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sábado, agosto 21, 2004

O morto que não morreu 

Os grandes Mortos têm essa qualidade de vida, de permanência que os torna companheiros e oráculos pelo mistério da sua intrínseca contemporaneidade.
Nos dias que correm, quantos estão tentados a reflectir no legado dos que foram, como o Prof. Salazar, titulares de uma época, consanguíneos dum desespero e duma esperança colectivas? Talvez poucos e, por outro lado, porventura milhões, porque a tragédia deste País começou a alvorecer, como alvorecem a noite e o pesadelo, quando se começou a viver a tentação das divisões e das disputas vitais. É que os povos com a substância e o perfil tão marcadamente peculiar deste abandonam o fascínio dos Ideais quando o relógio do tempo avança os ponteiros para o obscuro e terrível minuto que devasta o rosto do Chefe, convocando todas as perplexidades e todos os terrores para um futuro desencarnado da pulsão vital daqueles que souberam ou poderiam modelá-lo.
Com a debilidade de Salazar, com a sua insuficiência e o seu desgaste, os países que coabitam aqui tomaram caminhos diversos para confluirem ao cabo do tempo que cada qual teve para os percorrer, no definitivo fim de Portugal, como aqui e ali se entendia, amava e servia.
Salazar, enfim, não morreu, mas o país acabou. A permanência desse homem singular impele à aguda urgência de uma meditação sobre a campa rasa, sobre a palavra redescoberta, sobre o exemplo obscurecido pela lonjura dos dias e a maledicência feroz dos que tiveram apenas a coragem fácil da fúria abjecta de retalharem dois cadáveres: o de um homem e o de um povo.
"Se Salazar fosse vivo não haveria o 25 de Abril!" - desabafa-se com mais profundidade e clarividência do que parece à primeira vista. Mesmo reduzido a um despojo, olhando os lacaios, os fâmulos e o jardim com a pureza penetrante do olhar que têm os velhos e as crianças, não teria havido um 25 de Abril, que foi, nada mais nada menos, que a ausência do Príncipe - tão varonilmente elaborado nesse claustro da solidão e do silêncio, povoado pelos cheiros do Império, pelas suas obrigações e pelos seus imperativos. É que parece cada vez mais evidente que não era Salazar que metia medo, mas eram "eles" que tinham medo, aquela espécie de pânico supersticioso que se tem pelos ausentes que erram na impregnação dos longos convívios. Desfiguraram-lhe a casa e exilaram-lhe os móveis, para apagar o gesto lento e pálido que os que partem implantam na geografia dos domínios que configuraram.
Este país e estes homens têm o pendor feminino para as reincidências no pecado até ao apagamento do último protesto da virtude.
Este país e este povo matam os seus heróis e fogem dos seus cadáveres. Salazar, em suma, mesmo moribundo, interditaria os caminhos que foram dar ao Carmo, ou talvez fosse melhor dizer, ninguém tentaria imaginar a possibilidade de chegar ao Carmo, essa trágica e ridícula confluência de tanques desengonçados, de soldados que não teriam mais que ir para o Ultramar, de progressistas permissivos, de cidadãos cansados pela vigília da desencantada nostalgia dum Chefe.
Tudo o que se pode dizer de Salazar não deveria andar muito distanciado da procura crítica duma nova esperança construída no desprezo da voracidade canibalesca dos partidos, na gula dos secretários-gerais ungidos na fulgurante dissipação do País e no ridículo sangrento da conquista do direito de roubar ao futuro o património que o sustentaria.
"Eles" tinham medo de Salazar e se continuam a tê-lo ainda tão fundo, tão odioso e tão sacrílego é porque ele viverá um dia, na vocação diferente de quem retome a grandeza, a severidade e o magistério para livrar o povo das agruras e das misérias da "liberdade".
TAVARES DE ALMEIDA

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