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segunda-feira, agosto 23, 2004

As revoluções são sempre iguais 

Há duas histórias: ou melhor, dois discursos. O dos revolucionários e o dos reaccionários, o dos vencedores e o dos vencidos, o dos que fazem a História e o dos que a sofrem. Oficialmente, a Revolução Francesa foi um movimento libertador; e talvez até tenha sido. Qualquer criança desta metade do mundo aprende a tomada da Bastilha, a Declaração dos Direitos do Homem, a Abolição dos Privilégios. 0 Terror, a Guilhotina, os afogamentos de Nantes, os massacres de Lyon, o genocídio da Vendeia, são, ao lado, pequenos episódios, preços necessários, o tributo ao grande deus das Revoluções. Quase notas em pé de página, numa narrativa heróica feita de
imagens d'Épinal, jovens de cabelos ao vento, glórias libertadoras, esmagando os símbolos odiosos do Antigo Regime.
Foi preciso um século para que se começasse a contar o outro lado das coisas, a contabilizar, a fazer o balanço.
Também aquém-Mancha se aprende a admirar as modelares instituições britânicas. A guerra civil, a ditadura militar dos iluminados cabeças redondas, o genocídio irlandês operado pelas tropas do Protector, são também episódios, pormenores, a tal conta de cadáveres e destroços que a Liberdade manda aos povos que a escolhem.
0 marxismo é uma espécie de religião para intelectuais e proletários dalguns países do Ocidente. Para os pequenos caciques da agit-prop, para os aparatchiks dos srs. Marchais, Carrillo ou Cunhal, para os escritores antifascistas profissionais, a Revolução Vermelha de Outubro é uma epopeia. Como as sagas dos Heróis para os bárbaros do Norte, a viagem dos Argonautas para os árias do Egeu, os filhos da Loba para os romanos da República, a vida de Washington para os jovens da Nova Inglaterra. Fala-se de Lenine, mas esquece-se Estaline; há o "Potemkine"; mas ninguém se lembra da Tcheka; pintar-se-ão alegorias, de mau gosto mas boa intenção, do assalto ao Palácio de Inverno. Mas fica esquecida a Lubianka e nunca ninguém fotografou uma cela da NKVD ou filmou a marcha para a morte dos "koulaks". Quanto à
estatística dos cinquenta milhões de vítimas da construção do socialismo na URSS, estabeleceu-se que é uma provocação fascista. Mesmo para os mais rigoristas haverá sempre uma bela escusa: a moral dos resultados.
Assim, o discurso político acaba por ser o discurso mítico; das arengas de ocasião, das grandes frases de estilo, da linguagem pródiga em superlativos e retórica, só por milagre sairia qualquer coisa parecida com a realidade. Vendedores de ilusões, fabricantes de lendas, os homens que exercem a política por profissão, têm que alimentar o gosto dos seus clientes, do seu público, dos que os hão-de aplaudir, levar em ombros, votar em cerimónias solenes, quadrienais, festivas. 0 resto fica para a História. Que, por definição, trata de factos e pessoas passados, isto é, mortos.
A revolução de Abril de 1974 entra nesta parada mitológica que alimenta as gazetas e seus próceres. Compõe-se uma história singela, aventureira, com bom fim, para uso doméstico e exportação. Os capitães são jovens, democráticos, as armas levam cravos, o povo está alegre. Não corre sangue, senão duns populares, no assalto final aos quartéis da polícia política. Assim podem vir os estrangeiros e fazer uma bela reportagem - "De como os militares democratas derrubaram a velha Ditadura".
O resto fica para a História a fazer; pelos vencedores, enquanto dura a euforia, pelos vencidos na hora de pagar a conta. Assim há-de passar muita água no Tejo até que se comece a falar das tramas e conluios subjacentes; até que se desmistifique muito desta Abrilada folclórica, da acção dos serviços secretos das grandes potências, das contas na Suíça para alguns "heróis", das embaixadas estrangeiras que funcionaram como pivots e centros de contactos, dos compromissos assumidos por altos dirigentes do Regime vencido para com os vencedores, das estratégias estabelecidas, muito longe, nos centros conhecidos ou clandestinos que conduzem a vida dos homens e povos que se deixam mandar, ou são traídos por alguns dos seus ao serviço das internacionais - do cifrão, da foice e martelo, do compasso e esquadro, da rosa encarnada, sabe-se lá!
Na hora da verdade, que para os Portugueses é a vigésima quinta, mesmo a quem pode começar a puxar-lhe os fios falta às vezes a ânimo. Há tanta coisa irremediável que qualquer um se queda perplexo ao remexer estas cinzas quentes do que foi uma Pátria, os arquivos da sua destruição, os nomes dos seus assassinos, homicidas voluntários ou involuntários réus de premeditação e traição ou pobres-diabos mentecaptos, que um dia ultrapassaram, levados pela ambição, um grau de incompetência excedido há muito.
Mas é assim. Fruto de acaso ou da necessidade, da sorte ou da conspiração, uma revolução destruiu um povo, transformou a qeopolítica dos blocos, alterou as relações de força em dois continentes, abriu portas, quem sabe, para conflitos de grandes proporções em dois pontos quentes do mundo - a Península Ibérica e a África Austral. Dessa revolução todos fomos agentes, testemunhas ou vítimas. Com ela todos perdemos ou vamos perder. Talvez por isso tenhamos o dever de a contar, ainda que, na verdade, a lição alheia nunca sirva de escarmento a ninguém.
Jaime Nogueira Pinto

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