<$BlogRSDURL$>

quarta-feira, setembro 15, 2004

A exploração do homem pelo homem 

A condenação indignada da exploração do homem pelo homem é um dos temas mais frequentemente glosados nesta nossa deliciosa época.
Inútil dizer que chegaram a ser apontadas como manifestações de uma tal exploração as mais razoáveis e compreensíveis regras de disciplina social, verificando-se, até, em pleno reinado de Vasco Gonçalves, o curioso fenómeno de operários de certas empresas nacionalizadas e funcionários de serviços públicos, por um lado se proclamarem, aos gritos, altamente explorados e por outro, esfalfarem-se a garantir com arroubos de eloquência, que o "Estado", que tinha aquele pobre coronel desequilibrado por expoente, era o legítimo representante das classes trabalhadoras.
Dentro de semelhante condicionalismo, esses operários e funcionários, a serem realmente explorados, só o poderiam ser, em última análise, por si próprios. A profunda originalidade do nosso prec teria produzido a figura ultra pitoresca da auto-exploração do homem pelo homem. Adiante, porém.
Não vamos discutir se a tão falada exploração do homem pelo homem é uma consequência inevitável do sistema capitalista ou se é, antes, algo acidental, que pode ter lugar em todos os sistemas, tempos e situações, de forma ocasional e estritamente fortuita. Isso implicaria uma discussão perfeitamente descabida neste momento, da célebre teoria marxista da mais valia que tantos ineptos aceitam, sem discussão nem reflexão, como a última palavra da ciência, não fazendo sequer ideia das objecções que lhe têm sido contrapostas. Pela nossa parte, limitamo-nos a exprimir a opinião de que Marx estabeleceu a noção de mais valia partindo de premissas em que ela estava mais ou menos subrepticiamente contida, movendo-se, deste modo, no terreno dá pura petição de princípio.
No entanto, não é sobre a realidade e a "etiologia" da exploração do homem pelo homem que vamos debruçar-nos, antes o que procuraremos rapidamente analisar são os motivos porque ela é merecedora de reprovação radical - questão moral, em vez de questão de facto, sociológica.
Um fundamento, e só um, parece surgir como razão decisiva do repúdio da exploração do homem pelo homem: é que cada homem concreto, existente, é um fim último, logo não pode ser utilizado como meio por ninguém. Esta é a concepção axiológica que se encontra subjacente nas críticas e construções de Marx e Engels, o que, aliás, se percebe perfeitamente, porquanto é sabida a influência que sobre eles exerceu Feuerbach, o qual, por seu turno, foi quem proclamou o lema "homo homini deus", procurando imprimir-lhe um sentido ético. Claro que em Feuerbach o que se escuta é ainda um eco, longínquo, da afirmação de Kant de que a pessoa é um fim em si mesma, só que - e com isto se transpunha um abismo - Kant considerava a pessoa sinónimo de natureza racional em geral, ao passo que Feuerbach exalçava o homem empírico.
Ora se cada homem empírico é um fim último, atentando a que, nessa qualidade, ele é profundamente diferente dos outros sucede, então, que cada homem tem de ver os restantes como meios em relação a si. Com efeito, não podemos sustentar que estamos perante um mesmo fim senão fazendo uma abstracção que suprime as diferenças individuais, isto é, suprime o homem empírico enquanto tal.
Estamos, sim, perante uma multiplicidade de fins diferentes em que, por consequência, cada um deles tem de encarar os restantes como não-fins, achando, portanto, em extremo curial utilizá-los em seu proveito, e, por isso, reduzi-los à condição de meio. Desta maneira, aquilo que parecia ser a barreira mais decisiva contra a licitude da exploração do homem pelo homem transforma-se, automaticamente no seu oposto - na legitimação do "omnium contra omnes", ou seja, da exploração de uns homens pelos outros.
Não vale a pena, para evitar tão lastimável consequência, recorrer à ideia de uma igual dignidade de todos os homens empíricos ou à tese da sua participação no valor comum do ser homem empírico. Pois como irão ter uma igual dignidade os homens empíricos, enquanto tais, se eles, empiricamente, são duma formidável disparidade? E como se pode aceitar que o ser homem empírico constitua um valor comum se o seu conteúdo se desdobra numa infinita série de diferenças? O ser homem empírico não passa de um nome genérico que designa umas tantas realidades entre si separadas e bem distintas. Encará-lo como algo de efectivo, como um fim autêntico, seria elevar à categoria de fim o indivíduo sem individualidade, de que falava Radbruch, cometendo-se um paralogismo flagrante.
A verdade é que fim último pode, apenas, ser aquilo que se situar, de modo inequívoco, acima da multiplicidade de forças divergentes que são os homens empíricos. Quando todos eles convergirem para um ponto único que esteja para além das respectivas particularidades, nessa altura é que se tornará óbvio por inteiro ao serviço de algo superior que lhe anula o egoísmo.
Quer isto significar que a exploração do homem pelo homem unicamente pode ser banida em nome de um ideal não humanista que não a pretenda eliminar de maneira directa e imediata. No terreno puramente humanista, no plano do endeusamento ou, até, do simples respeito pela eminente dignidade dos homens reais e concretos, é inevitável que cada um deles se julgue o centro das atenções e, por conseguinte, procure tudo subordinar a si, nesse tudo incluindo, conforme é evidente, o próximo, o outro homem.
António José de Brito

0 Comentários
Comments: Enviar um comentário
Divulgue o seu blog! Blog search directory

This page is powered by Blogger. Isn't yours?