<$BlogRSDURL$>

terça-feira, agosto 10, 2004

CULTURA E CONTRA-CULTURA 

A ideia de Cultura, que continua a ser identificada, na maior parte dos casos, com o conhecimento livresco, com as instituições educativas, com quatro ou cinco obras de arte, já de há muito superou este estádio e por força das investigações sociológicas e antropológicas ganhou matizes e incorporou significados que interessa ter presente ao reflectir sobre a Política e a Nação.
Este desenvolvimento moderno do conceito desligou-o da literatura e fê-lo aproximar-se do campo experimental, fazendo-o coincidir com a totalidade da herança espiritual e material do homem. Assim, longe da interpretação marxista, que vê na Cultura a mera expressão predeterminada das relações de produção, uma superestrutura mental criada pela burguesia capitalista com o fim de justificar, no campo moral, a exploração do proletariado, o discurso científico do século XX oferece uma superação deste reducionismo e uma concepção mais ampla e testada em investigações de campo. Culturólogos como Margaret Mead, Franz Boas, Marcel Mauss, Levy Strauss, Bronislaw Malinowsky, Robert Redfield, Carlton S. Coon, expoentes da velha escola da Antropologia Cultural, do mesmo modo que investigadores mais modernos e experimentalistas, como Ralph Darendhorf, Eibl-Eibesfeldt, Konrad Lorenz, Shapiro, e outros, são unânimes em definir a Cultura como o complexo herdado de meios de actuação, materiais e espirituais, extrabiológicos. Deste modo, os valores, a língua, os padrões de comportamento gerais e especiais, a ideologia, a moralidade, as formas políticas, são parte integrante da Cultura, do mesmo modo que a tecnologia, o regime, os modos de produção, as características sociais e a utilizacão dos bens económicos.
As Culturas são, por isso, amplos conglomerados de padrões, de sistemas e estruturas (daí a Teoria Geral dos Sistemas de Ludwig von Bertalanffy), integrados por uma lógica própria, com um sentido histórico e uma vocação que evoluem ao largo do tempo. Não são produto de uma determinada classe, de um específico modo de produção, mas o fruto do trabalho e inventiva de sucessivas gerações de homens que foram somando e conservando conhecimentos, ideologias, religiões, dando gradualmente origem a uma distinta mundivisão (weltenschaung). Não constituem um aparelho repressivo ao serviço dos grandes, mas sim um dispositivo que a todos favorece, orienta e protege, embora desigualmente. Não são formas antinaturais ou artificiais, antes oferecem um enquadramento natural ao homem: proporcionam as referências valorativas e técnicas, os modelos de comportamento e o projecto de vida em comum. Contêm nas suas matrizes profundas a razão de ser do indivíduo e da comunidade, e isto porque é na totalidade do meio cultural que se acumulam e organizam as tradições históricas e sociais, os hábitos e ritos vinculadores, que fazem com que as pessoas participem no mesmo projecto de vida comunitária com um mínimo de conflitualidade interna.
Por aqui se vê como um ataque coordenado aos centros estratégicos da Cultura pode ser fatal para o Povo e o Estado. Na verdade, esse assalto pode mudar ou aniquilar as características nacionais, ao fazer pressão sobre as estruturas fundamentais como o sistema tradicional de valores, as instituições naturais (família, comunidade, local, nação), a religião e outros subsistemas sociais. A experiência histórica confirma que o "choque cultural" pode matar uma civilização. Os valores dos impérios sul-americanos (inca, azteca, maia) não resistiram aos sistemas castelhanos. 0 Japão foi ocidentalizado rapidamente e nas ilhas de Polinésia muitos povos desistiram de viver depois da desintegração das suas culturas tradicionais, em choque com os modos ingleses. Ao desaparecerem os deuses, os feiticeiros, as relações pessoais, a magia, e toda a estrutura valorativa que justificava a vida individual e social, essas comunidades desapareceram.
A Cultura era a sua defesa.

