sábado, setembro 25, 2004
SOCIEDADE CIVIL E PODER POLÍTICO
Há quem sustente, por vezes, que a lei deriva da sociedade civil, que o Estado não é senão uma emanação desta última, e outros pontos de vista análogos.
A ser isso exacto, teríamos de admitir que a sociedade civil poderia existir sem lei e Estado, uma vez que a causa é anterior ao efeito. Mas sem lei e Estado não há sociedade civil, há horda in-civil.
De resto, se a lei e o Estado provêm da sociedade civil como explicar que dela comecem de repente a dimanar as leis ditas opressivas e as construções do Estado ditas macrocefálicas que se traduzem na alienação e na destruição (ou quase destruição) da fonte que as originou? Estamos perante uma dificuldade semelhante à que se nos depara face à conhecida tese de Rousseau, segundo a qual o homem solitário, intrinsecamente bom, seria corrompido pela sociedade que criou. Pois de que maneira o homem solitário e bom poderá criar um ente colectivo perverso e perversor?
Pelos vistos, a sociedade civil precisa de tutela para não se desviar torpemente na sua conduta, isto é, necessita de um poder e de uma normatividade que a protejam contra si mesma e que, nessa altura, não se concebe que derivem dela. Dir-nos-ão que não é a sociedade civil que gera leis opressivas e os Estados macrocefálicos, mas sim uma e outra (ou outras) realidade (ou realidades) (Qual ou quais)?
Muito bem! Simplesmente, deixa, então de ser verdade que a lei deriva da sociedade civil e que o Estado é uma emanação desta derradeira. Claro que, acaso, nos objectarão que, quando se diz que a lei deriva e o Estado emana da sociedade civil, o que se pretende dizer é que a lei “deve" derivar, “deve" ser feita pela sociedade civil, que o Estado deve ser uma emanação desta.
O que foi enunciado sobre a forma de uma asserção ontológica, afinal, teria exclusivamente um intuito deontológico, axiológico. Eis, porém, que, em tal circunstância, passa a oferecer perfeita razão de ser a interrogação: porque é que as coisas se “devem" passar assim? Se não há sociedade civil sem lei e sem governo, que motivo justifica que a lei e o governo devam provir da sociedade civil? O dever- ser invocado não patenteia qualquer espécie de sentido. Ele pretende que o constituinte derive daquilo que constitui, o que equivale a pretender que o automóvel é que deva inventar o engenheiro, as nuvens devam derivar do relâmpago “and so on".
O pressuposto daquele dever-ser é um optimismo societário digno de Pangloss. Composta a sociedade civil de indivíduos, ou grupos, ou indivíduos e grupos, pretende-se que nela estão todas as virtudes e harmonias que, depois, haveria que transportar para a lei e o governo. Só que esse panglossismo social não possui consistência alguma. Indivíduos e grupos (e não menos os grupos que os indivíduos), para se não dilacerarem entre si, não se aniquilarem mutuamente, têm de estar submetidos a uma disciplina, a uma ordem. E tal ordem e tal disciplina não podem dimanar daqueles a quem são dirigidos, pois, nessa conjuntura, iriam ser expressão de lutas e defeitos a que se procuram sobrepor, para os corrigir.
Aliás, se a sociedade civil é que possui todas as virtudes e harmonias, para quê a lei e o Estado que, em tantos momentos trazem complicações, degenerescências, opressões?
Se há um ordenamento social espontâneo, natural, imutável, o melhor é deixá-lo desenvolver-se por si e, no lugar de endossar-lhe superestruturas "estaduais", tentar afastá-las, visto que inúteis sempre e perturbadoras algumas ocasiões. E viva a anarquia! Em contrapartida, se não há um ordenamento social espontâneo, imutável, natural e unicamente graças à existência de um Poder Central se conservam mais ou menos em equilíbrio as diversas e divergentes correntes e tendências e se neutralizam as desorientações centrífugas, é absurdo que o Poder Central, feito para controlar e dominar as forças divergentes, diversas e centrífugas, seja confiado às mesmas.
Numa palavra o dilema põe-se: ou há sociedade civil sem governo, e não são precisos governos para nada; ou não há sociedade civil sem governo, e o governo não pode ser produto, emanação, representante, da sociedade civil, porque a sociedade civil é que resulta, entre outros factores, do factor governo.
