sexta-feira, maio 28, 2004
Uma lembrança do país de Abril
Motivado pela campanha desencadeada por "O Acidental" sobre as torturas praticadas no Portugal pós-revolucionário, dei por mim em recordações desse tempos remotos.
Embora continue com a impressão que os autores da iniciativa não estão verdadeiramente interessados nela (até agora nem um artigozinho publicaram concretizando os tais casos de sevícias e maus tratos... e não lhes seria difícil encontrá-los) vou partilhar uma estória dessa época.
Sublinho que não é propriamente uma estória de tortura; mas parece-me bem significativa do ambiente de então, da arbitrariedade total, da ausência de regras, do desprezo pelos mais elementares princípios do Direito, da perseguição generalizada que então se viveu.
Na noite de 26 para 27 de Setembro de 1974, um bando armado de constituição indefinida tomou de assalto a residência de José Joaquim Arantes Santos, engenheiro de profissão. Ao que parece a finalidade era prender este, e uma vez que ele não se encontrava na casa invadida os responsáveis do grupo, então identificados como militares do COPCON, levaram como refém o cunhado do procurado, o engenheiro António Fuschini Serra, que ali encontraram presente.
Posteriormente, ao saber do que se passara e que o queriam prender, o Eng. Arantes Santos dirigiu-se ao RAL 1, (ainda não era chamado RALIS), julgando resolver a situação, sua e de seu cunhado.
Foi então detido, e de seguida, juntamente com mais dois civis, transportado em camião militar aberto, sob as armas de uma vintena de soldados, dali até ao forte de Caxias, onde deu entrada.
Até aqui nada de invulgar, pois o mesmo se passou com centenas e centenas de portugueses nesses dias, e nomeadamente nessa noite de 26 para 27 e na madrugada seguinte, do dia 28. Tratava-se da "acção preventiva" relacionada com o que depois seria chamado o golpe do 28 de Setembro. Quer dizer, uns prendiam em barda e os outros é que eram autores de uma tentativa de golpe...
Claro que estas prisões não tinham qualquer tipo de cobertura legal, nem um papel justificativo, e a generalidade das pessoas constantes das listas usadas para esse fim, listas que seguiam nas mãos dos militares encarregados desse serviço e dos civis que os acompanhavam, não faziam a menor ideia das razões de tais detenções. E a maior parte continuou a ignorar para sempre tais motivos, ou os critérios seguidos na elaboração das listagens, ou até quem as elaborava, dado que nada lhes foi dito alguma vez.
Mas continuemos. Arantes Santos deu entrada em Caxias no dia 27 de Setembro e levado para uma das celas, onde já se encontravam outras pessoas (a prisão estava cheia como um ovo).
Acontece que o Eng. Arantes Santos, sendo embora homem novo, padecia de grave enfermidade que exigia medicação permanente e adequada, e alimentação específica. Tendo sido inteiramente desprezada essa situação, o seu estado de saúde foi piorando durante as duas semanas que se seguiram, perante o desespero dos companheiros de cela, até que na noite de 10 para 11 de Outubro de 1974 sofreu uma fortissima hemorragia. Naquela situação de emergência, e estando o doente em grande sofrimento, os apelos deste e dos colegas de cela fizeram então com que o comandante (saliente-se que este estava informado por escrito, pelo próprio e pelos outros colegas da cela, da situação em causa) o mandasse ao médico. Este de imediato se pronunciou no sentido de ser indispensável repouso absoluto, a medicação habitual, e leite, por ser o alimento apropriado naquelas circunstâncias.
Julgaram então os companheiros e o próprio que ele seria mandado para casa, ou pelo menos ouvido nesse dia.
Engano crasso: apesar da crítica situação observada, com a hemorragia no estômago constatada pelo clínico, apesar das recomendações deste, Arantes dos Santos continuou ali, sem medicamentos, sem sequer um copo de leite, sem nunca ser interrogado ou informado por alguém sobre as razões da sua prisão, sem voltar a ter contacto com o médico.
Ao fim de mais uma semana, com o seu estado de saúde cada vez mais visivelmente debilitado, decidiram mandá-lo embora, consignando-se então no mandado de soltura (finalmente um papel!) que tal acontecia porque "por agora" era "desnecessário às averiguações".
Ignora-se de todo quais fossem essas averiguações, já que nunca houve qualquer informação a esse respeito, nem no caso é possível depreender o que fosse, já que Arantes Santos nunca na vida tinha tido qualquer actividade política.
Resumindo, o Eng. Arantes Santos veio a ter um período de detenção bem mais curto que os restantes detidos das várias levas desses tempos revolucionários. Três semanas. Recolheu porém a sua casa com o seu problema de saúde irremediavelmente agravado. Apesar de todos os esforços, não foi possível salvá-lo: ainda viveu algum tempo, em condições extremas, mas veio a falecer na madrugada de 3 de Dezembro seguinte.
