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quinta-feira, setembro 16, 2004

Para um velho camarada 

Meu caro F.
Só agora tenho ânimo para responder à tua longa carta. Pois também só agora começam a tecer-se com mais firmeza os fios do destino e o que escrevo será mais qualquer coisa que um realinhar de dúvidas, de interrogações, de gestos sem objectivo. São assim os exames de consciência, as autocríticas, as meditações. A acção vem depois. E julgo que é ela que te importa.
Não te digo que me tenhas surpreendido; ao longo destes quase dois anos de peregrinação por terra estranha e alheia, em três continentes, a ver e ouvir portugueses, emigrados e emigrantes, desses que levam a pátria na sola dos sapatos, aprendi quase de cor a lista das questões e das respostas e, sobretudo, que há coisas que morrem, que não têm solução. Portugal próximo ou longínquo, o que ficou e o que se perdeu, o da realidade e o do sonho, Portugal está sempre no cerne de todas as conversas. Nunca foi tão discutido, tão dissecado, tão detestado, tão desesperadamente querido, como nestas partidas do mundo onde se juntaram os filhos que recusou: em campos de refugiados na África do Sul, junto ao Atlântico no velho Rio, nas ruas enviezadas do Madrid filipino, sob as luzes do Cruzeiro, ou nas praças brancas desta Europa que nos ficou (e onde ficámos) ele está sempre presente, a confirmar que, também para nós, Deus pode nascer no exílio.
E assim, noite fora, com amor e raiva, com lucidez e paixão, com nostalgia e amargura, lembramos o que foi e o que poderia ter sido; e procuramos, um pouco às cegas, um futuro e uma esperança que era suposto já não existirem.
O futuro... A esperança... Muitos de nós concluem que o mais grave é terem-nos roubado essa capacidade de esperar e pensar o porvir; e que tudo está consumado, não passando o que daqui em diante dissermos ou fizermos de exercícios sobre o irremediável, uma espécie de diálogo de sombras ou velhos soldados que se iludem em narrativas de guerras passadas e perdidas.
Queriam matar o D. Sebastião - como diziam - e acabaram com Portugal. E Portugal era possível.
Então que resta? O que pode ainda animar o coração, iluminar os olhos, armar o braço? O que fica para além deste acerto de contas com a História e connosco, desta teimosia de continuar a gritar a verdade, de que falava o Drieu? Desta honra póstuma e quase sem sentido (a não ser por nós) de pertencer ao último quadrado de irredutíveis, neste muito próprio Dien Bien Phu onde nos lançámos para ser fiéis a juramentos antigos, que, na melhor hipótese, farão sorrir, com indulgência ou irritação, os demais?
O porquê das coisas, do que fica para diante, do que há-de justificar a Acção, se houver lugar a ela... Não sei se achas estranho em falar de razões, quando só o fazer Justiça parece tarefa para mil anos. Mas estes tempos ensinaram-me o horror às confusões, os "mesmos barcos" em que tantos insistem que estamos; por sorte e azar. E quando ouço gente que não moveu um dedo enquanto o Pais era espedaçado, as bandeiras enxovalhadas, os mortos insultados ou esquecidos, quando ouço essa gente pequena e vil, que não deu um óbulo, uma lágrima, uma gota de sangue, uma hora de tempo, que nada sacrificou ou empenhou pela Pátria, armada em patriota da última hora, pedindo vingança, querendo fuzilar meio país, porque lhes tocaram no cofre ou na situação pelos quais tinham vendido o resto - convicções, ideias, fidelidades - sinto um grande desgosto e cansaço e o desejo de emigrar de vez, para muito longe, deixando os energúmenos do "povo unido" ou da "reacção", entredevorarem se e chacinarem-se quando o ódio for maior que o medo.
Mas se não é isso que fica então? Qual o valor, o motivo, a causa, para crer e combater? Qual a fé que há-de guiar a palavra, animar os crentes, remover as montanhas? Que há-de dar sentido à vida, justificar o sacrifício, sangrar a vitória, fazer mártires dos que tombarem e justos dos que chegarem ao fim?
