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quarta-feira, agosto 25, 2004

O SILÊNCIO DA CULTURA 

A cultura portuguesa sofreu praticamente um eclipse nestes últimos anos. Basta frequentar as bibliotecas, entrar nas livrarias ou ler os jornais para se ter plena consciência disto. É certo que muitas editoras tiveram, pelo menos aparentemente, um grande aumento de actividade e surgiram novas editoras que produziram livros como quem produz pão: quase diariamente. Publicou-se muito do que não convinha publicar e pouco - ou quase nada - do que interessava pôr cá fora. Traduziram-se - quase sempre mal e apressadamente - obras de autores medíocres e a granel, certamente com a intenção de as vender a peso. Apareceram tantas revistas e tantos jornais que é difícil saber quantos há actualmente, embora tenham desaparecido, ou perdido em seriedade e importância, as revistas de índole cultural ou as páginas literárias dos jornais diários. Realizaram-se sessões de dinamização cultural, encontros, colóquios, mesas-redondas. E, no entanto, pouco ou mesmo nada se lucrou com toda esta laboriosa actividade, porque os seus intuitos não eram culturais mas pura e simplesmente políticos.
Alguns escritores abandonaram os géneros literários que tinham cultivado anteriormente e publicaram obras de exegese política, no que rivalizaram muitas vezes com os próprios intervenientes - agora também eles escritores - dos acontecimentos históricos que pretendiam interpretar e que, normalmente, só tinham pegado na caneta e no papel para escrever cartas à família. Na euforia política, tudo se publicou, sem cuidar se bom, se mau, sob a ténue capa do argumento do valor do testemunho, que não é suficiente para justificar a publicação de obras medíocres e as mais das vezes destituídas mesmo de qualquer interesse documental. A cultura especificamente portuguesa desapareceu, assim, quase sem deixar rasto, salvo uma ou outra excepção, perdida ingloriamente na selva obscura da enxurrada editorial.
A política pretendeu roubar o lugar à cultura, quer através de arbitrários saneamentos - agora considerados "selvagens" por muitos dos que então os aplaudiram - de pessoas e de instituições, quer também pelo desprezo, que em alguns casos se transformou em ódio baixo e mesquinho, por tudo o que fosse especificamente nacional e verdadeiramente português. A Língua, que talvez seja necessário lembrar é um dos símbolos da unidade nacional, tem sido alvo de todo o tipo de ataques e de incúrias, fruto muitas vezes apenas da falta de cultura e de dignidade dos que teimam em falar publicamente uma língua que mal conhecem em privado.
Proscritos os clássicos, porque sabiam demais, usa-se agora, com ar pomposo
e grave, a linguagem da gíria ou do calão, aquilo a que já Bluteau chamava,
no séc. XVIII, a "Linguagem dos Marotos". E, no entanto, enquanto nós aqui, nesta faixa que agora querem mais europeia do que dantes, desprezamos a língua que é veículo de cultura e traço de união entre todos os portugueses, na vizinha Espanha, mais propriamente na Galiza, renascem os estudos tendentes a uma unificação ortográfica galego-portuguesa, que não tire as características peculiares ao galego moderno, antes as fortaleça.
A História, que não é apenas o estudo do que se passou mas sobretudo daquilo que permanece e daí que seja, no dizer de Cícero, o testemunho dos tempos e a mestra da vida, desapareceu - em determinado período que nada nem ninguém nos garante não volte num futuro próximo - praticamente do currículo escolar, para que a lembrança da grandeza do passado não nos mostre, por contraste, a mesquinhez do presente. Mas assim como não é destruindo os padrões dos navegadores de quinhentos que a histórica presença portuguesa m África desaparece, também não é esquecendo a nossa História que ela deixa de existir. E o tempo, que tudo cobre e põe no seu lugar, há-de vir, no futuro, juntar à História do passado a anti-História do presente.
A arte, que é outra manifestação da cultura nacional, é considerada agora apenas pelo seu valor económico. As obras de arte são vistas, não pelo valor que têm em si mesmas, mas pelo que representam em termos de desenvolvimento turístico e económico. Os monumentos atraem os turistas como o mel as moscas e, por isso, há que defender e preservar essas obras de arte. Mas só por isso. O resto, para usar a linguagem estereotipada do presente, é "uma atitude burguesa que a nada conduz".
A literatura nacional foi absorvida, como já se disse, pela política; e o nível baixou assustadoramente, como as águas das albufeiras em período de seca. Faltou-lhe a sinceridade e a audácia para ultrapassar a mediocridade que se foi instalando aos poucos em toda a parte e em todos os lugares.
Tornou-se monocórdica, repetindo incessantemente lugares-comuns e frases ocas. Os rasgos de génio, ou de talento, extinguiram-se ou quedaram-se no fundo das gavetas esquecidas que talvez o futuro venha teimosamente a abrir.
A política reduziu a cultura ao silêncio. O fenómeno não é, porém e infelizmente, novo. Já Oliveira Martins o detectava, em pleno regime liberal: "A vazia agitação política, resultado necessário dos regimes parlamentares, parece condenar os pequenos países a uma esterilidade intelectual, porque absorve todas as capacidades desde que desabrocham. A direcção moral que só a ciência pode dar desaparece, e os institutos e as academias vazam-se para encher o parlamento e alimentar o jornalismo. Vê-se, pois, uma educação aparentemente mais extensa, mas de facto sem intensidade, nem vigor, condenada a uma decadência fatal. Não se sabe mais do que o praticamente indispensável, e por isso mesmo a craveira do saber necessário se fecha diariamente, chegando-se afinal a uma vulgaridade banal".
Há, na história das nações, silêncios fecundos que são gérmens de futuras realizações culturais. São como que pausas para meditação. Mas também há silêncios que são prenuncios de morte. E então de nada vale ter-se uma riquíssima tradição cultural. Será o actual silêncio da nossa cultura um silêncio fecundo? Só o futuro, que nós quisermos e soubermos construir no presente, nos dará a resposta.
António Leite da Costa

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