possa licitamente transformar em morte?
Não olvidemos que Camus, no início do seu livro, traçava com toda a clareza, e sem equívocos, a interrogação: «a vida vale a pena ser vivida?»
Quando ele escreve «tratava-se precedentemente de saber se a vida devia ter um sentido para ser vivida», ele alude — até o advérbio precedentemente o prova — a essa inequívoca interrogação. Está, pois, a pôr um problema de direito, de legitimidade. E a resposta que lhe dá é uma grosseira resposta de facto.
Às perguntas: «vale a pena viver?», «o absurdo não anula a validade da vida?», Camus responde, numa impressionante confusão: quem viver, vive ainda melhor aceitando o absurdo. E depois disto, prossegue, impante de satisfação, julgando resolvida a dificuldade e trata de extrair uma série de consequências da nova posição que pensa imbatível.
A fragilidade dessa posição veio mais tarde a ser reconhecida, disfarçadamente, pelo ensaísta de "L`envers et l`endroit" na sua outra obra filosófica: "L`Homme Revolté".
Camus, com efeito, reporta-se, expressamente, aos pontos de vista expostos no Mito mantendo que «a conclusão última do raciocínio do absurdo é a rejeição do suicídio». Contudo, duas páginas adiante, após essa satisfação dada ao seu amor-próprio, afirma qualquer coisa de inteiramente diverso e que, implicitamente, destrói essa primeira asserção. E ei-lo que diz: «o absurdo considerado como regra de vida é, pois contraditório... é-o no seu conteúdo, pois que exclui os juízos de valo querendo manter a vida, quando viver é, em si, um juízo de valor. Será extraordinário pois que não nos forneça os valores que decidiram para nós da legitimidade do acto de matar?... O absurdo, como a dúvida metódica, faz tábua rasa. Deixa-nos num impasse».
Em todo o caso, repelido o absurdo enquanto conceito que nos permitia dar uma solução ao problema da vida e da morte, há outro conceito donde tal solução consiga emergir? No entender de Camus, há. Claro que tal conceito apresentado agora, não significa para o novelista de "La Chute" um repúdio dos seus anteriores princípios, uma negação das ideias passadas que implique um mea culpa. Nada disso. Alberto Camus mantém-se fidelíssimo às suas primeiras teses acerca da radical insuperabilidade do absurdo, com todo o notável cortejo de paralogismos que envolvem. O que ele pretende, é que, a partir do absurdo, é possível ir mais além e de certo modo corrigir a ideologia exposta no "Mythe de Sisyphe", através duma noção que desse mesmo absurdo se deduz e extrai com clareza: a noção de revolta. Assim ele assevera: «O absurdo deixa-nos no impasse. Mas como a dúvida, ele pode, volvendo sobre si mesmo, orientar uma nova pesquisa... Eu grito que não acredito em nada e tudo é absurdo, mas não posso duvidar do meu grito e é necessário ao menos crer no meu protesto. A primeira e única experiência absurda é a revolta. A revolta nasce diante do espectáculo da sem-razão, diante duma condição injusta e incompreensível. Porém, o seu ímpeto cego reivindica a ordem no meio do caos e a unidade no meio do que foge e desaparece... A sua preocupação é transformar. Transformar no entanto é agir e agir amanhã é legítimo. Ela engendra justamente as acções que pretendemos que legitime. É preciso pois que a revolta tire as suas razões de si mesma pois que de nada mais as pode tirar».
Que dizer deste novo cogito que Camus nos apresenta? Muito simplesmente o seguinte: em primeiro lugar, considerar que a revolta reivindica a ordem no meio do caos é tudo quanto há de menos exacto. A revolta contra isto ou aquilo, sem dúvida pressupõe a afirmação de certos valores, duma determinada hierarquia que importa restabelecer. Mas a mera noção de revolta? Porque não pode ser esta um protesto total, absoluto? Mais. Não será exactamente um tipo semelhante de revolta a que é possível extrair da noção de absurdo? Pois se o absurdo é consciência duma dilaceração entre as exigências de ordem e unidade do nosso espírito e o caos e desordem do real, a revolta que dela deriva não pode reivindicar uma ordem e uma unidade que sabe sem sentido e existência, e tão só pode constituir uma pura atitude de protesto cósmico, a expressão duma indignação sem limites contra a desarmonia universal, cuja invencibilidade se conhece e contra a qual nada se pretende erguer em concreto, porque nada de ordenado e racional é concebível que tome a ser.
Acresce ainda que o facto da revolta, conforme diz Camus, engendrar, precisamente, as acções que se lhe impõe legitimar, contradiz, em aberto, a pretensão de que possa tirar de si mesma as suas próprias razões. Na verdade, se se lhe impõe legitimar o que engendra, é porque, em si e por si, a revolta não é critério de legitimidade. Se o fosse, o que engendrasse estaria ipso facto legitimado, e não teria sentido a imposição de legitimar o que na sua substância já era legítimo.
Mas se a revolta não é, em si e por si, critério de legitimidade, evidentemente que tem de procurar fora de si um tal critério. E se tem de procurar fora de si um tal critério, não pode tirar de si as suas próprias razões, pois, se assim sucedesse, tudo quanto engendrasse, tudo quanto de si proviesse.
Ora consoante o próprio Camus confessa «é preciso que consinta (a revolta) em examinar-se para que aprenda a conduzir-se». Pois bem! Quando alguém se examina está a submeter-se a uma norma, está implícita ou explicitamente a pressupor uma escala de valores exterior. Por conseguinte, a revolta envolve a submissão a algo de externo e não passa por isso dum falso cogito do qual nada de decisivo se consegue extrair.
Alberto Camus brada que a questão «consiste em saber se toda a revolta deve concluir na justificação do universal morticínio ou pode descobrir o princípio duma culpabilidade razoável»! Não significa este dilema que um morticínio universal não é razoável? E não significa, também, estar já a enquadrar sub-repticiamente o resultado da análise da revolta num certo prisma axiológico? Ao fim e ao cabo, Camus vai, apenas, extrair da revolta o que julga razoável. E em função de quê estabelece o que julga razoável? Expressamente, em função desse mesmo estudo da revolta, e ocultamente (pois que o estudo da revolta é já previamente orientado só para o razoável) em função do que o seu espírito aceita ou repudia, a seu bel-prazer, do que lhe agrada ou desagrada (pois se estuda a revolta com parti pris, não possui, ainda uma regra logicamente estabelecida). O círculo vicioso e a arbitrariedade que este, inevitavelmente, acarreta no desenvolvimento duma tese, são o cerne das considerações de Camus. Arbitrariedade nítida e bem visível. O autor do "Mythe de Sisyphe" proclama revoltados — e nessa qualidade deles se ocupa — a determinados escritores que perfilharam atitudes impossíveis de harmonizar, de englobar, no conceito de revolta que defende, e, por outro lado, em nome do seu conceito de revolta chama à ordem os escritores que começara por considerar lídimos exemplares da dita revolta. Enfim, uma prodigiosa e fabulosa confusão.
De qualquer forma, debaixo do incoerente manto do absurdo e da revolta, apetrechos duma dialéctica que pretende moderna, o que Camus deseja inserir e justificar é a sua ideologia pessoal, a ideologia que professa e ama sem argumentos, por impulsos incontrolados. O absurdo e a revolta são o disfarce e, sob eles, a dirigi-los sem nenhuma lógica, mas com um forte pathos (aliás inimigo da primeira e arrastando a flagrantes paralogismos) situa-se, pura e simplesmente, o ethos dum «quarent`huitard», com o seu humanitarismo, o seu culto fanático pelo Homem (com maiúscula) e os seus direitos individuais imprescritíveis e improrrogáveis.
Camus, à laia dum Michelet, dum Quinet e tantos outros, adora a Humanidade (com maiúscula). Respeita, de chapéu na mão, e em posição de sentido, todo e qualquer homem, desde o banto ao dr. Petiot, excepção feita aos abomináveis totalitários que não professam idêntica religião e que, por isso, amaldiçoa, com furor, pouco lhe importando que sejam também homens. Nada odeia, salvo, claro, o ódio, cuja corporização, já se sabe, está nas experiências nacional-socialista e fascista. As suas "Lettres a un ami Allemand" são extremamente típicas e significativas. Aí ele proclama ignorar o que é a verdade e o que é o espírito, mas quando se trata do homem grita logo para o interlocutor: «nesta altura, detenho-vos porque isso nós sabemo-lo». Sabe o que é o homem, embora desconheça o que é a verdade. Admirável saber esse, um saber sem verdade. E com base em saber de tal ordem acerca do homem, Camus proclama este último, de forma mais admirável ainda, «razão única deste mundo», esquecendo-se, no seu entusiasmo, que essa razão única do mundo foi a criadora do Nacional-Socialismo execrado (execrado em nome do mesmo homem, é óbvio). Sim, porque o nazi e até um denominado Alberto Camus lhe chama «o homem da injustiça».
Estas as linhas fundamentais do pensamento do celebrado prosador de "La Peste". Fragilíssimas e terrivelmente débeis. Não admira, por isso, que um intelecto que assenta satisfeito em tão desequilibradas premissas, não seja altamente feliz no desenvolvimento e elaboração dos seus trabalhos. Assim, ao falar-nos de Nietzsche e Husserl, Camus oferece-nos uma visão assaz simplista e deformada das concepções desses filósofos e, no que respeita a Hegel, expõe-lhe a dialéctica dando-lhe como termo supremo o Estado e deixando no tinteiro o Espírito Absoluto.
Fossem sólidos os pontos de partida adoptados e estes factos (e outros análogos), conquanto lastimáveis, não possuiriam uma importância de maior. Não é isso o que se passa, no entanto.
O Camus literato será, acaso, um grande génio, merecedor de quantas consagrações haja. O seu valor estilístico e estético é assunto que não discutimos sequer, embora, pessoalmente, julguemos que um Malraux, um Céline, um Drieu, um Montherlant, um Morand, possuem, como escritores, outra envergadura e outro nível e categoria, bem superiores. Pouco importa, porém. O Camus literato será um talento sem par. Mas o que temos por certo e seguro é que o Camus pensador não passa dum minúsculo vermezinho, um M. Homais da filosofia.
António José de Brito
(In Praça Nova, n.º 1, pág. 4/7, Julho de 1960)