Nunca se chegou a saber o que esteve na base da sua prisão. Mais tarde, em reacção a diligências da família, o mesmo COPCON, que o tinha prendido, viria a declarar por escrito (Otelo) que tal prisão fora devida "a má fé".
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Embora continue com a impressão que os autores da iniciativa não estão verdadeiramente interessados nela (até agora nem um artigozinho publicaram concretizando os tais casos de sevícias e maus tratos... e não lhes seria difícil encontrá-los) vou partilhar uma estória dessa época.
Sublinho que não é propriamente uma estória de tortura; mas parece-me bem significativa do ambiente de então, da arbitrariedade total, da ausência de regras, do desprezo pelos mais elementares princípios do Direito, da perseguição generalizada que então se viveu.
Na noite de 26 para 27 de Setembro de 1974, um bando armado de constituição indefinida tomou de assalto a residência de José Joaquim Arantes Santos, engenheiro de profissão. Ao que parece a finalidade era prender este, e uma vez que ele não se encontrava na casa invadida os responsáveis do grupo, então identificados como militares do COPCON, levaram como refém o cunhado do procurado, o engenheiro António Fuschini Serra, que ali encontraram presente.
Posteriormente, ao saber do que se passara e que o queriam prender, o Eng. Arantes Santos dirigiu-se ao RAL 1, (ainda não era chamado RALIS), julgando resolver a situação, sua e de seu cunhado.
Foi então detido, e de seguida, juntamente com mais dois civis, transportado em camião militar aberto, sob as armas de uma vintena de soldados, dali até ao forte de Caxias, onde deu entrada.
Até aqui nada de invulgar, pois o mesmo se passou com centenas e centenas de portugueses nesses dias, e nomeadamente nessa noite de 26 para 27 e na madrugada seguinte, do dia 28. Tratava-se da "acção preventiva" relacionada com o que depois seria chamado o golpe do 28 de Setembro. Quer dizer, uns prendiam em barda e os outros é que eram autores de uma tentativa de golpe...
Claro que estas prisões não tinham qualquer tipo de cobertura legal, nem um papel justificativo, e a generalidade das pessoas constantes das listas usadas para esse fim, listas que seguiam nas mãos dos militares encarregados desse serviço e dos civis que os acompanhavam, não faziam a menor ideia das razões de tais detenções. E a maior parte continuou a ignorar para sempre tais motivos, ou os critérios seguidos na elaboração das listagens, ou até quem as elaborava, dado que nada lhes foi dito alguma vez.
Mas continuemos. Arantes Santos deu entrada em Caxias no dia 27 de Setembro e levado para uma das celas, onde já se encontravam outras pessoas (a prisão estava cheia como um ovo).
Acontece que o Eng. Arantes Santos, sendo embora homem novo, padecia de grave enfermidade que exigia medicação permanente e adequada, e alimentação específica. Tendo sido inteiramente desprezada essa situação, o seu estado de saúde foi piorando durante as duas semanas que se seguiram, perante o desespero dos companheiros de cela, até que na noite de 10 para 11 de Outubro de 1974 sofreu uma fortissima hemorragia. Naquela situação de emergência, e estando o doente em grande sofrimento, os apelos deste e dos colegas de cela fizeram então com que o comandante (saliente-se que este estava informado por escrito, pelo próprio e pelos outros colegas da cela, da situação em causa) o mandasse ao médico. Este de imediato se pronunciou no sentido de ser indispensável repouso absoluto, a medicação habitual, e leite, por ser o alimento apropriado naquelas circunstâncias.
Julgaram então os companheiros e o próprio que ele seria mandado para casa, ou pelo menos ouvido nesse dia.
Engano crasso: apesar da crítica situação observada, com a hemorragia no estômago constatada pelo clínico, apesar das recomendações deste, Arantes dos Santos continuou ali, sem medicamentos, sem sequer um copo de leite, sem nunca ser interrogado ou informado por alguém sobre as razões da sua prisão, sem voltar a ter contacto com o médico.
Ao fim de mais uma semana, com o seu estado de saúde cada vez mais visivelmente debilitado, decidiram mandá-lo embora, consignando-se então no mandado de soltura (finalmente um papel!) que tal acontecia porque "por agora" era "desnecessário às averiguações".
Ignora-se de todo quais fossem essas averiguações, já que nunca houve qualquer informação a esse respeito, nem no caso é possível depreender o que fosse, já que Arantes Santos nunca na vida tinha tido qualquer actividade política.
Resumindo, o Eng. Arantes Santos veio a ter um período de detenção bem mais curto que os restantes detidos das várias levas desses tempos revolucionários. Três semanas. Recolheu porém a sua casa com o seu problema de saúde irremediavelmente agravado. Apesar de todos os esforços, não foi possível salvá-lo: ainda viveu algum tempo, em condições extremas, mas veio a falecer na madrugada de 3 de Dezembro seguinte.
Nunca se chegou a saber o que esteve na base da sua prisão. Mais tarde, em reacção a diligências da família, o mesmo COPCON, que o tinha prendido, viria a declarar por escrito (Otelo) que tal prisão fora devida "a má fé".
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