sexta-feira, outubro 08, 2004
SALVAR A DEMOCRACIA?
Pois claro, estamos todos de acordo; a Democracia é de salvar, já que é a coisa mais linda que existe desde que homens governam outros homens.
Tal como a uma mulher bela se desculpam algumas imperfeições de carácter, assim acontece com a Democracia: pelo bem que deveria fazer e os benefícios que deveria trazer consigo, esquecemos o muito mal que em seu nome se pratica.
Assim se passa com a Democracia. Tal qual.
É bem bom viver nela e com ela, mas esse benefício tem de ser pago a tempo e horas, sem atrasos nem adiamentos. Há que ser rico ou tentar sê-lo aproveitando o que existe e criando coisa nova e, além disso e sobretudo, não esbanjando ou delapidando o que existe, há que ser mais exigente com a sociedade e com a coisa pública, há que desejar mais sinceramente corrigir os desníveis e os desvios e, muito mais importante, desejar fazer justiça plena e imparcial. Quando não, uma madrugada qualquer, aparece-nos um sujeito na televisão, possivelmente, a dizer, isto quem manda agora aqui, sou eu, e, é claro, Democracia, a partir daí, viste-a por um óculo.
Isto tudo vem a propósito do que se ouve a cada instante dizer: é preciso salvar a Democracia...
Parece-me haver qualquer coisa de errado ou incompleto nesta afirmação. Em primeiro lugar, quem a faz, e muitos são constantemente, dá a impressão que quem está pondo a Democracia em perigo são só os outros, os ouvintes, excluindo, com absoluta precisão, o próprio que fala e os que lhe dão delegação para falar. Depois, porque os perigos que ameaçarão a Democracia são diferentes para uns e para outros. Em breve apanhado podem listar-se alguns dos perigos apontados, a saber: a Direita, os Comunistas, as Testemunhas de Jeová, a Europa de Leste, o Arcebispo de Braga, a Polícia, os Tribunais, a Isabel do Carmo, o aumento do custo de vida, o mau tempo, e até pessoas que já morreram há muito, como o Dr. Salazar, permanecem perigosíssimas para a Democracia, embora o mais corrente dos inimigos seja, sem dúvida alguma, o "Fascismo". Enfim, parece que só há na verdade perigos, ciladas, armadilhas tantas e tão variadas que, à pobre da democracia, chumbada por todos os lados, pouco lhe resta de vida.
Há que ver e muito bem, se o que existe em Portugal, agora, é Democracia. Corriqueiramente, democracia, pode traduzir-se por: o poder nas mãos do povo, mas, quer a gente queira quer não queira, não é nem nunca será possível todos mandarem em todos, e a verdade é que muitos andarão, sempre, a toque de caixa de uns quantos poucos. Nada resta pois, a todos, que escolherem os poucos que os representem e governem em seu nome e aqui é que começa o busílis e o desencanto.
Democraticamente libérrimos, podemos eleger um cidadão para a autarquia, para a Legislatura, até para a chefia do Estado. Na maior parte dos casos não conhecemos tal cidadão de parte nenhuma e, por isso, temos que nos deixar levar por um julgamento breve sobre as suas declarações de intenção, a conduta que parece transparecer, as promessas que faz. Em resumo, damos-lhe crédito com base nas referências que dele colhemos. Mas “errare humanum est", a carne é fraca, a memória é curta, ete., etc., e quantas vezes o fulano dá o dito por não dito e actua exactamente ao contrário do que tinha prometido e nós tínhamos acreditado. Se não fossemos democratas, faríamos, mais ou menos, isto: - Olhe lá: o senhor não tem cumprido coisa nenhuma do que prometeu, não tem feito nada do que disse que ia fazer, tem-se negado a ouvir-nos e a perceber o que nós queremos de si, portanto, faça favor, ou dá a volta completa e começa a cumprir, a actuar e a trabalhar como deve e a gente exige, ou então, põe-se a andar, já...
Mas como somos democratas e, acima de tudo, é preciso salvar a Democracia (sobretudo esta que temos), não fazemos nada disto e vamos aguentando político atrás de político, governo atrás de governo, discurso atrás de discurso.
Então, cansadíssimos mas felizes, os políticos podem relaxar os nervos e as cordas vocais e declarar, solenemente, apontando com o dedo infalível a Democracia toda rotinha, esfomeada, cheia de cuspidelas e nódoas negras: - Salvámos a Democracia!
