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terça-feira, julho 20, 2004

GENIALIDADES 

Uma respeitável pessoa humana, vítima, é claro, da opressão social, entra, v. g. em Paialvo, na casa de uma pobre velha, torturando-a para que confesse onde guarda o seu "oiro", depois disso corta-a aos bocados que enterra. Após esse cometimento fugiu para um país onde não se acolhiam pedidos de extradição. Passados longuíssimos anos regressa a Portugal sem que seja possível mover-lhe qualquer processo ou aplicar-lhe pena. Beneficiou — e bem — da chamada prescrição. Um capitão das Waffen S.S.  recebeu ordem — que cumpriu — para exercer represálias sobre a população de uma cidade sérvia onde foram, traiçoeiramente, assassinados pelas costas, soldados da Wehrmacht, desarmados, em gozo de licença. É proclamado réu de crimes de guerra, de crimes contra a humanidade e não sei que mais. Perseguido até ao fim da vida, para ele a mansuetude da prescrição não existe. Esta só é boa para os vulgares assassinos, violadores, etc.
Sempre me curvei, reverente, perante tão estimável manifestação da justiça democrática.
Infelizmente esta só se aplica, até agora, àquilo que, habitualmente, se chamam acções, quando devia abranger livros, discursos, etc, que estivessem fora da ortodoxia e pusessem em causa o sagrado respeito pelo homem e ideias similares.
Estando em boas mãos os direitos de autor de obras portadoras do vírus fascista torna-se urgente que sejam imprescritíveis.
Ai de nós, porém: ainda não chegamos a esse grau de perfeição, embora algo se tenha feito no bom sentido. Pouco, todavia. A entrada no domínio público dos trabalhos de um autor passou de cinquenta para setenta anos, a seguir à morte deste, conforme dispõe o Decreto-lei n.º 334/97, art. 2º, vigente de acordo com o art. 5º desse diploma, a partir de 1 de Julho de 1995. Recorreu-se, pois, brilhantemente à retroactividade.
Isso permitiu que certos volumes heterodoxos, de manifesta perigosidade, pudessem ser interditos. Assim sucedeu com a tradução portuguesa do Mein Kampf. Este, propriedade intelectual da Baviera contemporânea, não é publicável à vontade, seja por quem fôr e seja como fôr. Seria, contudo, errado pensar-se que a Baviera aferrolha, ávidamente, para si, com furiosa avidez, a possibilidade de se editar o Mein Kampf  nesta ou naquela língua. Nada disso! A Baviera actual é generosa e tolerante. Como explica o cultíssimo e originalíssimo Sr. Clemens Betzel, porta-voz da Embaixada da Alemanha, o Estado da Baviera não tem por hábito alienar os seus direitos de autor no tocante ao Mein Kampf, a não ser por critérios científicos. Um tal respeito pela ciência é simplesmente tocante. O sr. Betzel não se fica por aí e prossegue, magnificamente: "mas vender o livro com uma foto simpática de Hitler e fazer publicidade nas livrarias com tiragens muito grandes, isso ultrapassa o critério científico" (sic). Descoberta genial. A ciência é incompatível com as fotos simpáticas e as grandes tiragens.
Um estudo de física de Niels Bohr, lançado aos milhares de exemplares e com foto simpática deste último, perderia a índole científica. Esta delimitação do científico, tão inovadora e curiosa, permitam-me que a aplauda com mãos ambas.
Se em Lisboa tivessem aparecido tão só quinhentos exemplares, com uma capa em que Hitler, num esgar, mostrasse a língua aos leitores, já o Estado bávaro, feliz e sorridente, não se teria oposto a semelhante edição. É que os critérios científicos haviam sido respeitados.
Em todo o caso, sem desdenhar da descoberta do Sr. Betzel acerca dos citados critérios, com legítimo orgulho chamamos a atenção para o facto de que escritores portugueses os ultrapassaram — ou não fossemos um país de descobridores.
