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segunda-feira, setembro 13, 2004

ESSE PRECLARÍSSIMO GUSTAVO CORÇÃO… 

Se obra de pensamento existe, plasmada no nosso idioma, que se me afigure insuplantavelmente esclarecida e esclarecedora - e, como tal, de leitura inteiramente obrigatória, mormente entre nós e nos dias que correm - , essa é a obra (a obra toda) de Gustavo Corção. Chamo-a a comparecer, aqui e agora, nesta página de DOUTRINA, avocando, para o efeito, aquele dos livros do mestre brasileiro que mais susceptível me parece de recuperar para o domínio da verdade os que mais arredios dela têm andado. Falo, concretamente, d'"O SÉCULO DO NADA", à hora em que o mesmo regista e conhece a honra e a glória de mais uma edição em língua estrangeira.
Na casa dos oitenta bem entrados, chegou Corção áquela idade - diz ele - "que costuma trazer aos homens lucidez já inválida para o mundo, mas ainda proveitosa para a eternidade".
Válida e proveitosa para o mundo se revela, porém, a lucidez faiscante que o nosso genial octogenário estadeia, com exuberância, ao longo e ao largo do livro citado; e, com ele, terá escrito Gustavo Corção, seguramente, "o livro do século": o livro, por excelência, deste estúpido século XX; o livro negro deste século execrável, a que o autor, com toda a propriedade, chama O SÉCULO DO NADA.
Trata-se, em primeira análise, de uma longa metragem de quatrocentas e tantas páginas, de sinal acentuadamente polémico e outrossim especulativo, e redigidas por Corção ao peso imperioso de uma grande urgência de falar claro e de acertar contas que andam erradas na tabuada política triunfante.
Em definitivo, muito poucos livros haverá, creio eu, que de perto ou de longe possam comparar-se a este em que "Um velho leigo, olhando em volta de si, sai pelo espaço e pelo tempo a fazer interrogações": as mais pertinentes, diga-se, e também as mais destemidas e decisivas formulações, que já algum dia foram suscitadas a alguém por esta encruzilhada de traições que é o século XX.
Invariavelmente conduzido à luz escaldante dos testemunhos e dos textos (logo, com copiosa profusão de elementos informativos a acompanhá-lo), este monumental trabalho de Corção dá lugar a todo um irrespondível e muitíssimo cerrado levantamento de razões, que têm o condão de sonegar aos falsificadores, e de iluminar imparavelmente, sucessos capitais desta centúria toda, como sejam, designadamente: o caso Dreyfus ("une ténébreuse affaire"); a excomunhão da ACTION FRANÇAISE; a aventura personalista; a guerra civil espanhola (comenta Corção: "Em 1936, também na França começa uma guerra civil, mas em lugar de um alzamiento desenha-se um abaissement"); as linhas tortuosíssimas e cem por cento iníquas com que se coseu a acção da jurisprudência resistencialista, na França de 45; e o aggiornammento cismatizante, decorrente do Concílio Vaticano II.
Obra de combate e obra de reflexão, em presença dela acha-se o leitor diante de um copioso painel, de um magnífico afresco, de um dilatado cosmorama e, sobretudo, de um estudo altamente dissecatório e de um aturadíssimo inventário "das nascentes e dos afluentes históricos que, em nossos dias, se somam num enorme estuário de erros e perversidades". ("O estuário se explica pelas nascentes e pelos afluentes" - sublinha e pondera ele, às duas por três). E, orientado de montante para jusante, vai-se ao curso histórico e político, mental e moral, desta era toda, e submete-o a intensa perquirição.
Para tanto, trata de convocar a pleito um fabuloso acervo documental; e, agindo na plenitude de um conhecimento de origens e circunstâncias - sempre acareadas por ele com exemplaridade de processos -, ei-lo que desencobre, e põe ao léu, toda a rematada imposturice desta idade humana, marcada ideologicamente pelo patológico favor concedido às esquerdas: essa "sinistra explosão de sinistrite", que um pouco por toda a parte contamina opções e juízos, inquina movimentos e instituições, não poupando sequer a própria igreja, onde maleficamente acabou também por implantar arraiais.
Avisada, a voz de Corção ergue-se, assim, em pleno principado das trevas, a denunciar o pacto com Satã, e a imputar a culpa toda do descalabro fragoroso dos dias presente à praga devastadora dos esquerdistas, esses que a si mesmos se julgam os motoristas da História Humana, concluindo Corção que é traço definidor de todo o intelectual de esquerda "o de nunca tirar lição dos acontecimentos, porque estes o censuram".
Na linha do velho (e sempre actual) Charles Péguy, Corção aqui está, também ele a clamar, e também ele a insurgir-se, com frontal destemor, contra as cobardias e abdicações sem nome que os homens de hoje vêm praticando, "só com o receio de não parecerem estar bastante à esquerda". Nesse capítulo, responsabiliza ele, muito especialmente, a nefanda casta dos intelectuais bem-pensantes; e, chamando a si perplexas palavras de Léon Bloy, indaga, de caminho, o mesmo Corção: "De que futuro nos falam eles, então, esses esperantes às avessas, esses escavadores do nada?"
Possuído de uma cólera sagrada que, todavia não exclui, nele, absoluta serenidade de análise e total seriedade de procedimentos - Gustavo Corção consuma, assim, uma sátira enorme, uma enorme diatribe, um imenso libelo, instruindo, a golpes de implacável clarividência, o processo inteirinho deste século, que só não será bem O SÉCULO DO NADA porque foi, afinal de contas, ao longo dele, que ganhou corpo a obra de Corção e de mais alguns de igual estatura.
E vêm a ser de Bernanos as palavras que, porventura, melhor definirão a atitude do autor perante a matéria versada: assiste-lhe, de facto, todo o direito de juntar a sua à voz do grande fundibulário francês, e de bradar com ele: "Não! Não é por pessimismo e desespero que eu rejeito o mundo moderno; eu o recuso com todas as forças da minha esperança!"
Em síntese: Estava escrito que Gustavo Corção mais uma vez havia de conduzir-nos às cumeadas supremas da especulação filosófica e da problemática histórica e política, em obra de amplíssima respiração e de largo fôlego polémico sobre o nosso abominável século XX, fazendo deste a única leitura lógica admissível.
Com "O SÉCULO DO NADA" dá-nos, assim, Gustavo Corção, um alto exemplo de hombridade mental; e, sobretudo, volta a ministrar-nos mais uma lição de abismo.
RODRIGO EMÍLIO (1976)

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