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terça-feira, março 30, 2004

Vendo ao longe
Para constatar que há realmente quem seja dotado de visão à distância, recomendo a leitura deste artigo de Alfredo Pimenta, já com quase sessenta anos.

TORRE DE BABEL OU ASILO DE ALIENADOS
Durante longos anos, talvez desde 1908 ou 1909, fui leitor assíduo e atento do "Temps" - jornal francês de variada e magnífica colaboração que tinha ainda a vantagem de reflectir a atmosfera do Quai d`Orsay, no tempo em que a França era alguém na vida internacional.
Além do "Temps", eram meus jornais de todos os dias, a "Action Française" que de um modo geral me falava ao paladar, e a "Croix" que me trazia ao facto dos acontecimentos do Vaticano.
Quando a França foi derrotada em 1940, deixei de receber o "Temps" e a "Croix", e só de longe em longe conseguia ler a "Action Française" -podendo por isso testemunhar a infâmia que representou a condenação de Charles Maurras, por colaboracionista com a Alemanha. De resto não foi por isso que o condenaram; condenaram-no por não colaboracionista com a Inglaterra e com a Rússia...
Quando os Americanos e os Ingleses ocuparam a França, em substituição dos Alemães, a "Action Française" desapareceu.
Na barafunda que se seguiu e é hoje a vida francesa, o "Temps" não voltou à superfície, mas em vez dele surgiu um jornal de formato mais pequeno que se chama "Le Monde".
O tipo do título é o do "Temps"; algumas rúbricas são as mesmas; a redacção é no mesmo lugar; alguns colaboradores, poucos, são meus velhos conhecidos. Mas o director é o Sr. Hubert Beuve-Méry, que não sei quem seja; há um conselho de direcção constituído pelos Srs. René Courtin e Christian Funck-Brentano, que desconheço, porque Funck-Brentano das minhas relações chamava-se Frank.
Enfim - tudo aquilo levou uma volta, até na orientação, porque vejo o substituto do "Temps" dar grande relevo às coisas relativas ao Comunismo soviético.
É a influência, a velha influência do Quai d`Orsay, onde hoje, está instalado o Sr. Georges Bidault, representante dos católicos dos novos tempos...
Porque reatei as minhas leituras da imprensa francesa responsável, logo de entrada esbarrei em informações sensacionais. E uma delas, e talvez a maior, é a que me dá o jornal de 16 de Fevereiro. Tão importante, tão transcendente, tão revolucionária ela é, que a própria redacção do jornal se vê na obrigação de a fazer acompanhar de palavras prévias de reserva, talvez lógicas no ponto de vista francês, mas que são muito diferentes daquelas que a referida informação me provocou.
De que se trata?
Ainda em plena guerra, um amigo meu que foi de visita aos Estados Unidos, e por lá andou cerca de dois meses, e conversou com este e com aquele, regressou com a seguinte impressão: os Estados Unidos consideram-se portadores de uma nova civilização; entendem que a civilização faliu ou está em coma; pensam que nós não sabemos viver, nem organizar a vida; em consequência do que têm o propósito de transformar a Europa, estruturando-a à sua maneira.
Não se enganava o meu amigo e foi bom observador.
Porque aqui está diante de mim, nas páginas de Le Monde, a confirmação das suas impressões.
O Sr. George Creel, director dos serviços de informação americanos durante a guerra de 1914, é da intimidade do actual Presidente dos Estados Unidos, e «pode ser considerado o reflexo fiel das ideias» do Sr. Truman.
Deu ele ao jornal francês um artigo que se intitula: "Un projet du Président Truman", e tem como sub-título esta expressão que me causa calafrios: «Les États Unis d`Europe».
Nesse artigo, depois de anunciar ser possível que esteja em preparação uma política americana mais nítida e mais construtiva em relação à Europa, avisa: «Não é segredo para ninguém que o Presidente Truman encara favoravelmente a possibilidade de criar os Estados Unidos da Europa». Assim mesmo: «Ce n`est pas un secret pour personne que le Président Truman envisage favorablement la possibilité de créer les États-Unis d`Europe».
Acrescenta que o problema está a estudar-se, mas que a ideia fundamental se percebe já com clareza.
Para o Sr. Truman, trata-se de «criar uma federação dos Estados europeus, baseada numa coordenação económica e política que fará sair do caos a ordem, e formará a esperança de ver reinar no futuro a estabilidade, a paz e a prosperidade. Sem ser a réplica exacta dos Estados Unidos, essa federação deveria em todo o caso possuir uma moeda alfandegária, uma comunidade de todos os recursos naturais da Europa e a utilização comum de todas as vias navegáveis».