Este é o fulcro da questão. Porque se a nossa perdição nasceu dos chefes de acaso que nunca quiseram ousar ou arriscar, da mediocridade e falta de coragem de quem só queria jogar com todos os trunfos na mão, também hoje, com o que resta, não temos o direito de levar connosco ninguém sem lhe dizermos para onde e porquê. Para aventureiros, para mercenários, para oportunistas, para aprendizes de feiticeiro, chegam os que arrastaram esse pobre Pais à ruína, com suas traições e loucuras, conspiratas e improvisações, crimes e tragicomédias, Estas coisas são muito sérias, às vezes morre-se pelo meio.
Para nós bastaria voltar atrás, onde tudo começou, ainda muito antes do dilúvio. Ao tempo tínhamos uma pátria grande e digna, mau grado os males que já então lhe corroíam o sangue e que haviam de a matar. Mesmo com a traição dos hierarcas, a imbecilidade dos áulicos, a mediocridade de tantos, havia bandeiras, padrões, armadas pelas partidas do globo. Podíamos ter orgulho no País. (E a esse orgulho só se dá o valor, quando se passa a ter vergonha.)
Estávamos talvez conscientes do naufrágio que se aproximava mas tínhamos esperança de, na vigésima quinta hora, virar o rumo ao barco. Mas, para tal, era necessário substituirmos capitães de fortuna que o guiavam. E, nave de loucos, ninguém o quis fazer, ou correr-lhe os riscos. Obscuros tripulantes, também não podíamos, sozinhos consegui-lo. Ainda tentámos.
Mas foi em vão.
Sabes do resto. Da fuga dos ratos, do soçobrar da nau, do salve-se quem puder nas jangadas, deste fim sem honra nem glória, às mãos de piratas de segunda e vendilhões de pátrias. E do dar à costa de salvados e náufragos, da luta pelos despojos que ainda continua entre os que afundaram o navio...
É desta praia deserta, onde chegámos, entre destroços e sobreviventes, fazendo o inventário da tragédia, contando os fiéis, tendo por pano de fundo a algazarra dos bandoleiros que se disputam cadáveres e arcas vazias, que me pergunto se vale a pena ainda desbravar a selva, cortar as árvores, tecer as velas, imaginar os barcos e, por outra vez, mais humildes, mais vazios, mais pequenos, mas numa memória honrada do que fomos ou do que foram os nossos, fazer-mo-nos ao mar. Ou então viver em terra, mas com dignidade. Depois deste Alcácer-Quibir sem luta, onde os reis se salvaram todos e só morreu a peonagem, depois da via-sacra das humilhações, perante o pais retalhado e amputado, perante um povo esmagado e derrotado pela mentira quotidiana, eu compreendo as tuas dúvidas e as de tantos. São minhas também.
E sei que para nós, para os que partilhámos o pão, a esperança, a juventude, para os que acreditámos no tal Portugal de 25 milhões de pessoas e dois milhões de quilómetros quadrados (e não era estatística mas um sentido de grandeza e de generosidade, do destino que nos roubaram) e por ele estávamos dispostos a arriscar tudo, é muito mais difícil reconstruir a Ideia (que não morre) à dimensão rectangular. Mas tem de ser assim. Pelo menos para já.
Dantes era tudo muito fácil. Complicadamente simples. Tínhamos fronteiras ameaçadas, havia que defendê-las. Tínhamos também os grandes espaços, as fortalezas, as bandeiras, os padrões, essas coisas grandes e inúteis porque vale a pena viver e morrer.
Por isso alguns estavam sempre prontos. Como o A... que deixou mulher, filhos, emprego (o que é respeitável e respeitado, também pelos nossos) e partiu para Angola quando tudo já estava mais ou menos perdido. E depois, na África do Sul, voltou a fazer o mesmo. Porquê? Para quê? "Lealdade portuguesa" diria qualquer bom reaccionário... Eu prefiro chamar-lhe fidelidade, generosidade. Vai dar ao mesmo.