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PENSAMENTO, VALOR, DIALÉCTICA 

Uma das objecções correntes contra o idealismo é a seguinte: se o pensamento é a realidade, a inteira realidade, o pensamento é, também e simultaneamente, o erro, a loucura, etc.; e se o erro, a loucura, etc, são pensamento tanto quanto o são a verdade e o bom-senso, nesse caso são a mesma coisa e como distinguir então a verdade do erro e a loucura do bom senso? Todo o racional é real e todo o real é racional, ensina Hegel. Logo é racional o próprio irracional e se é racional o irracional, tudo é racional; e se tudo é racional nada é irracional e ao fim e ao cabo nada é racional porque nenhuma diferença surge a separar o irracional do racional. Assim o racional identificado com o Todo destrói-se a si mesmo. O idealismo conduz à equiparação do idealismo e do seu oposto. Para o idealista o anti-idealismo tem de ser pensamento tal qual o é o idealismo. Ora sucedendo que ele tem por único critério de certeza o pensamento, cuja validade não pode ser aferida por algo de extrínseco, eis ipso facto que idealismo e anti-idealismo se equivalem. E se se equivalem então o idealismo encerra em si a auto-destruição das suas pretensões a atitude filosófica verdadeira.
Numa palavra: o pensamento contém no seu seio o não-valor e por consequência jamais poderá representar o valor máximo que decida da validade das posições filosóficas a adoptar. Se procurarmos identificar valor e pensamento que, no caso do idealismo, é sinónimo de realidade, chegamos à identificação do valor com o não valor — pois que são igualmente realidade — o que é absurdo, impossível. Valor e realidade, por mais que se pretenda, não se podem confundir, antes em certa medida tem sempre de se separar — separação indispensável para que não haja confusão e aniquilamento de ambos os termos.
Esta argumentação anti-idealista firma-se, essencialmente, nas premissas que passamos a indicar: 1) que realidade e pensamento ambos são sinónimos de unidade geral compacta e indistinta onde tudo se equivale (assim, considerar pensamento o erro e a verdade será não os distinguir, e considerar real o racional e o irracional será confundi-los); 2) que o valor só se concebe na oposição ao não-valor; 3) que sem o critério fixo do que é ou não valioso se cai, forçosamente, no absurdo e na confusão.
Procuremos analisar brevemente tais premissas. Comecemos por notar que na base das duas últimas se encontra implícita a imprescindibilidade da oposição. Se nada se opõe a nada, se não há aquilo que tem valor e aquilo que o não tem, estamos em plena auto-contradição, no caos mental. E, realmente, a destrinça entre o que vale e o que não vale é algo de insuperável e imprescindível. Negá-la é afirmá-la, porque negá-la é considerá-la não válida e, assim, no acto em que é negada, reaparece a destrinça. E fazer abstracção dela? É ainda negar — negar o interesse da destrinça, e ei-la, de novo, a renascer nessa negação, visto que sustentar que não interessa é o mesmo que dizer que não tem valor. Mas se pura e simplesmente se duvidar, se se hesitar acerca da referida destrinça? Equivale isso a uma recusa a afirmá-la, negá-la ou pô-la de lado, uma recusa, enfim, a tomar toda e qualquer atitude definida acerca do problema. Essa recusa enquanto recusa, é uma negação — negação disfarçada e subreptícia — da validez das restantes posições, renascendo, assim, uma vez mais, a oposição entre o que vale e o que não vale, acerca da qual se pretendia uma abstenção plena.
Se o hesitante, o dubitativo, o céptico acerca de certa questão, perfilhasse também, por um só instante, uma posição definida a respeito dela, nesse instante mesmo a hesitação, a dúvida, desapareciam, porque teria desaparecido aquilo que as distingue das restantes atitudes. A hesitação, a dúvida, só o são se forem impermeabilidade às certezas positivas ou negativas, mas nesse esforço transformam-se em afirmações ou negações: a afirmação ou negação de quem julga ou garante nada afirmar ou negar.
Aceitemos, em consequência, a inultrapassabilidade da destrinça entre o válido e o não válido. Chegados aqui, reparemos, contudo, que tal insuperabilidade implica a fortiori que válido e não válido são realidades. E começa-se desde já a notar que a realidade de ambos não é uma equiparação, uma identidade estática, é, antes, a realidade de um termo positivo contraposto a um termo negativo, ou seja a realidade de uma oposição, de um contraste. De certo, se os termos são ambos reais isso implica que entre eles haja algo que os ligue, um elemento comum. Não estaremos perante uma diversidade abissal. De facto, dado que houvesse tal separação, como poderia chegar a haver oposição e antagonismo se estes envolvem contacto e relação?
Há, pois, unidade — unidade no sentido de vínculo religador — unidade na oposição. Que espécie de unidade, todavia? Se o valioso e o desvalioso estão unidos na oposição e, ao mesmo tempo, é a oposição que exige a unidade, não se torna concebível que esta última constitua algo per se, anterior à oposição. Por outro lado, não se concebe que o negativo e o não válido gerem a unidade, visto que a unidade é pressuposta pela negação que, por essência, depende daquilo que nega, estando-lhe, assim, ligada e unida. Donde se segue que a negação tem de ser uma negação interna à própria positividade, posta pelo próprio valor para existir como valor (que só é tal face ao desvalor). E nessa medida é o valor o mesmo que a unidade requerida pela oposição e que requer a oposição, a qual, encarada em si, nada representa, não passando de momento de um processo a que podemos chamar dialéctico (processo da oposição na unidade e da unidade de opostos).
Conduz-nos isto à primeira das premissas da argumentação anti-idealista, na parte respeitante à concepção da realidade. Sustentar que a realidade é algo de indistinto, onde tudo se equivale, não só é uma tese dogmática, estabelecida sem provas, mas também um pressuposto incompatível com o princípio da imprescindibilidade da destrinça entre o válido e o não válido (destrinça aliás insuperável), princípio que obriga a conceber a realidade — pelo menos parcialmente — não como indiferenciação, antes como oposição na unidade, luta e combate de distintos.
Por conseguinte, o real, por essência, não pode ser um fundo indiferenciado em que ocupam situações idênticas o racional e o irracional, o valioso e o desvalioso, etc... Pelo contrário!
E afirmando-se que o pensamento coincide com a realidade não se está, portanto, a afirmar que no pensamento tudo se confunde e nada se distingue, antes que nele tem de haver necessariamente, a distinção e batalha dos opostos.
Evidentemente que se realidade não é sinónimo de indiferenciação, e se, a fortiori, tem de haver ao menos um sector da realidade (ainda que seja muito reduzido) em que se verifica o inverso, não prova isto que a realidade, no seu conjunto, é dialéctica. Acontece assim que a substituir a indiferenciação, no caso de a realidade se cindir em dois planos — dialéctico e não dialéctico — surge ainda, nova indiferenciação pois aparecem outra vez coisas radicalmente diversas, subsistindo por igual no seu seio.
Reparemos, no entanto, que se a realidade for, mesmo só em parte, dialéctica, ipso facto a não dialéctica é dialectizada. Porque se perante ela estiver qualquer coisa que recusa a dialectização, logo que se oponha a esta, eis que um oposto surge. E ou a realidade dialéctica entra em relação dialéctica com o que se lhe opõe ou deixa de ser o que é. Se há unidade de opostos impõe-se, necessariamente, que abranja o seu próprio oposto.
Simplesmente, se nós vimos que a fortiori a realidade tem de admitir no seu seio a dialéctica do valor-desvalor e, nessa medida, se transforma, toda ela, em tal dialéctica, no que toca à questão da coincidência do pensamento com o real não a formulamos senão enquanto hipótese contra a qual certos argumentos eram apresentados. Ora cremos que nos é possível, agora, ir um pouco além do domínio do hipotético. Se a realidade é dialéctica de valor e desvalor e se se demonstrar que o pensamento é o substractum, o ser, de uma semelhante dialéctica, então o pensamento coincide com a realidade. E que o pensamento é o valor que só se concebe na oposição e na unidade com o desvalor parece-nos que talvez o possamos provar.
O valor é aquilo que vale em si e por si. E vale em si e por si o que não se puder ultrapassar e superar e representar, portanto, um ponto fixo, a partir do qual tudo se tenha de julga e avaliar. Nestas condições se encontra o pensamento, visto que por mais que duvidemos dele, ou dele façamos abstracção ou o neguemos, se encontra, necessariamente, presente em todas essas atitudes, mostrando, por isso, que não é possível superá-lo ou ultrapassá-lo; a sua validade é o pressuposto de todas as valorações que são outros tantos juízos, isto é, actos do pensamento.
Mas se este surge como fundamento de tudo quanto é valorado, como algo que é impossível ultrapassar e superar, então está em oposição ao que é ultrapassável e superável. Ora o que é inultrapassável e insuperável é o que não pode basear-se em si. O insuperável e o inultrapassável é independente, por definição, o superável e ultrapassável dependente. E do que dependerá o dependente senão do independente? Donde se segue que aquilo que está em oposição ao pensamento tem de ser dependente do pensamento, logo posto pelo pensamento. E sendo posto é ainda uma asserção do pensamento, um momento deste.
Cremos que indicamos assim, embora de maneira superficial e rápida, como é que o pensamento é a dialéctica e coincide, deste modo, com o real.
De certo, se o pensamento é a dialéctica, ou seja, constante diferenciação interna entre o que vale e o que não vale, radicada na sua qualidade de valor insuperável, então não é acerca de qualquer objecto pensado, isolado e afastado da crítica do pensar, que se pode dizer que é algo subsistente, que tem valor, que não é um erro ou ilusão.
Indiscutivelmente o erro e a ilusão também são pensamento que é auto-superado pelo pensamento, pois na medida em que o erro e a ilusão são pensados como tais, imediatamente são destruídos e ultrapassados.
Só um idealismo não dialéctico poderia significar equiparação do certo e do errado porque só um idealismo não dialéctico faz abstracção das oposições. Contudo um semelhante idealismo constitui, necessariamente, um pseudo-idealismo, visto que o pensamento, consoante vimos, é por essência dialéctico. O idealismo em vez de ser uma equiparação, no seio de uma totalidade indiferenciada, do racional e do irracional, do bem e do mal, é a afirmação da sua luta perene, da sua recíproca presença e da eterna superioridade do positivo sobre o negativo, numa vitória sempre discutida e sempre renovada.
António José de Brito
(In Praça Nova, n.º 15, pág. 10, Março de 1964)

