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quarta-feira, outubro 06, 2004

A MITOLOGIA CONTEMPORÂNEA 

"Mais uns filmes americanos e depois o fim do mundo".
(Drieu la Rochelle)

Hoje em dia, a realidade frustra todas as explicações: os pacifistas, as "colombes de la paix", militarizam-se, lançam-se em empresas belicistas, recorrendo sempre que necessário ao binómio justificativo “guerra justa/guerra injusta", que tem quase um significado mágico, e serve para tornar ideologicamente razoáveis os seus actos, redentoras as chacinas, cientificamente necessárias as depurações, politicamente toleráveis as manifestações de violência repressiva. Em "1984", Orwell mostra-nos o reino de terror do "Grande Irmão" que, no entanto, por uma lógica interna e peculiar, é um “filantropo”...
Simultaneamente, a degradação da vida quotidiana traz à sociedade, a essa misteriosa "opinião pública", a nostalgia da calma, o ópio do descanso: “mostremos máscaras, pois os homens não suportam a realidade, que é demasiado horrível”. Entramos então no paraíso da droga comunitária, assegurada pelos “mass media”, pela publicidade dos grandes produtores, que, como notava Konrad Lorenz, não é "apolítica", antes desempenha, no Ocidente, “mutatis mutandis”, a tarefa das bandeirolas do partido, dos "slogans", a propaganda aos "pioneiros", a Leste.
Na sociedade de massas contemporânea, o indivíduo procura uma época inteiramente agradável, em que pretende ser o mais livre e o mais auxiliado possível: é um falso instinto de conservação, o daqueles que, da nascença à morte, acalentam a esperança de poder ser sustentados pelo Estado, que vêem sempre como algo distante, todo poderoso, radicalmente diverso da sociedade. E encontra-se esta ilusória sensação de segurança no princípio do fim de um sistema social.
Mas não acaba aqui a mitologia contemporânea. A “boa consciência universal" ergue-se julgando a astúcia e a violência, que já ocupam por si próprias um lugar suficientemente grande nos assuntos humanos para que seja necessário vir a “ciência” caucioná-los com a sua alta autoridade! Quer dizer, os profetas do ilusório estabelecem a dupla equação "sem dúvida a política utiliza métodos moralmente repreensíveis e perversos, no entanto, vale mais ignorar tais vícios, propor à humanidade fins nobres, do que comprometer a ciência aplicando-a a um prisma tão aviltante". Pretende-se, uma vez mais, assumir a máscara, tornar a realidade em abstracção, transformar a ciência numa oficina de consolações. Ora, o “Dever-Ser” aplicado às leis científicas é sempre a via aberta do cientismo.
A sociedade técnica habituou-se a ser como a Suíça, uma "sociedade de pais de família”, usando a expressão de Bardèche. Muito por isto, o desejo de paz é o desejo de “panem et circenses”, já que uma guerra que cortasse hoje as fontes de abastecimento às supersociedades de consumo seria catastrófica para um modo de vida, condicionante de um modo de pensar, condicionado por um modo de "aceitar”.
O medo da guerra é também hoje um desfasamento do real, de algum modo a institucionalização da "política de avestruz": é que, quer se queira quer não, tudo em política, e sobretudo política internacional, gira em torno da relação de forças, e não de declarações de intenções. A realidade não é passível de ser transformada através de juízos de valor. Como dizia Montherlant, “não basta proclamar que se ama a paz. Trata-se de ser suficientemente forte para impor a paz aos que querem a guerra”.
É sempre perigoso cair-se também no “ilusionismo jurídico”, e por maioria de razão em campos tão delicados como estes. É que os textos jurídicos apenas verificam o acordo de vontades, não as criam, relevando por isso da mera mistificação assimilar a paz aos tratados que marcaram a sua instrução, quase sempre no fim de uma guerra. (À primeira Constituição japonesa após a 2ª Guerra costumava ironicamente chamar-se “Constituição MacArthur”, pois derivou, na realidade, de uma imposição da América vencedora, utilizando como primordial instrumento de coacção o vector atómico. Daqui a concluir-se que todos os tratados de paz comportam uma teoria de guerra, vai um passo).
Da quebra com o que é também hoje um “nariz de cera”, o "realismo" político (i.e., o medo de agir contra “o Sentido da História”, de contrariar a “conjuntura internacional”, etc.) podem nascer, por decomposição várias atitudes negativas: a “nostalgia”, que se obstina a negar as modificações operadas em determinado meio, o deslocamento do poder, e joga numa relação de forças desactualizada, irreal; a “atrofia”, que consiste na perturbação incurável quanto ao uso da força, mesmo como “ultima ratio", e que originou o remoque de Max Weber, segundo o qual o timorato faria melhor “em não meter os dados nos raios da roda da história".
Este fraccionamento pode conduzir também a uma visão desonestamente romântica de uma "história boa" e uma "história má" na vida do homem, nascendo daqui muitas das utopias que ainda agrilhoam as sociedades, os povos e os “bem pensantes”. Vejamos o que diz sobre isto Julien Freund: "Uma civilização e uma cultura fazem um todo; seria intelectualmente desonesto não considerar a evolução da humanidade no seu conjunto e na sua plenitude, fazendo escolhas arbitrárias com o pretexto de separar o trigo (o pensamento, a arte, a ciência, a filosofia) do joio (a política, etc.). (...) Só um humanismo de segunda ordem, como o que plagia e falsifica o Renascimento, desviriliza e adultera a Antiguidade, pode erguer o homem contra a sua humanidade, e contra tudo o que nele há de divino e demoníaco”. ("Q’est-ce que la Politique?”, Sirey ed.).
Não advertia Robert Ardrey, no seu admirável “Social Contract”, dos perigos de uma visão falaciosa da natureza humana? As utopias oitocentistas, a miragem da “bondade natural” do homem, fizerem retroceder o pensamento muitos séculos: durante demasiado tempo acreditou-se ser o homem algo de radicalmente diferente e contraditório em relação à natureza. Foi preciso que a etologia, já na segunda metade deste século, viesse demonstrar a profunda coexistência, no ser humano, do mundo intelectual e do mundo animal reconciliando o homem com o todo.
No entanto, os Estados actuais enformam ainda uma sociedade truncada, separada do seu próprio ser, que observa a história de um quarto andar, fazendo passar por dois corredores distintos a própria unidade histórica. Sociedade que vive uma ilusão de óptica, no mito de Sísifo, contente pelo absurdo da sua existência num universo sem rei nem lei, clamando pela paz e pelos tratados que a imponham. Para os seus componentes, “a verdadeira paz é saber-se que há guerra algures”, na expressão cruel de Jacques Prévert.
Porque aqui, em última análise, o valor supremo é o egoísmo. E este acaba por ser um prenúncio da morte.
NUNO ROGEIRO

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