terça-feira, setembro 28, 2004
POLÍTICA E CIÊNCIA
A tradição “espiritual” do demo-liberalismo anglo-saxão, cujos patriarcas foram, entre outros, Locke, Hume, Bentham e os Mill, é empirista, naturalista, positivista. Não admira, pois, que no mundo intelectual inglês e americano (e respectivos círculos de influência) a ideia da construção de uma ciência política, em tudo, ou quase tudo, semelhante às outras ciências experimentais, fosse acolhida com entusiasmo. Já causa, porém, uma certa perplexidade que, em ambientes que parece deviam estar imunizados contra tendências dessa índole, uma tal ideia seja recebida com aplausos fervorosos como se abrisse novos horizontes ao pensamento.
Deixemos, no entanto, este género de considerações e passemos a averiguar se é ou não possível uma ciência política análoga às restantes ciências experimentais.
Estas procuram estabelecer relações constantes ou leis entre os fenómenos observados e formular teorias em que se enquadrem aquelas e estes. Ora, se a ciência política se ocupa da conduta social do homem, no que ela possui de especificamente humano e se distingue da conduta animal, não se vê como conseguirá enunciar leis, a menos que exclua, em absoluto, o livre arbítrio, a liberdade da vontade. Efectivamente, se existir livre arbítrio, nunca se poderá estabelecer que ao comportamento a se sucede sempre (ou se sucede com probabilidade fixa) o comportamento b.
A ciência política, assim concebida, tem qual pressuposto, um mais ou menos rígido determinismo - determinismo que é uma tese metafísica, dessa metafísica que os cientistas experimentais tanto detestam.
E se, por seu turno, a ciência política equipara a conduta social do homem à de qualquer outro animal, então, além de continuar a partir de uma hipótese igualmente metafísica acerca da natureza humana, destrói-se enquanto ciência política por se reduzir tão-só à biologia.
A esta dificuldade capital junta-se uma nova aporia. Pergunta-se realmente, qual é o âmbito dos fenómenos políticos, em que é que estes se distinguem dos fenómenos de índole diversa, físicos, químicos, etc. E não é a ciência política que conseguirá responder à interrogação, porque a resposta à interrogação é que condiciona a constituição da ciência política. A questão - questão essencial - só pode, pois, ser resolvida no plano filosófico, do qual lastimavelmente os cientistas experimentais da política fazem abstracção.
De resto, os mais lúcidos e modernos de entre estes reconhecem que a imprevisibilidade das acções do homem dá um carácter contingente às leis da ciência política.
Simplesmente leis contingentes, que, de um momento para o outro, podem deixar de ser válidas, não são leis nenhumas, são meras traduções de acontecimentos particulares.
E limitar uma ciência ao simples registo de acontecimentos é aniquilá-la como ciência.
Certamente, consegue-se em política formular relações inabaláveis e necessárias. Não, todavia, entre comportamentos humanos, factualmente observados, mas sim entre essências logicamente conexionadas. O vínculo de relação não é, aqui, uma concomitância experimental, antes uma ligação ideal inflexível. Que os partidos fragmentem a unidade nacional é qualquer coisa que resulta da natureza dessa unidade e da natureza dos partidos. Quando as partes são autonomizadas e lutam com a totalidade - com a unidade - esta entra em desagregação. Por certo, empiricamente, há factores que podem atrasar, retardar e, até, em certa medida, temporariamente deter este processo. Ele, contudo, é inelutável porque repousa em relações inteligíveis - a impossibilidade de subsistência de uma unidade desunida é semelhante à de um ferro de madeira - e não na simples generalização de constatações tácticas.
E se logicamente for inconcebível uma democracia sem partidos, nós temos o direito de sustentar que a democracia atenta contra a unidade nacional. É uma lei, no sentido de ser uma relação constante, mas não uma lei relativa ao comportamento factual dos homens. Estes podem, consoante lhes aprouver, pronunciar-se pela democracia contra a unidade nacional, ou pela unidade nacional contra a democracia, sem que a esse propósito se consigam fixar leis. O que eles não podem é fazer com que a democracia não se oponha à unidade nacional, tal como não podem fazer com que o círculo seja quadrado.
A ciência política, entendida desta maneira, será uma ciência fenomenológica, baseada em relações de essencialidades e não uma ciência experimental. E diga-se, marginalmente, que é de uma semelhante concepção de leis na ciência política que Maurras se aproxima, quando no prefácio de "Romantisme et Revolution" ensina que, ao passo que as outras ciências apenas vêem de fora as conexões entre os fenómenos que estudam, a política descobre, já, a razão de ser dessas conexões e ilumina as leis pelas "causas", encontrando uma "explicação racional".