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domingo, maio 29, 2005

LÉON DAUDET 

Há cerca de cem anos, no mês de Novembro, sob o signo de Sagitário, nasceu um dos maiores polemistas do nosso século, Léon Daudet. A sua obra é, propriamente, torrencial e nem de longe temos a pretensão de a conhecermos por inteiro. Basta salientar que, em 1935, no preâmbulo de um livro interessantíssimo — Bréviaire du Journalisme — Daudet declarava: «Dans l`ensemble, mes papiers de l`Action Française, comporteraient, à eux seuls, plusieurs centaines de tomes, in octavo, de 300 pages, lesquels, joints à mes quatre vingt sept romans et essais, feraient, au bas mot, un bibliothéque de six ou sept cents volumes imprimés — en tenant compte de redites de la polémique journaliére — sans y joindre mes collaborations antérieurs à la Nouvelle Revue, au Figaro, à Germinal, au Gaulois, au Journal, au Soleil, à Libre Parole. C`est affreux, c`est impardonnable, c`est invraissemblable; mais c`est ainsi. J`ajoute que je me suis livré et me livre encore à ses excés de l`imprimé avec délices. Il n`est pas de métier plus passionant».
Se isto era assim, em 1935, que dizer em 1942, ano em que o autor de Savoir Réagir nos deixou para sempre?
De qualquer forma, no romance, na crítica, na doutrina política, no ensaio filosófico ou filosofante, no memorialismo, na biografia histórica, Léon Daudet, acima de tudo, foi um polemista, um panfletário de génio. Exactamente pelo que tinham de polémico é que os seus romances, os seus trabalhos doutrinários, os seus volumes de memórias, ganhavam destaque e colorido, ultrapassando a mediocridade honrosa e a banalidade, e dando testemunho dum temperamento excepcional de lutador, com dotes literários fora do comum.
Se, por exemplo, os seus livros de recordações, L`Entre Deux Guerres, L`Hécatombe, Vers le Roi, Deputé de Paris (só falamos naqueles que lemos), se situam muito para além da produção habitual no género é porque neles encontramos, com frequência, quadros e caracteres traçados com uma invulgar força de caricaturista, charges de uma espantosa inventiva, a destruição em duas penadas de personagens consagrados e solenes, o comentário irreverente e acre e a propósito, tudo isto emoldurando e inserindo-se, com perfeita naturalidade, na sequência dos eventos e ambientes descritos.
No tocante ao Daudet romancista não temos outro remédio senão reconhecer que conseguiu elaborar novelas espantosamente fracas — embora aqui e ali palpite o talento — v.g. Suzanne, Les Bachantes, Médée, La Lutte, Le Coeur Brulé. Contudo, do meio desta série de livros incaracterísticos, salta de repente aos nossos olhos, Les Morticoles, que são algo de excepcional, de excelente. Simplesmente aconteceu que Les Morticoles, além de ser um romance — inspirado em Swift — representa uma sátira espantosa de polemista ao ensino médico da época. Na altura, fez escândalo pelos retratos dos vultos conhecidos e proeminentes, que pontificavam na Faculdade e nos Hospitais de Paris. Hoje, em dia, no entanto, apesar de sob tal aspecto já nada significarem para nós, Les Morticoles é obra que não morre e ainda entusiasma. Os seus personagens, debaixo dos quais estamos bem longe de identificar esta ou aquela individualidade real, têm capacidade de nos convencer, de nos despertar aplauso e, sobretudo, repulsa ou asco.
Há ali trouvailles sem par e cenas admiráveis, como a descrição da terrível prova do lêchemente de pieds aos Mestres, que decide da aprovação e da reprovação, e perante a qual o exame é mera formalidade.
Repare-se todavia, que se, enquanto romancista, Léon Daudet frequentes vezes não foi feliz, a justeza do seu gosto crítico constituiu fenómeno que ficou assinalado em definitivo. Ele contribuiu, amplamente, para a descoberta de Proust, lançou, com uma segurança de visão impressionante, Louis Ferdinand Céline, revelou Bernanos ao grande público francês. Não deixamos de pensar porém que algumas das suas melhores páginas de crítica são, simultaneamente, páginas de polémica. Zola ou le Romantisme de l`égout, título só por si de uma grande felicidade, é um estudo impressionante, em que na demolição certeira e firme Daudet se mostra implacável. O crítico, aí animado do demónio da invectiva, consegue, quase por completo, realizar o prodígio de juntar à veemência a penetração no juízo e a análise inteligente.
Os ensaios de índole filosófica — L`Hérédo, Le Monde des Images, Le Rêve eveillé — não expressam, por certo, um dos aspectos mais importantes da vasta bibliografia de Léon Daudet. Apesar de tudo, merecem ser lidos, com atenção, porque abundam em pontos de vista originais e especialmente em enérgicas e justas investidas a certas teorias e eis o polemista em acção, o que compensa, de certo modo, a falta de disciplina lógica e o excesso de fantasia.
Em todo o caso julgamos que é num pequeno trabalho — o discurso no Parlamento sobre o ensino das Humanidades — que melhor se demonstra a cultura filosófica de Daudet, fruto de uma vasta curiosidade intelectual não compensada, infelizmente, nesse domínio, pela indispensável serenidade reflexiva e um permanente esforço de ordenação e coerência. Talvez porque a tribuna as não comportava, Daudet suprimiu, aí, as suas costumadas digressões marginais e com um encadeamento e um rigor superior aos habituais, desenvolveu duas ou três ideias mestras bem colhidas e meditadas.
A respeito das biografias históricas da autoria do fogoso director da Action Française poucas considerações podemos formular. Nunca conseguimos obter Sylla et son destin, que muitos louvam fervorosamente, nem ainda, Clemenceau qui sauva la Patrie, ou Alphonse Daudet, etc., etc. Unicamente conhecemos Deux Idoles Sanguinaires, consagrado à Revolução e a Bonaparte. E hesitamos um pouco, até, em integrar este livro no domínio da biografia histórica. Há nele, decerto, o esforço de reconstituir a figura de Napoleão, aliás feito com o usual ímpeto polémico. Mas, por outro lado, aparecem-nos considerações mais directamente político-ideológicas, ao jaez das que, vulgarmente, Daudet insere nos seus volumes de doutrinação. Claro que sabemos que ele escrevia as biografias históricas à luz do seu ideário, não hesitando em tirar ilacções e formular juízos valorativos. Cremos, no entanto, que existe diferença acentuada entre traçar uma narrativa historiográfica alicerçada num fundo ideológico, mais ou menos expresso, e mesclar, quase sistematicamente, a narrativa (já de resto orientada por determinados postulados) com ensinamentos directamente ideológicos. Ora é semelhante mescla de perspectivas que, constantemente, deparamos em Deux Idoles Sanguinaires.