O projecto tem precedentes; e o mais moderno apresentou-o o Sr. Churchill em 22 de Março de 1943, quando propôs a constituição de um «Conselho europeu» e de um «Tribunal Supremo» para julgar conflitos e dotado de poderes bastantes para fazer cumprir as suas decisões e evitar novas agressões e a preparação de novas guerras.
Nos meios diplomáticos americanos, pretende-se uma união mais apertada e limitada à Europa propriamente dita. Quer dizer: ficarão fora da Federação a Rússia e a Inglaterra, cuja amizade mútua é tida por indispensável à criação e bom resultado da Federação europeia.
Esta ficaria na «impossibilidade de alimentar ambições imperialistas ou desencadear guerras agressivas, porque os seus recursos militares se limitariam estrictamente à defensiva; e, para tranquilizar a Rússia, que teme a formação de um bloco ocidental hostil, a nova Federação poderia declarar o Fascismo fora da lei e oferecer garantias de estricta neutralidade».
Com tal projecto, que tem em vista o Sr. Truman? Em primeiro lugar, evitar que a Rússia tenha preocupações em relação às suas fronteiras ocidentais e que a Inglaterra se distraia da solução dos problemas complicados do seu Império; em segundo lugar, poupar os Estados Unidos às aventuras para que são arrebatados - em consequência de um sistema que dura há dezenas de séculos e transformou a Europa numa «torre de Babel» ou «asilo de alienados».
Numa palavra: o Sr. Truman, Presidente dos Estados Unidos da América, declara guerra às Nações europeias, à sua independência, à sua soberania, à sua auto-determinação, à sua liberdade. Constituem elas para o Presidente da América uma torre de Babel, ou asilo de alienados! E então quer federar-nos, sujeitar-nos a uma direcção comum, a uma fiscalização superior, ao poder supremo de uma entidade que disponha dos nossos destinos, pondo termo à nossa História.
Em nome de quê e em nome de quem?
Se nós, europeus, somos Torre de Babel ou asilo de alienados - há dois mil anos que o somos, e isso não impediu que realizássemos a obra profunda e de projecção incomensurável que o mundo até há pouco tempo podia contemplar. Se a existência de nacionalidades independentes caracteriza o babelismo desta Torre e o alienismo deste Asilo, que tem o Sr. Truman com isso? Que nós tenhamos de prestar contas a Deus do uso que fazemos da nossa vida - não se discute, ninguém o põe em dúvida. Mas é a Deus. Não me consta que o Sr. Truman seja Deus. Queixa-se o Presidente dos Estados Unidos de que o seu país é arrastado para as guerras da Europa. É arrastado?! Quem o arrasta? Toda a gente sabe que há e sempre houve na América duas correntes: a isolacionista e a intervencionista. Se os Estados Unidos entram nas guerras da Europa, queixem-se dos intervencionistas, dos wilsones, dos rooseveltes, etc.
Se somos asilo de alienados - a culpa não cabe à existência de nações independentes - todas elas solidárias, aliás, na mesma obra de Civilização e Cultura. Todos nós, uns mais, outros menos, uns por aqui, outros por ali, todos nós descobrimos terras e levámos o sinal da Cruz até aos confins do mundo, erguemos catedrais e castelos, criámos as colunas gregas e os pórticos romanos, as agulhas góticas e a Renascença, eternizámos em Glória e Beleza a vida.
Deixem-nos em sossego viver a vida que entendermos, porque nós também não vamos à América sujeitá-la às nossa concepções éticas ou políticas, dominar ou dirigir o seu expansionismo ou a sua força.
Pela minha Pátria falo, e, pensando nela, ergo o meu protesto, que se perderá no vozear confuso das turbas dementadas, mas documentará uma atitude. Portugal, nascido no século XII, atravessou estes oito séculos concorrendo como nenhuma outra Nação para o esforço civilizador do mundo. Ele não compreende nem poderá compreender que o integrem numa federação que o absorverá, o reduzirá ao anonimato infecundo, lhe levará o seu Império Ultramarino e porá um ponto final repugnante e hediondo à sua História grandiosa pelo sacrifício e pela projecção. Portugal não compreende nem poderá compreender limitações à sua soberania, embaraços à sua independência, seja qual for a máscara que se adopte para a encobrir.

2 de Março de 1946
Alfredo Pimenta

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