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domingo, outubro 31, 2004

O Homem e a Natureza 

A julgar pelos vestígios que deixaram e pelas amostras de humanidade dispersa e degradada que os portugueses encontraram nas terras do Brasil, o homem paleolítico vivia num nível cultural de quase exclusiva e obsessiva preocupação de seu relacionamento com o mundo exterior e inferior. Vivia em luta com o meio. Não é fácil reconstituir e imaginar essa situação em que um ser dotado de dimensão racional, da mesmíssima espécie que hoje nos diferencia dos animais, estava obrigado a curvar a razão ainda impotente no domínio dos elementos, sem o socorro dos instintos que os animais possuem para adequar-se ao meio de mesmo nível ontológico. O homem não se espiritualizou gradativamente, isto é, não passou do ser não-espiritual para o ser espiritual por etapas contínuas ou discretas como pensam que pensam os evolucionistas ou como sugeriu o festejado Teilhard de Chardin que, infelizmente para a Companhia de Jesus e para a Igreja, não foi internado e metido numa camisa-de-força em momento oportuno. Tal transição do não-espiritual para o espírito, como se o espírito fosse uma fina emergência da matéria, é um disparate metafísico. Aliás, o evolucionismo, em que todos os habitantes deste século pensam que pensam, é um disparate físico e metafísico: físico porque contraria a lei fundamental do mundo físico que é a da entropia crescente; metafísico porque contraria o lema: «nada passa da potência ao ato a não ser por algo que já esteja em ato». É uma alucinação pensar (ou pensar que pensa) que os átomos de hidrogênio, por acaso, e vencendo improbabilidades fantásticas que Borel e Boltzman chamaram de extra-cósmicas, como apelido de impossível, se encontrem numa rosa ou num gato; e ainda mais alucinatório é pensar que aqueles átomos, a mesmo título que uma célula primeira tem no genotipo todas as virtualidades do fenotipo, tenham um encaminhamento necessário finalizado e já no elétron solitário ou no próton, possuam em ato um germe e uma intenção de se incorporar, mais tempo menos tempo, num grão de areia, numa estrela, num cabelo de uma criança ou numa lágrima de santo. Tudo viria do hidrogênio. Deixemos a evolução e reconsideremos os nossos pobres antepassados que tanto lutaram para dominar a pedra e para vencer o urso. Sabemos que, após longo esforço horizontal, o homem começou a imprimir na matéria do mundo as formas pensadas no espírito. Emergem as civilizações e multiplicam-se prodigiosamente as marcas impressas na matéria pela racionalidade do homem. Peço ao leitor que se demore em imaginar esse grandioso espetáculo que foi a ascensão dos homens. Muito antes de ouvir a notícia da próxima descida do Espírito de Verdade, que no Domingo passado ouvimos, a humanidade usou fartamente o espírito do homem, imagem e semelhança Daquele, e fartamente espalhou no mundo obras e feitos que ela mesma, com toda razão, admira. Mas, ai de nós! Em certa curva da história, marcada pelo falso humanismo da Renascença e pela Reforma – cujos malefícios sabemos hoje apreciar muito mais vivamente e muito mais dolorosamente do que no século XVI – a humanidade passou a admirar-se a si mesma de um modo vertiginoso e idolátrico. Estamos repetindo em quatro séculos o mito de Narcisus; ou estamos, depois de milênios, tentando uma reprise do Pecado Original. E agora vejam o estranho resultado: depois de tão maravilhosas conquistas científicas e técnicas, e pelo fato de se ter inclinado obsessivamente para as coisas inferiores e exteriores, o homem submete o espírito ao serviço delas, transubstancia a soberba em concupiscência e produz o monstruoso mundo tecnocrático que tem, no movimento helicoidal da história assim traçado, o mesmo meridiano do homem das cavernas, a mesma submissão ao mundo material, mas em nível fantástica e alucinatoriamente mais elevado. O senso comum e a reta teologia nos advertiam de que tamanho desenvolvimento tecnocrático seria letal para o homem sem o proporcionado desenvolvimento civilizacional, e portanto espiritual. Infelizmente para nós, habitantes deste século, Satã ganhou a batalha desses quatro séculos. A guerra, não ganhou nem ganhará; mas a batalha, o episódio, a etapa, ele contabilizou e nos deixou estupefatos diante desse mistério dos mistérios: o mal e o consentimento de Deus. Em torno da Igreja, os maus levitas recém-egressos, ou semi-apóstatas, querem desespiritualizar a Igreja de Cristo e do Espírito Santo, como pensam que os homens já desespiritualizaram o mundo. Assistimos a essa tragédia desenvolvida em dois planos: um assalto à Igreja, uma crise in sino Ecclesiae e a disputa pela hegemonia de uma civilização deformada e deformadora do homem. E aqui já não se divide o mundo em dois hemisférios, o da dureza totalitária e o da moleza liberal. Na dissolução do humano andam os adversários de mãos dadas. Na marcha acelerada que a tecnocracia imprimiu ao progresso material, a humanidade cada vez mais se dobra e mais se inclina para a terra. Alguns mais alvoroçados não escondem certa impaciência de atingirem o ideal de andar de quatro. A maioria evolui numa espécie de tabes dorsalis, cujos primeiros sintomas neurológicos se manifestam pela dificuldade da genuflexão. De um modo ou de outro está em perigo a postura ereta do homem, que só se mantém quando a espinha dorsal da alma é sustentada pela virtudes teologais.
Gustavo Corção (1972)

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