Convém advertir, chegados aqui, que nos trabalhos doutrinários de Daudet não encontramos exposições serenas e académicas de teses e concepções axiológicas. Mais do que em quaisquer outros está presente o polemista, com a sua truculência rabelaisiana e o seu fulgurante dom do sarcasmo corrosivo e aniquilador.
Léon Daudet chegou pelo seu primeiro casamento a ter ligações familiares com republicanos de alta posição e influência. Porém, sob a influência de Édouard Drumont, o grande escritor anti-semita francês, amigo de seu pai Alphonse Daudet, passou a colaborar na Libre Parole que o primeiro dirigia e orientava, filiando-se na Ligue anti-sémite formada em torno desse jornal. O célebre affaire Dreyfus levou Léon Daudet até às fileiras de um amplo movimento — a Patrie Française — destinado a unir todos os que combatiam as agressões dreyfusistas contra o exército e a honra nacional. Movimento profundamente conservador, tímido na sua actuação, confiando-se a generalidades prudentes no plano dos princípios, a cada instante foi tornando mais insatisfeito e desiludido o jovem e ardente discípulo de Drumont.
Descrendo, em absoluto, das possibilidades de uma república ordeira e patriota, Daudet, em 1904, quando o movimento da Patrie Française agonizava, depois da morte de Syveton (um assassinato político segundo toda a verosimilhança), veio a ingressar na Action Française, convertendo-se à Monarquia. É incontestável que o ideário político deste último agrupamento se deveu exclusivamente a Maurras e que foi, sempre, no âmbito das ideais maurrasianas que Léon Daudet se passou a mover e a traçar as páginas dos seus livros de combate e doutrina. Não vamos aqui referir, em esboço sequer, as grandes linhas da obra de Maurras. Pensador subtil, mais apaixonado pela controvérsia de ideias do que pelas grandes exposições sistemáticas, deixou análises incomparáveis dos erros liberais e democráticos e rápidos mas finos esquissos das suas concepções do Estado e da Ordem, desgraçadamente dispersos em volumes muitas vezes repletos dos ecos de querelas ultrapassadas. Ao lado do esforço de clarificação, dissecação, rectificação de Maurras, que se não permitia um duro qualificativo sem antes apresentar argumentos e provas, publicamente, a fúria, o ímpeto, o arrebatamento de Daudet formavam um contraste impressionante. Contraste no estilo, na maneira de polemicar, no temperamento, apenas, porque a identidade quanto a pontos de vista era perfeita. Daudet seguia Maurras em tudo, até no germanofobismo rábido que constitui o grande e obcessivo defeito do prosador de Anthinéa.
Dentre os livros de Léon Daudet de índole mais directamente político-ideológica destaca-se, primordialmente, Le Stupide XIX siècle, cujo título causou sensação. Muitos democratas e conservadores espiritualistas e católicos, que não foram além da portada do ensaio, ergueram-se, com indignação, a proclamar que o século XIX não fora estúpido, pois legara um sem número de grandes homens e de importantes progressos à Humanidade. Foi pena que não se chegassem a aperceber que Daudet só considerava estúpido o século dezanove em certos aspectos ou tendências, realmente primárias, como o cientismo intolerante, o anti-clericalismo desmedido, a lisonja baixa e demagógica do popular, a falsificação sectária da história anterior à Revolução, o naturalismo semi-pornográfico, etc.
Nessa medida, e unicamente nela, é que Daudet condenava o século XIX, nunca atacando, antes ressalvando, as suas descobertas e as suas grandes criações literárias e artísticas.
Redigido com a endiabrada veia de Daudet, Le Stupide XIX siècle abunda em fórmulas polémicas que despertam gargalhadas homéricas e põem o adversário exaltado ao rubro. Falando em liberais, Léon Daudet proclamava, com a mais serena tranquilidade: «A mes yeux, je vous le dis franchement, il n`est grand liberal qui me soit un grand âne et autant plus grand qu`il est plus libéral».
Outros estudos políticos de Daudet que conhecemos — Moloch et Minerve, La Police Politique, ses Moyens et ses Crimes, Sauveteurs et Incendiaires — possuem evidentes méritos, mas estão longe de superar Le Stupide XIX siècle.
Depois do desastre de 1940, de acordo com Maurras, Léon Daudet deu todo o seu apoio ao regime do Marechal Pétain e, segundo informa Brasillach em Les Quatres Jeudis, num artigo do Gringoire, publicado no inverno de 1941, declarou-se partidário da reconciliação europeia. Se, até ao momento, não conseguimos ler tal artigo — que seria da mais alta importância — em compensação já em Sauveteurs et Incendiaires conseguimos encontrar uma inequívoca apologia de Philippe Pétain e do Novo Estado francês.
A vida agitada e tumultuosa de Daudet e a sua obra de polemista, plena de calor e desassombro, encerram uma lição de validade permanente e um exemplo que, nestes tempos de abandono e cobardia, esplende com diamantina pureza. Lição e exemplo de fidelidade e coragem modelares. Através de todas as tempestades, prisões, ameaças, Léon Daudet nunca abandonou os seus amigos da Action Française nem renegou as suas ideias de nacionalismo integral. Até ao fim, permaneceu ao serviço da verdade política que nos anos da sua juventude descobrira e não houve directrizes de prudência, sentidos de conveniências e oportunidades, que o tivessem levado a modificar, atenuar, ocultar, os seus princípios.
Nenhum perigo ou risco jamais conteve a sua pena terrível. Daudet dizia sempre o que pensava e ai de quem tentasse detê-lo. Segundo todas as probabilidades, no auge de seus ataques à República a Sureté Générale assassinou-lhe o filho mais velho, sendo o próprio Daudet encarcerado pela sua violenta campanha para desmascarar os assassinos. Conseguindo escapar da prisão alcançou ao fim de alguns dias a Bélgica — durante o período da evasão diariamente aparecia nas colunas da Action Française o seu habitual artigo — onde exilado prosseguiu intemeratamente nas suas duras e veementes arremetidas. Nada conseguiu quebrar o seu espírito de lutador. E pelos anos fora Daudet permaneceu firme na trincheira. Só a morte, em 1942, fez cessar, sem remissão, a ingente batalha de um polemista que nunca temeu nem tremeu.
António José de Brito
(In «Agora», n.º 335, 16.12.1967., pág. 6)