ANTÓNIO JOSÉ DE BRITO
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A ser isso exacto, teríamos de admitir que a sociedade civil poderia existir sem lei e Estado, uma vez que a causa é anterior ao efeito. Mas sem lei e Estado não há sociedade civil, há horda in-civil.
De resto, se a lei e o Estado provêm da sociedade civil como explicar que dela comecem de repente a dimanar as leis ditas opressivas e as construções do Estado ditas macrocefálicas que se traduzem na alienação e na destruição (ou quase destruição) da fonte que as originou? Estamos perante uma dificuldade semelhante à que se nos depara face à conhecida tese de Rousseau, segundo a qual o homem solitário, intrinsecamente bom, seria corrompido pela sociedade que criou. Pois de que maneira o homem solitário e bom poderá criar um ente colectivo perverso e perversor?
Pelos vistos, a sociedade civil precisa de tutela para não se desviar torpemente na sua conduta, isto é, necessita de um poder e de uma normatividade que a protejam contra si mesma e que, nessa altura, não se concebe que derivem dela. Dir-nos-ão que não é a sociedade civil que gera leis opressivas e os Estados macrocefálicos, mas sim uma e outra (ou outras) realidade (ou realidades) (Qual ou quais)?
Muito bem! Simplesmente, deixa, então de ser verdade que a lei deriva da sociedade civil e que o Estado é uma emanação desta derradeira. Claro que, acaso, nos objectarão que, quando se diz que a lei deriva e o Estado emana da sociedade civil, o que se pretende dizer é que a lei “deve" derivar, “deve" ser feita pela sociedade civil, que o Estado deve ser uma emanação desta.
O que foi enunciado sobre a forma de uma asserção ontológica, afinal, teria exclusivamente um intuito deontológico, axiológico. Eis, porém, que, em tal circunstância, passa a oferecer perfeita razão de ser a interrogação: porque é que as coisas se “devem" passar assim? Se não há sociedade civil sem lei e sem governo, que motivo justifica que a lei e o governo devam provir da sociedade civil? O dever- ser invocado não patenteia qualquer espécie de sentido. Ele pretende que o constituinte derive daquilo que constitui, o que equivale a pretender que o automóvel é que deva inventar o engenheiro, as nuvens devam derivar do relâmpago “and so on".
O pressuposto daquele dever-ser é um optimismo societário digno de Pangloss. Composta a sociedade civil de indivíduos, ou grupos, ou indivíduos e grupos, pretende-se que nela estão todas as virtudes e harmonias que, depois, haveria que transportar para a lei e o governo. Só que esse panglossismo social não possui consistência alguma. Indivíduos e grupos (e não menos os grupos que os indivíduos), para se não dilacerarem entre si, não se aniquilarem mutuamente, têm de estar submetidos a uma disciplina, a uma ordem. E tal ordem e tal disciplina não podem dimanar daqueles a quem são dirigidos, pois, nessa conjuntura, iriam ser expressão de lutas e defeitos a que se procuram sobrepor, para os corrigir.
Aliás, se a sociedade civil é que possui todas as virtudes e harmonias, para quê a lei e o Estado que, em tantos momentos trazem complicações, degenerescências, opressões?
Se há um ordenamento social espontâneo, natural, imutável, o melhor é deixá-lo desenvolver-se por si e, no lugar de endossar-lhe superestruturas "estaduais", tentar afastá-las, visto que inúteis sempre e perturbadoras algumas ocasiões. E viva a anarquia! Em contrapartida, se não há um ordenamento social espontâneo, imutável, natural e unicamente graças à existência de um Poder Central se conservam mais ou menos em equilíbrio as diversas e divergentes correntes e tendências e se neutralizam as desorientações centrífugas, é absurdo que o Poder Central, feito para controlar e dominar as forças divergentes, diversas e centrífugas, seja confiado às mesmas.
Numa palavra o dilema põe-se: ou há sociedade civil sem governo, e não são precisos governos para nada; ou não há sociedade civil sem governo, e o governo não pode ser produto, emanação, representante, da sociedade civil, porque a sociedade civil é que resulta, entre outros factores, do factor governo.
ANTÓNIO JOSÉ DE BRITO
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