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terça-feira, março 16, 2004

A Democracia
"O sr. Gaston Jèze é uma das mais altas autoridades do mundo universitário francês, e o seu nome ultrapassou, há muito tempo, as fronteiras da França. Em ciência financeira, e mesmo em Direito Administrativo e Direito Político, as suas opiniões formam escola, e impõem-se com autoridade. Politicamente, o sr. Gaston Jèze, é radical: pertenceu ao famoso cartel das esquerdas, e vejo-o figurar no célebre volume "La Politique Républicaine", que é uma espécie de Programa do Radicalismo. Por sinal que no seu estudo consagrado às Finanças francesas, o sr. Gaston Jèze tem esta paradoxal sentença: o que deve guiar os governos é a ciência financeira e o ideal democrático — como se este ideal democrático fosse capaz de se ajeitar com qualquer ciência, e muito menos com a ciência financeira.
Ora se o sr. Jèze acaba de escrever num jornal francês, palavras preciosíssimas que demonstram que o seu espírito nem sempre está perturbado, a sua visão das coisas nem sempre é deformada.
Pergunta ele: «Acaso as assembleias legislativas são compostas de seres superiores, mais inteligentes ou melhores do que outros homens?»
E responde com esta clareza e esta justeza: «Nada disso. A Democracia não tem a apreensão de ter, como governantes, super-homens, os governantes de uma Democracia são medíocres; tomam-se, um pouco ao acaso, na massa. Seria preciso ter os olhos fechados para não ver que os colégios eleitorais não escolhem nem os melhores, nem os mais inteligentes, nem os mais honestos, nem os mais cuidadosos pela coisa pública. A intriga, as promessas excessivas, mesmo as mentiras, a pressão e a corrupção desempenham um grande papel nas eleições dos países democráticos. Isto não oferece dúvidas a ninguém. Nenhuma reforma eleitoral mudará a grande coisa nisto. Não tenhamos ilusões a esse respeito».
De acordo. Não tenhamos ilusões. Nós não as temos. As reformas eleitorais, para nós, os sistemas eleitorais, para nós, têm bem medíocre importância. Eleição directa ou indirecta, sufrágio restrito ou universal; recenseamento obrigatório ou facultativo, sistema maioritário ou proporcional; com representação ou sem representação de minorias; círculo único ou muitos círculos — é tudo a mesma burla monstruosa — porque o vício fundamental da eleição não está na maneira como ela se realiza, mas em si própria. O carácter específico da eleição é o Número, e o Número é a antinomia da Qualidade. À medida que o Número aumenta, a Competência restringe-se. Se alguém tem autoridade para limitar o Número, esse tem autoridade para escolher logo o que o Número vai eleger. Uma vez que se adopte o critério do Número, em boa lógica, só o Sufrágio Universal tem defesa. Eu compreendo os partidários deste Sufrágio; não compreendo os que limitam, os que querem segurá-lo, com reformas, com habilidades.
Eu só compreendo o Sufrágio Universal, com recenseamento obrigatório e voto obrigatório. O resultado é mais democrático, mas é mais característico. Quanto mais errado mais democrático, mais puramente democrático, mais dentro do critério da soberania nacional.
Áparte aquela de a Democracia não ter a pretensão de possuir, por governantes, super-homens, tudo quanto sr. Gaston Jèze diz é luminoso.
«Os governantes de uma Democracia são medíocres» — diz ele. Nem podem deixar de ser. A massa eleitoral, o rebanho humano só escolhe os que estão ao alcance da sua inteligência. Ora a inteligência da multidão é tudo o que há de mais frágil. A multidão não sugere ideias: move-se por palavras, determina-se por gritos, dirige-se por imagens. E não é necessário que seja uma multidão ignara de incultos patriotas. Ainda outro dia soube esta que é típica. O sr. Brunschvieg é uma das mais afamadas mentalidades do meio filosófico contemporâneo. Na sua cadeira da Sorbonne, preleccionava sobre Pascal. Silêncio. Sono. Os espíritos dobravam de fadiga. Naquele meio crepúsculo, ouviu-se o professor dizer que «há em Pascal, dois arranha-céus: um que devia arranhar o céu, mas que o não arranha; outro que parece arranhá-lo, mas que o não arranha ainda».
Esta imagem foi o bastante para que o curso inteiro despertasse, interessado, sacudido. E ficou à espera da explicação do arrojado símbolo — mas o professor voltara à sua maneira pausada, discreta, monótona, e intensamente intelectualista. E o curso voltou, por sua vez, ao adormecimento. Ora se não é possível manter interessado, activo, um grupo de pessoas cultas, sem o recurso das imagens brilhantes e a retórica sonora — calcule-se o que será necessário para atrair, sugestionar, arrastar uma multidão ignara de patriotas incultos!
Continuando o seu desenho, o sr. Gaston Jèze diz que os colégios eleitorais não escolhem nem os melhores, nem os mais inteligentes, nem os mais honestos, nem os mais cuidadosos pela coisa pública. Certíssimo. Como estamos longe daqueles que diziam que era apanágio da Democracia, a virtude! Mas se não são os melhores; se não são os mais honestos, se não são os mais cuidadosos pela coisa pública, os que a Democracia chama para a alta função do governo — que demónio de simpatia, de apoio ou aplauso nos pode merecer a mesma Democracia, com a sua remonta dos piores, dos estúpidos, dos patifes e dos desleixados, sr. Gaston Jèze?
A Democracia, aos melhores, desgosta-os; aos mais inteligentes, persegue-os; aos mais honestos, calunia-os; aos mais cuidadosos da coisa pública, afasta-os. É de hoje. É de ontem. É de sempre. Que fica, então? Fica o bando dos malfeitores, dos sem consciência nem vergonha — profissionais da honra, profissionais do Dever, profissionais do patriotismo, profissionais da justiça, profissionais de tudo, fazendo de tudo profissão, até da infâmia!"

Alfredo Pimenta

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