O Sr. João Barrento, "professor" (espero que catedrático e doutorado) "de literatura alemã na Universidade Nova de Lisboa", numa suculenta entrevista a "Metro", suplemento do referido Semanário, responde, desta forma decisiva, à pergunta: "Quais foram as fontes de Hitler?": "Há alguns ideólogos de que aliás Hitler não se serve muito porque não se alimenta de literatura anti-semita. Aparentemente não lhe interessam muito. Ele percorre, ainda na Áustria, nos primeiros anos da década de 20, uma série de lugares e ouve muitos oradores anti-semitas em reuniões e comícios. Essa é a sua grande fonte. Não há uma investigação ou fontes históricas. Mas há alguns ideólogos, Spengler, Rosenberg e o Mito do Século XX".
Sem dúvida, biógrafos como Michel Gorel, Allan Bullock, Görlitz e Quint, Joachim Fest, Werner Maser situam o Führer na Baviera, nos primeiros anos da década de 20. Estarão errados? Não, com certeza. Trata-se de notáveis especialistas na matéria, e nem o Sr. Barrento se refere a lapso dos mesmos. Estará este equivocado? Claro que não, porque com as suas responsabilidades de Mestre insigne, de estudioso reputado, não ia fazer afirmações no ar. Se declara que Hitler estava, ainda, na Áustria nos primeiros anos da década de 20, seguramente as suas rigorosas averiguações o conduziram, com segurança, a tal conclusão.
Impõe-se por conseguinte, acreditar que Hitler, nos primeiros anos da década de 20 se encontrava, simultaneamente, na Áustria e na Baviera. Nada mais fácil de admitir. É que possuía o dom da ubiquidade.
Em 1923, por exemplo, escutava na Áustria oradores anti-semitas e, em Munique, tentava o célebre Putsch que o levou à prisão. Por obra e graça de Barrento, adquirimos um novo e importante conhecimento acerca de Adolf Hitler.
E, também, ficamos esclarecidos sobre outro relevante ponto.
As concepções hitlerianas, compendiadas no Mein Kampf, que apareceu em 1925 e 1926, foram influenciadas pelo Mito do Século XX de Rosenberg, de 1930. Hitler, portanto, era dotado de presciência. Ao redigir a sua obra — a primeira parte no cárcere, em 1924 — penetrou na mente de Rosenberg e aí leu o Mythos, surgido bastante depois. O Sr. Barrento, sem favor, meteu o Sr. Betzel num chinelo. Mes compliments Monsieur.
Deus seja louvado, que não nos ficamos por aqui no que diz respeito a novidades sensacionais. Henrique Botequilha e Torcato Sepúlveda informam-nos que um dos responsáveis da editora Hugin "aprecia mais os irmãos Strasser (camisas castanhas vítimas, em 1934, da Noite das Facas Longas) do que Adolf Hitler".
Eu possuo um livro, assaz ignóbil de resto, de Otto Strasser, que ele próprio data de 1940. Deste modo, podem-se escrever livros depois da morte. Abençoada e consoladora revelação. Sinto uma alma nova. Publiquei, até hoje, que estou com os pés para a cova, uns tantos volumes (cujas ideias básicas de nenhum modo renego) de uma honesta mediania. Talvez venha a produzir obras-primas no Cemitério dos Prazeres.  Bendito Semanário.
Resta-me fazer votos no sentido de que as meritórias disposições anti-fascistas, legalmente vigentes cá no rectângulo, se estendam a escritos, conferências e coisas análogas. Se a memória me não falha, a boa doutrina a tal respeito foi já exposta pelo genial Louçã. Cada qual pode pensar como quiser. Sua Excelência concede isso magnanimamente. Que, porém, o pensamento se manifeste num jantar privado, celebrando o 28 de Maio ou numa missa em intenção de Salazar, ou num artigo de crítica à democracia, ou num ensaio contra-revolucionário, é a abominação de desolação. Proíbam-se imediatamente. Eis as autênticas liberdade de expressão e reunião numa genuína e louçã democracia.  
António José de Brito


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