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CONFISSÃO QUASE PESSOAL 

Somos um punhado de pequenos burgueses insignificantes, unidos num comum propósito nacional-revolucionário. Riem-se de nós, por isso, os homens sábios e sisudos da esquerda e os da direita conservadora, os primeiros sustentando que dadas as nossa origens de classe nada de bom de nós se pode esperar, os segundos aguardando que os grandes braços tentaculares da nossa mãe de origem nos abracem de novo, e que o chamado peso da idade e das responsabilidades nos venham a fazer alinhar outra vez nas fileiras conformistas do grande rebanho egoísta e satisfeito.
Esquecem-se uns e outros que, precisamente, os maiores revolucionários da nossa época foram pequenos burgueses — sirvam de exemplo Lenine e Trotsky, Adolfo Hitler e Onésimo Redondo. Talvez por nascerem da burguesia e por melhor a conhecerem, melhor souberam revoltar-se contra ela, melhor do que um Doriot ou um Mussolini, filhos do povo e proletários.
Não pretendemos, evidentemente, comparar-nos a esses grandes modeladores da história contemporânea, pretendemos mostrar que são injustificados a desconfiança e o desdém (por vezes forçados e receosos) com que, a priori, nos encaram, por sermos quem somos. Nascidos da pequena burguesia, não será isso e só isso que nos impedirá de levarmos a cabo uma acção séria e profundamente revolucionária, no melhor sentido da palavra. Ao lerem a palavra revolucionária não imaginem alguns tímidos patetas que não temos outro desejo nem outro pensamento senão sairmos para a rua a lançar bombas e a dar gritos histéricos.
Há que distinguir entre revolução e revolução. Há que distinguir entre a pseudo-revolução, feita de agitação estéril, de mortos nas ruas, de explosões de granadas, finda a qual tudo continua na mesma ou pior do que antes, e a verdadeira revolução que é o esforço autêntico de modificação de realidades e circunstâncias, e que, se não deve hesitar perante o emprego da força militar, não a envolve, necessariamente, nem necessariamente a utiliza à toa.
Núcleo ainda incipiente, nós outros, para já, unicamente firmamos uma posição de indeclinável e incontroverso antagonismo face ao ambiente que nos rodeia e à mentalidade que nos cerca.
Recusamo-nos a aceitar, com um encolher de ombros indiferente ou resignado, o triste panorama social que vemos em torno de nós.
Indigna-nos, sinceramente, a visão dolorosa deste pobre país, com o seu cortejo infernal de bairros citadinos abjectos, os seus doentes chaguentos nas bermas dos portais, as crianças a vadiar que olham com desespero para os bolos das confeitarias, as mulheres postas à margem da sociedade em função dum moral farisaica e cujo único recurso é venderem-se, os velhos desempregados a apodrecer ao sol, as famílias sem habitação, etc., etc. — e, a par disto tudo, o incremento desenfreado duma plutocracia desumana, ávida de lucro e de prazer.
Claro que não temos ilusões utópicas. Não julgamos possível extinguir por completo a miséria humana, nem acreditamos mesmo que o bem-estar seja sinónimo de felicidade. O homem atormentar-se-á, sempre, no íntimo do seu insatisfeito coração e a dor é sua eterna companheira. Buscar a felicidade integral, é actividade que, apenas, nos torna mais infelizes. E não nos esqueçamos, além disso, que a felicidade, a satisfação íntima, a paz de cada um de nós, são ideias sem dignidade ou valor, meramente egoísticas e particulares.
Nós sustentamos, por conseguinte, que uma vida dura não é sinónimo duma vida indigna, que uma vida dura pode ser uma vida viril e não uma vida lastimável. O panorama social português não nos oferece no entanto o quadro duma vida dura e viril. Oferece-nos antes o quadro de uma vida de mole abandono, e até de desespero. É ao abandono que estão tantos e tantos por aí fora, sem um mínimo de alegria, sem um ideal enérgico a dignificar aos próprios olhos as privações, e contemplando, com uma inveja sem esperança, o devorismo despreocupado dum pequeno núcleo.
Mais do que na escassez das riquezas (que importa, é óbvio, superar) quanto a nós a razão fundamental de todo este desolador espectáculo está na ausência duma forte e disciplinadora justiça social, ausência essa que cria abismos entre as classes, levando a massa a considerar a falta de comodidades uma maldição que só a elas cabe sem se saber porquê, a sentir a penúria qual vexame, humilhação e desgraça, a proclamar o desconforto, mais ou menos relativo, fatalidade que lhe é caprichosamente imposta e, sem consequência, viver a sua pobreza com aviltamento, a tombar no desleixo, na incúria, na abjecção, na falta de respeito por si mesma.
É indiscutível que urge aumentar os rendimentos de cada um, mas aí de nós se semelhante reforma for levada a cabo dentro da iniquidade capitalista, hoje quase por completo dominante, e se os sacrifícios materiais puderem continuar a representar para muitos, e com visos de verdade, degradação, e a causar com razão sentimentos de inferioridade e abandono.
Sem dúvida não há comunidade, nação, pátria que não peça sacrifícios desses aos seus filhos. O que importa, porém, é que tais sacrifícios sejam exigidos com justiça e não possam servir de base a ressentimentos, e a provocar desespero e humilhação, por isso justificados.
Os marxistas apelam para a expropriação da burguesia. Mas apelam para ela com a mentalidade da própria burguesia, julgando que com a socialização dos bens de produção e a inversão dos termos no binómio exploradores-explorados, o essencial está resolvido. Erro básico.
A revolução será ético-política ou não será. E, por sê-lo, não deixará de ser económica também, e de cortar as unhas aos potentados escandalosos que sugam os povos.
Mudar o processo de produção, mudar os detentores dos meios de produção não basta para criar uma sociedade estruturalmente diferente da burguesa (excepto para os que tiverem o feiticismo do factor económico). Os marxistas não trazem com eles uma noção de sociedade verdadeiramente nova e verdadeiramente oposta àquela que pretendem combater. Os seus valores são, ainda, os valores actualmente vitoriosos.
Ora o que acima de tudo importa é negá-los efectivamente, e frente a eles erguer uma sociedade que seja um bloco, pobre talvez, mas em que a pouca riqueza se distribua irmamente, que seja em suma, uma unidade, uma hierarquia fraternal, uma comunhão de pensamento e vontade.
Não nos repugna um certo espartanismo, pois não consideramos o chamado progresso, sobretudo industrial e muito pouco espiritual, a chave de todas as soluções, antes admitimos princípios bem mais elevados.
Apelamos para uma ordem nova, e não acreditamos que essa ordem possa surgir senão do propósito firme de a criar em todos os domínios, e não do mero propósito de acabar com o capitalismo, tarefa puramente negativa e sem futuro. Apelamos para uma concepção soldatesca da existência, para a qual o ideal está na coragem, na abnegação, no serviço desinteressado, na camaradagem, e não na tibieza e no culto de Mamom.
De certo o capitalismo atravessa-se-nos no caminho. Mas não confundamos as condições necessárias do nosso triunfo com as condições suficientes. E não nos deixemos, sobretudo, arrastar pelo canto da sereia. O nosso revolucionarismo não pode tornar-se ingenuidade a explorar pelos pescadores de águas turvas. Esperar melhorias duma atmosfera de agitação e desordem, dum enfraquecimento do Poder é dizer que a mais curta distância entre dois pontos é uma curva.
Não restringimos ao nosso País o quadro desolador de misérias e injustiças que referimos. A história passada e presente mostra-nos um sem número de quadros iguais sob o signo da Liberdade e seria estúpido e criminoso, portanto, responsabilizar por eles a tranquilidade pública que temos até aqui usufruído ou o reforço da autoridade estadual tentado nos últimos anos.
Conhecemos, perfeitamente, a estreiteza de vistas, o conservantismo tolo que, em tantos aspectos, caracteriza a certos Senhores da Situação e conhecemos, melhor ainda, os imensos cavalos de Tróia que nela se introduziram a impossibilitar-nos os já de si limitados objectivos sociais.
Contudo sabemos perfeitamente que a destruição duma autoridade autêntica, mesmo tratando-se da autoridade do mais reaccionário dos governos só aproveita aos oportunistas, aos interesseiros, aos homens da corrupção e do dinheiro, aos que, capazes de escapar à vigilância de um sistema ditatorial de vistas curtas e de nele se anicharem, muito melhor medrarão e prosperarão no seio da confusão, da anarquia, do caos.
Sem uma Autoridade soberana, e soberana a valer face a grupos, a pressões, a intimidações, a revolução, que desejamos, é impossível.
A democracia, que equivale a desordem, é o grande inimigo das reformas sérias, as quais exigem um Poder forte para passar a acto, tornar-se reais e afrontar os interesses por elas vulnerados.
Os nossos intentos postulam, pois, a edificação firme e decidida dum regime francamente autoritário, devendo nós, por isso, apoiar e aproveitar o que de antidemocrático e de bom se tem feito, nesse sentido, até agora, em Portugal.
Divisamos já, neste momento, o ar superiormente irónico dos nossos antagonistas conservadores. Uma vez que vos preocupais tanto com o destino dos desprotegidos da fortuna, dir-nos-ão, porque não entregais todos os vossos haveres em favor dos desvalidos, ó nobres revolucionários?
Pobres de nós, pobres de nós! Seria com os nossos modestos meios de pequenos burgueses que conseguiríamos valer aos que nada possuem? Ou apenas iríamos engrossar de alguns elementos a legião dos miseráveis?
A última hipótese de certeza agrada aos inimigos, dado que nessa altura, as nossas vozes deixariam de se ouvir, a reclamar justiça e a desmascará-los. Não lhes faremos a vontade, no entanto. E, dentro da nossa modéstia, persistiremos. Pouco mais nos é possível, nesta altura, do que pensar. Mas pensar é também agir, é atear uma fogueira que se pode tornar um imenso clarão que tudo ilumine.
Ultrapassaremos nós o plano das reflexões despretensiosas, ou teremos de reentrar na nossa mediocridade (mediocridade insatisfeita consigo própria, ao menos)? O futuro no-lo dirá. O certo, porém, é que, bafejados ou não pelo êxito, jamais o seremos pela desonra, porque os nossos propósitos são puros, as nossas mãos limpas e o nosso espírito sereno.
António José de Brito
(In Ataque, n.º 3/4/5, , pág. 11, 2.ª série, Junho/Julho/Agosto/Setembro de 1963)

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sábado, maio 28, 2005

ID Magazine 

Uma nova revista de informação na internet federando identitários francófonos: da França, da Suíça, da Bélgica e do Quebec.
Pede-se a divulgação de ID Magazine: ID de IDeias, de IDeal, de IDentidade, de IDentitário.