De qualquer forma, se uma ciência política compreendida desta maneira - e cujas afinidades com a filosofia são já óbvias - nos oferece leis inflexíveis, o que é certo é que jamais nos pode elucidar sobre o que devemos efectuar. Das meras constatações, do simples conhecimento do que é, jamais conseguiremos extrair o que deve ser.
Que isto ou aquilo tenha de acontecer não significa que seja bom que aconteça. Nenhuma ciência descritiva nos pode ditar os fins que é nossa obrigação atingir. Ao invés: é depois de postos determinados fins que a ciência nos conseguirá indicar o que com eles está em relação constante e permite, assim, alcançá-los. Se não desejarmos transformar a ciência política num jogo estéril, que não interessa à acção, é forçoso articulá-la com as finalidades que devem orientar esta última. Se pretendermos que o objectivo a visar é o bem comum, a ciência política terá de ser o estudo das leis que condicionam, inflexivelmente, a obtenção do bem comum; se o objectivo a visar for a anarquia, então a ciência política ensinará as leis que conduzam à destruição do poder e da sociedade. Em ambos os casos, todavia, a ciência política será sempre orientada teleologicamente, formulando juízos hipotéticos, do tipo "se queres isto, tens de fazer aquilo”, consoante Maurras proclamava (em especial no "Dilemme de Marc Sangnier") (1)
Sem discutirmos se, nesta altura, a ciência política é ou não uma ciência normativa, e sem analisarmos a difícil questão da existência ou inexistência de ciências normativas, de ciências da cultura, de ciências do espírito, distintas, pelo método, das chamadas ciências experimentais, e da possível inserção nalguma delas da ciência política (problemas que os cientistas da política contemporâneos estranhamente nem estudam nem abordam), o que nos parece incontestável é que, se a ciência política é orientada teleologicamente, ela tem de depender da ética. Sem a ética, a ciência política será cega. A ética, indicando-lhe o que vale e o que não vale, é que lhe dará uma directriz que dirija os seus trabalhos e os torne profícuos. Sem a ética, a ciência política não poderá existir enquanto estudo dos meios, pois estes só têm sentido em função de fins já determinados. Na política, portanto, antes do momento "científico" situa-se sempre o momento axiológico.
ANTÓNIO JOSÉ DE BRITO
(1) Foi também Maurras quem definiu a ciência política autêntica como “une determination des conditions générales du bien public”.
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Deixemos, no entanto, este género de considerações e passemos a averiguar se é ou não possível uma ciência política análoga às restantes ciências experimentais.
Estas procuram estabelecer relações constantes ou leis entre os fenómenos observados e formular teorias em que se enquadrem aquelas e estes. Ora, se a ciência política se ocupa da conduta social do homem, no que ela possui de especificamente humano e se distingue da conduta animal, não se vê como conseguirá enunciar leis, a menos que exclua, em absoluto, o livre arbítrio, a liberdade da vontade. Efectivamente, se existir livre arbítrio, nunca se poderá estabelecer que ao comportamento a se sucede sempre (ou se sucede com probabilidade fixa) o comportamento b.
A ciência política, assim concebida, tem qual pressuposto, um mais ou menos rígido determinismo - determinismo que é uma tese metafísica, dessa metafísica que os cientistas experimentais tanto detestam.
E se, por seu turno, a ciência política equipara a conduta social do homem à de qualquer outro animal, então, além de continuar a partir de uma hipótese igualmente metafísica acerca da natureza humana, destrói-se enquanto ciência política por se reduzir tão-só à biologia.
A esta dificuldade capital junta-se uma nova aporia. Pergunta-se realmente, qual é o âmbito dos fenómenos políticos, em que é que estes se distinguem dos fenómenos de índole diversa, físicos, químicos, etc. E não é a ciência política que conseguirá responder à interrogação, porque a resposta à interrogação é que condiciona a constituição da ciência política. A questão - questão essencial - só pode, pois, ser resolvida no plano filosófico, do qual lastimavelmente os cientistas experimentais da política fazem abstracção.
De resto, os mais lúcidos e modernos de entre estes reconhecem que a imprevisibilidade das acções do homem dá um carácter contingente às leis da ciência política.