NATUREZA E CULTURA
0 homem é, portanto, um animal portador de cultura, e é esse elemento que o distingue dos outros primatas sociais. Estes, embora na posse de tradições (ver Lorenz, Schaller, Marais), nunca se revelaram capazes de as dinamizar com inventos, transmitindo e acumulando nas suas sociedades hierarquizadas as descobertas dos génios individuais. Como explica Konrad Lorenz, só a tradição humana é cumulativa, o que possibilita o progresso do conhecimento e o aperfeiçoamento constante do aparelho cultural face à realidade. Daí que qualquer retrocesso neste processo de adequação das sociedades ao meio se deva entender como uma involução perigosa para a humanidade.
É por isso que os movimentos inspirados nas palavras de ordem de Jacob Rousseau, ao propagar que o homem é originalmente bom e ao ver na cultura o vector da corrupção, não veiculam mais que um romantismo perigoso. Os grupos que levaram à prática tais ideias, isolando-se em ilhas afortunadas e afastando conscientemente toda a capa cultural, acabaram caçando-se uns aos outros (ver "El Mono Vestido", Nácher, Rotativa). O regresso à Natureza, ao paraíso perdido, onde o homem livre da influência perniciosa da civilização (cultura) levaria uma vida pacífica e alegre, não passa de um dos elementos mais conhecidos da mitologia romântica do século XIX, expoente de uma espantosa ignorância antropológica e de um preconceito sem tempo: a ideia de que o homem se faz de fora para dentro. Ora a Genética prova que o homem se faz de dentro para fora, bem como a Etologia e a experiência mística documentada. Sem cultura, como põem em evidência as investigações de Robert Broom e de Raymond Dart na savana sul-africana e da família Leakey no Quénia, o homem nem sequer chegaria a ter o peso civilizacional do homem-macaco (australopiteco), uma vez que estes ascendentes do homo sapiens já tinham uma cultura material e espiritual: viviam em sociedades territoriais hierarquizadas, praticavam a caça comunitária, comunicavam-se por um código grupal e usavam armas. A sua Cultura de Seixos, como foi designada, permitiu-lhes sobreviver no meio natural, onde a concorrência com os grandes predadores e outros grupos de hominídeos exigia o aperfeiçoamento contínuo do aparelho cultural.
O homem moderno (chamado o Cro-Magnon) quando surge na cena do Mundo já é um ser de Cultura, formando parte de uma sociedade hierarquizada de predadores. A Cultura não vem por acrescentamento. É-lhe muito anterior. 0 Sapiens é apenas o herdeiro dos primatas sociais e dos australopitecos. Dos primeiros herdou o instinto territorial, que o obriga a defender e a lutar por um espaço determinado, e a estrutura social - as vinculações subtis da hierarquia e da cooperação. Dos macacos do sul aproveitou todas as invenções, especialmente um elemento da sua tecnologia guerreira de predadores: a arma. Efectivamente, a arma não é uma invenção humana. É também um descobrimento dos australopitecos que a nossa raça herdou e que jamais deixou de aperfeiçoar. Como vimos, a nossa Cultura tem raizes pré-humanas (estrutura territorial e hierárquica), mergulhando profundamente nos capitais descobrimentos tecnológicos dos macacos-do-sul, exemplarmente estudados por Raymond Dart.
A conclusão que os românticos recusam é extremamente evidente: a Cultura constitui o meio natural do homem. Não foi inventada, nem determinada por factores sociais que lhe são posteriores. É uma realidade pré-humana, que entronca directamente na sociedade animal dos primatas superiores, como ensina a Etologia e verifica a Genética. Em nenhum momento da história humana ou Pré-humana houve um homem ou um australopiteco isolado e sem um aparato cultural mínimo, perfeitamente natural no sentido de Rousseau e outros românticos. Mas se o tivesse havido, não passaria de um animal inferior, sem consciência de si mesmo ou do meio em termos supra-animais. Tarzan é um mito. Um homem criado por gorilas é um gorila inferior, impregnado pelas tradições societárias destes animais.
Cultura e Natureza não são pólos de uma contradição, mas apenas mundos complementares e interdependentes em que desenvolve a actividade humana. A oposição cultura/natureza só tem significado como uma mistificação anticultural e, por isso mesmo, fruto de um pensamento atrasado em relação aos dados da Ciência do nosso século.
Ora, num tempo que a moda dos movimentos contraculturais é lançada por renovados rousseauístas, pelas correntes freudomarxistas de libertação que exploram a polarização simplista cultura=repressão contra natureza=libertação (esquecendo no seu próprio campo Melanie Klein), por novos alucinados como Marcuse, há que proclamar cada vez com mais claridade a palavra de ordem do grande antropólogo Arnold Gehlen: "Regresso à Cultura", reivindicando a nossa humanidade.
António Marques Bessa

0 Comentários
Comments: Enviar um comentário
Divulgue o seu blog! Blog search directory

This page is powered by Blogger. Isn't yours?