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Comemorar o 10 de Junho 

Anunciam-se algumas iniciativas nacionalistas para celebrar o 10 de Junho, pelo menos em Lisboa e Porto.
Consultem as informações disponíveis na Causa Identitária e no Portal Nacionalista.

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Morreu Suzanne Bardèche 

Foi hoje a enterrar em Paris Suzanne Bardèche, irmã de Robert Brasillach e viúva de Maurice Bardèche, testemunha e participante privilegiada na aventura literária, intelectual e política da sua geração.
Que descanse em paz.

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OS RUMOS DA HISTÓRIA 

É um espectáculo comovedor ver um grande número de pessoas, que se declaram e são conservadoras, reprovar, com energia, quaisquer ataques às ideologias reinantes no mundo, em nome das exigências do equilíbrio e da prudência. Dizem elas que é totalmente inútil opor-se às correntes dominantes e, além de inútil, perigoso, porque uma tentativa de modificar ou deter os rumos da história pode causar perturbações graves e comoções sociais tremendas. E, assim, ei-las a atacar, com o rancor e a força que a sua congénita falta de coragem lhes permite, todos os esforços dos que, pela acção, ou até apenas pela palavra escrita, ou falada, procuram, além de pôr um dique à desorientação reinante, aplicar os remédios necessários para um retorno aos caminhos perdidos da dignidade e da inteligência. Sem grande convicção interior, sequer, lá seguem essas pessoas atrás do cortejo revolucionário, marchando, com um falso entusiasmo, aos vivas à auto-determinação, aos direitos da pessoa humana, à democracia e sobretudo à Liberdade com um enorme L maiúsculo.
Simplesmente o que é muito escandaloso e estranho é que tão dignos conservadores se esqueçam que a liberdade consiste precisamente na faculdade de criticar autonomamente, de escolher por nós mesmos, de recusar pressões exteriores, de combater o que pretende impor-se só por possuir existência e força. Se exigem que aceitemos a liberdade em nome da irresistibilidade das correntes ideológicas da nossa época, convém logo recordar-lhes que, se as correntes ideológicas da nossa época se concretizam na ideia de liberdade, proíbem-nos precisamente que aceitemos algo pelo simples facto de existir, pela sua mera irresistibilidade, passivamente, sem lhe analisarmos o valor.
Os senhores conservadores não compreendem que acatar o espírito da revolução por conservantismo é tão contraditório e absurdo como pretender desenhar um círculo quadrado. Aliás, os senhores avançados, por seu turno, também não entendem que o ideal de Liberdade, que proclamam valor em si, envolve, necessariamente, o direito de repudiar e negar esse ideal, fazendo nascer uma contradição, um absurdo em nada inferiores ao que acabamos de denunciar.
De qualquer maneira, o irrecusável é que somos nós, os que repudiamos as mitologias hoje reinantes, quem está de acordo com o rumo da história na nossa época, tal qual os conservadores julgam que ele está traçado. Pois se imaginam que a hora é da crítica e da autonomia, parece que nós, formulando até autonomamente a crítica, estamos a dar o mais radical cumprimento aos mais fundos imperativos do ethos da idade contemporânea.
No entanto, acontece que o verdadeiro índice da mentalidade do nosso tempo não é a valer, o gosto da crítica pela crítica, levado ao paroxismo, ou o culto da autonomia mental projectado à sua máxima dimensão. A grande característica do nosso tempo é o fanatismo na inconsequência traduzido num entusiasmo tão furioso pela democracia e pela liberdade que não permite que ninguém, que a não venere e não divinize, possa ser respeitável e normal. Estamos, em suma, perante o mais dogmático dos amores à crítica e da mais imposta e heterónoma exaltação da autonomia. E este paralogismo é o que encontramos já, sob uma outra variante, nos meios conservadores, que pretendem fazer-nos respeitar a revolução por imperativos de imobilismo, de tranquilidade e de paz.
De resto, conservadores e não conservadores, todos unidos na exaltação do respeito pela pessoa humana, e dos direitos do homem, precipitam-se sobre as pobres pessoas humanas, que não se acham dignas de respeito só por serem pessoas, e sobre os pobres homens que pensam modestamente que só por serem homens não têm direitos alguns, e proclamam-nos monstros temerosos, satânicos, fulminando-os com terríveis excomunhões e aconselhando (ainda que adversários fervorosos da Inquisição) a rápida entrega dos mesmos ao braço secular. Os entusiastas da pessoa e do homem para as pessoas e os homens que não experimentam idêntico entusiasmo reclamam severas sanções. E se as vítimas se agitam um pouco e não vão de boa vontade para o sacrifício os não conservadores personalistas solicitam o terror e obtêm-no. Foi assim depois de 1789, a seguir à tomada da Bastilha, foi assim depois de 1917 na U.R.S.S., foi assim depois de 1945 por essa Europa fora, benemeritamente adornada de forcas pelos vencedores, nos escombros das cidades bombardeadas e incendiadas. E a apoiar todos os excessos, a aconselhar que não se lhes tente pôr cobro deparamos com os personalistas conservadores que para evitar a guerra civil recomendam a calma e serenidade face a todos os eventos até os mais revoltantes. À guerra civil preferem sempre o massacre civil.
Pode-se perante tudo isto deixar de classificar a nossa época como a época da inconsciência lógica e do paradoxo?
Não é este diagnóstico confirmado por tantos outros aspectos da vida contemporânea? Não deparamos, por exemplo nos nossos dias com uns tantos que, deliberadamente, intencionalmente, tendo semeado ventos, aparecem, com ar de vestais, muito admirados por as tempestades surgirem?
O Sr. Maritain, que é o capitão-mor espiritual dessa atitude nos ambientes católicos, dá-nos o gostoso espectáculo das suas tentativas no sentido de abrandar e acalmar quantos, na nova geração, seguindo o seu rumo, acabaram por passar-lhe à frente só porque mais ligeiros e velozes. Não descobre ou não quer descobrir, no entanto, que os males, contra os quais se insurge, têm causas precisas e objectivas, dentre elas destacando-se a actuação dele próprio, Maritain, e também o aplauso e a audiência que lhe dispensaram em determinados meios. E é reiterando, solenemente, os paralogismos e os mitos que estão na raiz dos erros que o preocupam, que o sr. Maritain procura combater estes últimos. Continuamos a ouvir-lhe com insistência os mesmos rançosos brados em prol da dignidade intrínseca da pessoa humana, da emancipação do homem, os mesmos ataques às concepções ditas constantinianas do Estado, às doutrinas da não separação entre o poder temporal e o espiritual, etc.
S. Exa. não se apercebeu, ainda, que se a pessoa humana possui um valor intrínseco, vale independentemente da posição que assumir em relação à transcendência divina. E, nessa altura, só restam dois caminhos: ou suprimir a obrigatoriedade da ordenação ao Deus transcendente ou identificar pessoa humana e divindade e reduzir o reino de Deus à busca e satisfação das exigências da pessoa humana. Sua Excelência não se apercebeu, igualmente, que, se não se ensinar que os únicos direitos que o homem tem derivam dos deveres para com Deus, o grande número julgará, com bastante aparência de razão, que entre Deus e os direitos do homem há uma identidade fundamental, que é obra religiosa a luta política em que se reclame direitos, e que a O.N.U., onde elaborou uma das últimas e ultra asmáticas Cartas de Direitos, é templo de uma fé fora da qual não há salvação.
O Sr. Maritain e os que o seguem — e que por vezes o citam mais do que ao Evangelho — sustenta a tese da despolitização da Igreja. É pena que se esqueça que foi ele quem se arvorou em profeta de uma nova Cristandade em que cabiam os não cristãos e em que o traço de união entre crentes e não crentes seria a realização de determinadas tarefas temporais. Que admira que daí se concluísse que a ortodoxia é o menos e que o verdadeiro espírito cristão está nas formas democráticas e personalistas de conceber a vida, com a consequente politização da acção religiosa?
Alguns sequazes de Maritain, apoiando-o nos seus votos despolitizadores, garantem que, na esfera local das suas competências, a Igreja se não politizou. Acredito-o firmemente. Perante regimes autoritários em que o Estado se dispunha a ser um corpo de que a Igreja fosse a alma, não há dúvida que esta marcou sempre as suas distâncias e se colocou em sábia reserva.
Que dizer, porém, da intoxicação política nas esferas eclesiásticas quando se trata dos dogmas das potências que triunfaram em 1945?
Um dos admiradores de Maritain pôde escrever, em 1946, ou 47, com inteira tranquilidade e julgo que boa fé, «todos se reclamam da democracia». Quer dizer: para ele os outros, os mordidos da peste fascista não existiam. Todos, no seu entender, eram evidentemente os vencedores, os que no momento tripudiavam, falavam, piruetizavam. Os restantes, os que padeciam nas enxovias, os que nos cárceres aguardavam o fuzilamento, os que no nosso país eram escarnecidos e afastados por não desejarem renegar as suas ideias e os seus camaradas, esses nada eram ou nada importavam. Siete tutti democratici... quer queirais quer não.
E sobre as origens da guerra, a pretensa exterminação dos judeus, os excessos do Fascismo e do Nazismo, não foram e são perfilhados na Igreja, com impressionante generalidade e difundidos entre os fiéis, os pontos de vista divulgados pela propaganda dos que venceram, pontos de vista de um claro e inexcedível facciosismo? Não nos consta que o sr. Maritain protestasse contra tal politização. Ao invés foi um dos seus mais ardentes artífices. Em lugar de pregar discrição e objectividade face à história actual, escrita sob o signo do mais forte e em que os vencidos mal podem fazer escutar a sua voz, enfileirou entre os fautores da calúnia e da difamação. E não temos conhecimento que a sua voz, ou vozes autorizadas se erguessem, com ressonância, na Igreja, a condenar as inúmeras e incontestadas (porque, sem coacção, confessadas pelos próprios) atrocidades e barbaridades democráticas cometidas de 1939 até aos nossos dias. Tanto se protesta contra pseudo-crimes dos totalitários quando se faz discreto silêncio sobre inequívocas monstruosidades dos que venceram. Não é isto sinal claro de politização? Bem gostaríamos nós de a ver banida, de semelhante ao que foi descrito por Michel de Saint-Pierre, em Sainte-Colére, no tocante ao acolhimento dado aos franceses da Argélia pela quase totalidade do clero. Pelos vistos, porque não acredita no absurdo princípio da autodeterminação, essa população abandonada, traída, arrancada pela força aos seus lares, não possuía direitos, já não era composta de pessoas humanas com uma infinita dignidade. Dignidade só a tinham os terroristas do F.L.N., ou os que, perjurando, procuravam mutilar o território da pátria. E sobre os militares que, por fidelidade à palavra dada, à Constituição, à nação, se revoltaram contra um poder tirânico e ilegítimo, choveram imprecações e maldições. Também não eram pessoas humanas nem mereciam ao menos caridade cristã.
O diálogo tão citado tem, apenas, um interlocutor — o progressista, o homem das esquerdas. Dessa manifesta politização não falam, infelizmente, os adversários da politização da Igreja, os que desdenham dos carneiros de Panúrgio e enfileiram no triste rebanho dos que ao fascista e ao colonialista nem sequer querem reconhecer um resto humano.
António José de Brito
(In «Agora», n.º 334, pág. 12, ano VIII, 09.12.1967)