Valeu a pena? Não sei. Para o A... é capaz de ter valido: estava na coluna que reconquistou Moçâmedes, na segunda e malograda guerra de Angola.
Entraram na cidade com a bandeira portuguesa à frente, essa bandeira que os comissários de Lisboa tinham embrulhado às pressas, antes da hora e tudo. Houve mais alguns sempre prontos. O L... que também partiu para Moçambique depois do 7 de Setembro. Este queria morrer com Portugal. Parece história, mas foi assim. Conheceu o cativeiro dos "interlocutores válidos" de Lusaka. Era lógico que tivesse morrido. Deus não quis. Só por isso é que voltou.
E o Z... que partiu para iniciar a resistência com a roupa do corpo? E o N... que em Luanda, em Agosto de 1975, já sem esperança, sem nada ter a ver com Angola, senão ser português, ainda lutava? Também escapou por uma unha negra, no dia em que o seu grupo foi descoberto. Dois lá ficaram, fuzilados pelo M.P.L.A.
Houve alguns assim nesta derrocada vergonhosa. São poucos para salvar a honra dos seus concidadãos. Mas estiveram lá. Por eles, pelas ideias, por um certo sentido de fidelidade e de vida. Talvez o que fizeram lhes não sirva para nada mais que para contar aos filhos. Os que viveram para o fazer. Para outros, como o bravo Maggiolo de Gouveia, resta-lhes neste mundo a memória dos povos, às vezes tão ingrata porque feita pelos vivos, que é a História. E mesmo assim terão de esperar que passem o obscurantismo e a mentira que agora a estão escrevendo, oficialmente, em Portugal.
Enfim, para já, foram os outros quem venceu; roubaram a Pátria, envileceram os Mortos, partiram as lápides, destruíram a trilha dos heróis, apagaram do mapa, numa nuvem de ódio e cobardia, o que os navegadores, os guerreiros, os missionários - os Portugueses de ontem - tinham descoberto, conquistado, civilizado. E que tantos portugueses de hoje defenderam pelo preço mais alto. Queriam matar o D. Sebastião e acabaram com Portugal. Agora, alguns até já são capazes de estar arrependidos; mas é tarde para todos; para nós e para eles.
Alguns de nós têm uma infinita raiva, ou melhor, sentem uma grande indignação perante esta terra que lhes foi madrasta. Eu não. Ou já não...
"Pátria de novo criança"... É isso. São as pedras de Guimarães e a praça que foi do Império; é a crónica de Fernão Lopes, e a legião dos que temem pelo futuro; são os soldados de Diu, e os expulsos da África, os portugueses exilados e humilhados na sua terra. É o passado grande e o presente mesquinho, é a memória de Sagres e a fuga da Guiné; é uma Cruz de guerra (póstuma) e um cartaz partidário, são as crianças que perderam um pai longe, para que Portugal continuasse, e os vilões triunfantes da descolonização.
É gente humilhada e ofendida, gente a quem enganaram e continuam a enganar, gente que precisa, acima de tudo, de dignidade e a quem só dão (por enquanto) pão e circo.
É muita raiva, muito amor, muita lágrima, muito cerrar de dentes. É também uma comovente esperança que nasce de não haver esperança nenhuma. E a memória das palavras, dos juramentos, dos lugares que foram portugueses e já não são. É uma canção de guerra, um retrato dum amigo morto por nada, um canto de casa, um jardim no Dondo, um barco saindo do Tejo. É a certeza de que estamos vivos e não queremos morrer, pelo menos de inanição, que da derrota e da diáspora colhemos razões para persistir neste combate desigual, ingrato, tantas vezes perdido e reencontrado quando já parecia não haver nada.

Conto contigo.
Abraça-te o amigo e camarada
Jaime Nogueira Pinto

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