Resta saber se nessa altura restará em Portugal um português que, mesmo com voz sumida de desilusão, responda: - Bem hajam...
ANTÓNIO MEXIA ALVES
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Tal como a uma mulher bela se desculpam algumas imperfeições de carácter, assim acontece com a Democracia: pelo bem que deveria fazer e os benefícios que deveria trazer consigo, esquecemos o muito mal que em seu nome se pratica.
Assim se passa com a Democracia. Tal qual.
É bem bom viver nela e com ela, mas esse benefício tem de ser pago a tempo e horas, sem atrasos nem adiamentos. Há que ser rico ou tentar sê-lo aproveitando o que existe e criando coisa nova e, além disso e sobretudo, não esbanjando ou delapidando o que existe, há que ser mais exigente com a sociedade e com a coisa pública, há que desejar mais sinceramente corrigir os desníveis e os desvios e, muito mais importante, desejar fazer justiça plena e imparcial. Quando não, uma madrugada qualquer, aparece-nos um sujeito na televisão, possivelmente, a dizer, isto quem manda agora aqui, sou eu, e, é claro, Democracia, a partir daí, viste-a por um óculo.
Isto tudo vem a propósito do que se ouve a cada instante dizer: é preciso salvar a Democracia...
Parece-me haver qualquer coisa de errado ou incompleto nesta afirmação. Em primeiro lugar, quem a faz, e muitos são constantemente, dá a impressão que quem está pondo a Democracia em perigo são só os outros, os ouvintes, excluindo, com absoluta precisão, o próprio que fala e os que lhe dão delegação para falar. Depois, porque os perigos que ameaçarão a Democracia são diferentes para uns e para outros. Em breve apanhado podem listar-se alguns dos perigos apontados, a saber: a Direita, os Comunistas, as Testemunhas de Jeová, a Europa de Leste, o Arcebispo de Braga, a Polícia, os Tribunais, a Isabel do Carmo, o aumento do custo de vida, o mau tempo, e até pessoas que já morreram há muito, como o Dr. Salazar, permanecem perigosíssimas para a Democracia, embora o mais corrente dos inimigos seja, sem dúvida alguma, o "Fascismo". Enfim, parece que só há na verdade perigos, ciladas, armadilhas tantas e tão variadas que, à pobre da democracia, chumbada por todos os lados, pouco lhe resta de vida.
Há que ver e muito bem, se o que existe em Portugal, agora, é Democracia. Corriqueiramente, democracia, pode traduzir-se por: o poder nas mãos do povo, mas, quer a gente queira quer não queira, não é nem nunca será possível todos mandarem em todos, e a verdade é que muitos andarão, sempre, a toque de caixa de uns quantos poucos. Nada resta pois, a todos, que escolherem os poucos que os representem e governem em seu nome e aqui é que começa o busílis e o desencanto.
Democraticamente libérrimos, podemos eleger um cidadão para a autarquia, para a Legislatura, até para a chefia do Estado. Na maior parte dos casos não conhecemos tal cidadão de parte nenhuma e, por isso, temos que nos deixar levar por um julgamento breve sobre as suas declarações de intenção, a conduta que parece transparecer, as promessas que faz. Em resumo, damos-lhe crédito com base nas referências que dele colhemos. Mas “errare humanum est", a carne é fraca, a memória é curta, ete., etc., e quantas vezes o fulano dá o dito por não dito e actua exactamente ao contrário do que tinha prometido e nós tínhamos acreditado. Se não fossemos democratas, faríamos, mais ou menos, isto: - Olhe lá: o senhor não tem cumprido coisa nenhuma do que prometeu, não tem feito nada do que disse que ia fazer, tem-se negado a ouvir-nos e a perceber o que nós queremos de si, portanto, faça favor, ou dá a volta completa e começa a cumprir, a actuar e a trabalhar como deve e a gente exige, ou então, põe-se a andar, já...
Mas como somos democratas e, acima de tudo, é preciso salvar a Democracia (sobretudo esta que temos), não fazemos nada disto e vamos aguentando político atrás de político, governo atrás de governo, discurso atrás de discurso.
Então, cansadíssimos mas felizes, os políticos podem relaxar os nervos e as cordas vocais e declarar, solenemente, apontando com o dedo infalível a Democracia toda rotinha, esfomeada, cheia de cuspidelas e nódoas negras: - Salvámos a Democracia!
Resta saber se nessa altura restará em Portugal um português que, mesmo com voz sumida de desilusão, responda: - Bem hajam...
ANTÓNIO MEXIA ALVES
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