Simplesmente leis contingentes, que, de um momento para o outro, podem deixar de ser válidas, não são leis nenhumas, são meras traduções de acontecimentos particulares.
E limitar uma ciência ao simples registo de acontecimentos é aniquilá-la como ciência.
Certamente, consegue-se em política formular relações inabaláveis e necessárias. Não, todavia, entre comportamentos humanos, factualmente observados, mas sim entre essências logicamente conexionadas. O vínculo de relação não é, aqui, uma concomitância experimental, antes uma ligação ideal inflexível. Que os partidos fragmentem a unidade nacional é qualquer coisa que resulta da natureza dessa unidade e da natureza dos partidos. Quando as partes são autonomizadas e lutam com a totalidade - com a unidade - esta entra em desagregação. Por certo, empiricamente, há factores que podem atrasar, retardar e, até, em certa medida, temporariamente deter este processo. Ele, contudo, é inelutável porque repousa em relações inteligíveis - a impossibilidade de subsistência de uma unidade desunida é semelhante à de um ferro de madeira - e não na simples generalização de constatações tácticas.
E se logicamente for inconcebível uma democracia sem partidos, nós temos o direito de sustentar que a democracia atenta contra a unidade nacional. É uma lei, no sentido de ser uma relação constante, mas não uma lei relativa ao comportamento factual dos homens. Estes podem, consoante lhes aprouver, pronunciar-se pela democracia contra a unidade nacional, ou pela unidade nacional contra a democracia, sem que a esse propósito se consigam fixar leis. O que eles não podem é fazer com que a democracia não se oponha à unidade nacional, tal como não podem fazer com que o círculo seja quadrado.
A ciência política, entendida desta maneira, será uma ciência fenomenológica, baseada em relações de essencialidades e não uma ciência experimental. E diga-se, marginalmente, que é de uma semelhante concepção de leis na ciência política que Maurras se aproxima, quando no prefácio de "Romantisme et Revolution" ensina que, ao passo que as outras ciências apenas vêem de fora as conexões entre os fenómenos que estudam, a política descobre, já, a razão de ser dessas conexões e ilumina as leis pelas "causas", encontrando uma "explicação racional".
De qualquer forma, se uma ciência política compreendida desta maneira - e cujas afinidades com a filosofia são já óbvias - nos oferece leis inflexíveis, o que é certo é que jamais nos pode elucidar sobre o que devemos efectuar. Das meras constatações, do simples conhecimento do que é, jamais conseguiremos extrair o que deve ser.
Que isto ou aquilo tenha de acontecer não significa que seja bom que aconteça. Nenhuma ciência descritiva nos pode ditar os fins que é nossa obrigação atingir. Ao invés: é depois de postos determinados fins que a ciência nos conseguirá indicar o que com eles está em relação constante e permite, assim, alcançá-los. Se não desejarmos transformar a ciência política num jogo estéril, que não interessa à acção, é forçoso articulá-la com as finalidades que devem orientar esta última. Se pretendermos que o objectivo a visar é o bem comum, a ciência política terá de ser o estudo das leis que condicionam, inflexivelmente, a obtenção do bem comum; se o objectivo a visar for a anarquia, então a ciência política ensinará as leis que conduzam à destruição do poder e da sociedade. Em ambos os casos, todavia, a ciência política será sempre orientada teleologicamente, formulando juízos hipotéticos, do tipo "se queres isto, tens de fazer aquilo”, consoante Maurras proclamava (em especial no "Dilemme de Marc Sangnier") (1)
Sem discutirmos se, nesta altura, a ciência política é ou não uma ciência normativa, e sem analisarmos a difícil questão da existência ou inexistência de ciências normativas, de ciências da cultura, de ciências do espírito, distintas, pelo método, das chamadas ciências experimentais, e da possível inserção nalguma delas da ciência política (problemas que os cientistas da política contemporâneos estranhamente nem estudam nem abordam), o que nos parece incontestável é que, se a ciência política é orientada teleologicamente, ela tem de depender da ética. Sem a ética, a ciência política será cega. A ética, indicando-lhe o que vale e o que não vale, é que lhe dará uma directriz que dirija os seus trabalhos e os torne profícuos. Sem a ética, a ciência política não poderá existir enquanto estudo dos meios, pois estes só têm sentido em função de fins já determinados. Na política, portanto, antes do momento "científico" situa-se sempre o momento axiológico.
ANTÓNIO JOSÉ DE BRITO
(1) Foi também Maurras quem definiu a ciência política autêntica como “une determination des conditions générales du bien public”.
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