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A MÁSCARA DA UNIDADE 

Nas épocas de crise, a anti-nação, sem escrúpulo nem pudor, aproveita-se das dificuldades do momento para tentar obter o triunfo dos seus propósitos de destruição e ruína. Não nos admiremos nem nos espantemos, porque se procedesse de modo diferente, se o culto da pátria a detivesse, por pouco que fosse, nos seus gritos estrídulos de liberdades fundamentais e nos seus esforços de agitação partidária, a anti-nação não seria a anti-nação.
Simplesmente observemos o seguinte: esta última, no preciso instante em que assalta em massa a nação, incitando como lhe compete à anarquia, à desordem, ao caos, destaca de si uma pequena fracção, a qual, num sábio movimento táctico, avança com humildade para as fileiras nacionais e inicia um discurso pleno de belas palavras, lembrando a urgência da união de todos na altura grave que se atravessa, proclamando intentos honestos de colaboração, embora, claro, a dignidade não lhe permita um abandono do pé para a mão das suas ideias, insistindo em que os nacionalistas devem ser os primeiros a dar o exemplo do sacrifício e do bem geral, abdicando, em certo grau, da sua intransigência ideológica, etc., etc.
Tais tropos assaz emotivos costumam tocar o coração sensível de alguns dignos patriotas que, ao escutarem os lamentos dos seus pseudo-irmãos de nacionalidade, se comovem até às lágrimas e se dispõem a mandar para as urtigas princípios, conceitos, posições, só para terem o gratíssimo prazer de apertar nos braços os neo-filhos pródigos. Outros, julgando-se subtis políticos, imaginam que chegou, enfim, a oportunidade de abrir uma brecha na fortaleza inimiga, e pensam que, admitindo nas hostes os pobres suplicantes da esquerda, estes, pelas virtudes de um intenso convívio com os luminares que os acolhem, acabarão por converter-se às boas ideias, valendo a pena, por isso, abrandar a rigidez doutrinária, provisoriamente, é óbvio, consoante dizem com finório e maquiavélico sorriso. E assim, enquanto a parte sólida da anti-nação ataca de frente e com veemência, a restante ingressa pelo flanco, habilmente.
Ora como a derradeira só se prestou ao ingénuo papel da candidata a tentativas de sedução política dada a contrapartida de um visível e explícito afrouxamento na vigilância nacionalista, a triste verdade é que quem supõe estar a dividir os adversários está, apenas, a facilitar-lhes a tarefa e os desígnios, pois, em troca de uma vaga hipótese de conversão de alguns, principia a enfraquecer, imediatamente, as linhas de defesa sujeitas à mais forte das pressões frontais. Desta forma as hordas da anti-nação que se lançam à conquista conseguem ver fortemente reduzidos os obstáculos que as poderiam deter.
Além disso os elementos que se mostraram dispostos a colaborar começaram por advertir que se lhes não poderia exigir, do pé para a mão, o repúdio e a modificação das ideias e atitudes passadas. Por consequência, uma vez acolhidos no campo nacional, continuam, com toda a naturalidade e desenvoltura, a formar um grupo que perfilha os velhos dogmas dissolventes e anarquizadores. E quem nos garante que, de repente, eles não regressam de novo à hostilidade despedindo uma punhalada nas costas daqueles que ingenuamente lhes mostraram confiança? Pois se abertamente confessam que no essencial em nada mudaram, pois se a sua cooperação é mera posição ocasional e coisa alguma se lhes exigiu a assegurar as proclamadas boas intenções, como estar seguro que, no mais aceso da peleja, não voltam à dissidência, não agridem pelas costas quem os acolheu?
Em consequência, ou se comete a maior das imprudências, ou se enfraquece, ainda mais, a defesa, distraindo forças de combate para lhes confiar a tarefa de seguir, com discreta cautela, os movimentos dos novos e duvidosos «amigos». Finalmente nos arraiais nacionalistas o bom acolhimento dispensado a adversários que se ufanam de não abdicar e os conselhos de moderação e abrandamento, exactamente nos períodos de crise, causam uma compreensível desorientação e espalham o fermento da desagregação. Com efeito, ou os princípios e ideais do nacionalismo são os únicos que asseguram a existência, a grandeza e prosperidade da Pátria (e por tal motivo é que quantos os hostilizam constituem a anti-nação) ou não. Na primeira eventualidade é acaso admissível que se aconselhe a transigência nas alturas em que a Nação está em perigo, com vista apenas a obter no futuro a adesão de uns tantos, é compreensível porventura que aqueles cujas doutrinas são apresentadas quais ameaças sérias para a subsistência das Pátrias sejam, nas emergências mais graves, acolhidas sem se lhes requerer, já não se diga uma abjuração, mas ao menos uma firme e inequívoca suspensão das suas manifestações e actividades ideológicas habituais?
E no segundo caso — no segundo caso se o Nacionalismo não é expressão mesma da vida da Pátria, então os chefes mentiram, a luta não tem sentido e o melhor é recolher a penates.
Os nacionalistas não compreendem que os seus mentores escolham os períodos de angústia e batalha, quando logicamente deveriam pregar a combatividade e energia, para aconselhar a prudência e moderação e para receber de braços abertos, e com honras de guerra, os adversários que nas épocas normais repeliam com nojo considerando-os, irremediavelmente, anti-nacionais. Eis porque os finos maquiavéis, que ordenam uma política — temporária, claro, segundo nos asseveram — de relativo afrouxamento, de transigência, de blandícias, nas horas sombrias e de pugna acesa conseguem sempre, muito mais do que desejam, transformar o afrouxamento em desmoralização, a transigência em cepticismo e descrença, as blandícias em deserções e abdicações.
Quer dizer: sob o pretexto da unidade, pelo gáudio tonto em bradar que se não repele ninguém, pela mania de reunir e agregar à toa, o que se processa é, pura e simplesmente, uma marcha plena e triunfal da anti-nação para a vitória.
E os tristes tolos que confundem unidade com união, que julgam sinónimo da primeira o mero ajuntamento ocasional de pessoas divididas por sentimentos, valores, comportamentos, e que se limitam a proclamar uma platónica intenção de unir-se — intenção que nunca vai além desse palavriado vazio e sem conteúdo —, os tristes tolos quando menos esperarem serão, à semelhança do aprendiz de feiticeiro, dominados pelos mecanismos que desencadearam e virão a pagar com língua de palmo as suas insensatezes e dislates.
Decerto, é um belo e elevado conceito a unidade, pela qual todos os sacrifícios se devem fazer. A unidade porém não é simples junção exterior de indivíduos, não se reduz à noção de contiguidade. A unidade, para ser unidade a sério, tem de ligar os homens a valer, envolvendo-os num credo comum, projectando-os numa obra ou numa missão transpessoal, fundindo as suas vontades numa vontade geral.
Os primários imaginam que isso equivale a fazer com que todos pensem de idêntica maneira e gemem que tal objectivo é estulto, impossível e só acarreta uma série de violências contra-natura. Mas são os primários. Um credo comum, uma missão transpessoal, uma vontade geral, apenas representam o ponto de convergência da humana diversidade, em vez de significarem o seu aniquilamento. São o corpo que engloba os membros sem os destruir.
Unidade não é uma absurda unanimidade. É o primado duma ideia básica em volta da qual se centrem as restantes ideias numa relação de ordenamento e de hierarquia.
Outra concepção da unidade ou não passa de infeliz paralogismo ou se reduz a repugnante disfarce, a máscara que oculta manobras traiçoeiras e mesquinhas, tendentes a arruinar e dissolver a comunidade nacional.
António José de Brito
(In «Agora», n.º 342, 03.02.1968., pág. 12)

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quinta-feira, maio 26, 2005

DEMOCRACIA CRISTà

À medida que os diversos países iam sendo libertados para sua felicidade, para suprema ventura da Humanidade, para triunfo dos valores morais, para um maior culto da justiça, etc; à medida que os exércitos das Nações Unidas iam levando de vencida o Fascismo hediondo que, atrás de si, arrastava destruições de catedrais (como a de Colónia), mosteiros e abadias (como Montecassino), julgamentos de adversários vencidos (como em Nuremberga), e o fuzilamento e a prisão de intelectuais (como Brasillach, Georges Suarez, Maurras, Carrel); à medida que os abnegados Três Grandes consolidavam mais e mais a sua vitória, iam aparecendo nas nações que, jubilosamente, ressurgiam para uma nova vida, imensidades de partidos, todos evidentemente dispostos a erguer bem alto o estandarte da Liberdade e da Emancipação e a fazer triunfar a bandeira da Democracia.
Em breve, dentre o informe e desordenado caos, veio a destacar-se uma tendência hoje em dia eleitoralmente triunfante na França, na Bélgica, na Holanda, na Itália, na Áustria, na Hungria, na Baviera, e que tomou a designação geral de Democracia Cristã.
As razões do seu êxito, não são difíceis de apreender. Para os que militavam nas direitas por simples inércia, para os que temem a política de missão e detestam o viver perigosamente, a abnegação e o sacrifício, para os amigos da persuasão que, aristocraticamente, envolvem na mesma expressão de desdém o Fascismo e o Comunismo, para todos esses inimigos dos extremismos, a Democracia Cristã, partido do centro, é o refúgio ideal. Mesmo o seu anti-comunismo não chega a ser suficiente para lhe trazer incómodos (Graças a Deus! Senão, o que se poderia vir a perder).
Na França, realmente, o filósofo do Movimento Republicano Popular (católicos) o Sr. Jacques Maritain, ex-membro da "Action Française", inimigo do Estado Novo português - o que não é obstáculo a entrevistas elogiosas no órgão da União Nacional, onde um redactor daquele jornal se faz procurador dos admiradores e discípulos portugueses do inimigo do Governo por todos os motivos legítimo da sua Pátria (1) - o Sr. Jacques Maritain, é partidário da cooperação com os comunistas e a sua participação na obra comum. (2) E um outro militante, nome de grande relevo na literatura, perfilha, igualmente, essa tendência: é o Sr. Mauriac. Aliás, estas duas atitudes mostram até uma louvável coerência de ideias, pois, durante a guerra de Espanha, os católicos que mais decididamente se mostraram partidários da vitória soviética na Península foram, juntamente com Bernanos, os srs. Maritain e Mauriac.
O partido, mesmo, apesar de todas as lutas eleitorais, aceita formar governo de coligação em que ao lado de Bidault presidente, surge Thorez vice-presidente, Thorez traidor à França a soldo de Moscovo. Enternecedor espectáculo! O chefe da Resistência e um desertor! É que poderosas afinidades os unem - ainda está fresco o sangue dos que caíram pela França e pela Europa.
Mas dado que o Movimento Republicano Popular tem precursores e quadros um pouco extravagantes (3) precursores em que se conta Lamennais e quadros intelectuais de que fazem parte as redacções de periódicos como o «Sept» (4), «La Vie Intelectuelle», etc., podia dar-se a circunstância da sua atitude ser isolada de entre os movimentos cristãos-democratas contemporâneos.
Mas não, infelizmente não. Assim, na Itália, o vice-presidente do partido Attilio Piccioni disse em entrevista: «Quanto aos comunistas não somos em princípio pela contra colaboração. Só pomos duas condições: que os comunistas nos apresentem e a todo o povo italiano um programa definido e que possam ser considerados verdadeiramente um partido nacional» (5).
Como se vê, para a Democracia Cristã colaborar com o marxismo não é necessário muito: basta que haja um programa definido qualquer que ele seja e que Moscovo suspenda as relações com os seus partidários, embora o perigo internacionalista subsista, pelo menos ideologicamente. Até nisto se mantém fiel à herança dos velhos partidos conservadores em que a transigência com o inimigo era de bom tom. E não é só esta característica que mantém.
A Democracia Cristã acredita no sufrágio universal que Pio IX chamava de «mentira universal», acredita que os incapazes de governar têm competência para escolher os que hão-de governar; a Democracia Cristã acredita na separação dos poderes que coloca o Estado numa situação absurda tirando-lhe toda e qualquer unidade de acção, a ele que deve ser o centro dirigente da vida nacional; a Democracia Cristã é republicana, desejando, pois, que o poder dependa do arbítrio da multidão ignara; a Democracia Cristã defende a existência dos partidos políticos, factores de dissolução nacional, que transformam os países em autênticos campos de guerra civil, guerra civil de que só vêm a aproveitar os arrivistas, os videirinhos de toda a espécie.
A Democracia Cristã tenta encarnar no nosso século os princípios da Revolução satânica que, pela voz de alguns dos seus corifeus, já ousa afirmar ser de raiz católica, embora desviada e transformada, tenta encarnar os princípios da destruição e da morte.
Partido dos tímidos e dos resignados, ao serviço duma ideologia mortífera, envolvida em ténues véus de conservantismo e de moderação, é bem um resíduo vetusto do estúpido século destinado a desaparecer, quando renascerem «para ventura dos povos e tranquilidade do mundo» os princípios eternos da vitoriosa Contra-Revolução.
António José de Brito

Nota do Autor - Sempre que empregamos a expressão Democracia Cristã, não queremos de forma alguma referir-nos ao sentido que Leão XIII por exemplo lhe atribuía. Com efeito, o Pontífice ensinava que «seria injusto que o termo de Democracia Cristã fosse desvirtuado para um sentido político... só se deve empregá-lo tirando-lhe todo o sentido político e não lhe ligando outra significação a não ser uma acção beneficiente e cristã para com o povo» (Encíclica "Graves de communi"). Ora nós, evidentemente, queremos apenas fazer menção aos partidos políticos que tomam tal designação.

Notas:
1 - Cfr. Diário da Manhã de 30 de Maio de 1946, número 5408-Ano XVI.
2 - Cfr. Christianisme et Démocratie, pág. 95.
3 - Segundo nos informou solicitamente o jornal que foi do Cons. Fernando de Sousa, etc., de 18 de Dezembro de 1944, sob o título «Em França - O Movimento Republicano Popular».
4 - (durante a guerra de Espanha, defensor dos rojos)
5 - Cfr. Diário da Manhã de 26 de Maio de 1946, n.º 5404-Ano XV.

(In «A Nação» n.º 24 de 03.08.1946)

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