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sexta-feira, dezembro 31, 2004

CAETANO BEIRÃO 

Invadiu-me um fundo sentimento de saudade e tristeza quando recebi, de chofre, a notícia da morte de Caetano Beirão. Depois, as recordações começaram a afluir em tropel à minha mente e recuei algumas décadas no tempo.
Em Coimbra, há uns bons vinte anos, no momento, para mim solene, em que proferia uma palestra na sede da Causa Monárquica, entrou na sala o consagrado historiador de "D. Maria I", que nós, quase imberbes contra-revolucionários, considerávamos um mestre ilustre. Para minha confusão, pediu-me ele que recomeçasse, desde início, a leitura do meu trabalhinho, o que fiz simultaneamente atrapalhado e envaidecido. No final, com a sua grande indulgência pelos novos e a sua amabilidade de sempre, Caetano Beirão elogiou, abertamente, a minha insignificante produção (que eu, nessa altura, supunha importantíssima). Durante alguns dias imaginei-me alguém, um autêntico e importante doutrinador político, até que o bom senso regressou, ajudado pela salutar ironia dos camaradas da época.
Assim travei relações pessoais com o escritor de "Uma Campanha Tradicionalista", num andar modesto da Avenida Sá da Bandeira, na cidade de «tão doces e lavados ares» de que falava Eça de Queirós.
Os anos passaram e o culto que eu votava a muitas figuras destacadas do pensamento integralista, em especial aos fundadores do movimento (que venerava, com fervor, na altura em que ingressei na Universidade), foi, infelizmente, desaparecendo, pouco a pouco, pela contemplação de um dos mais lastimáveis quadros de abdicações, de transigências e recuos que até hoje tive o desgosto de presenciar. Com pasmo e estupefacção vi grande número dos pioneiros do nacionalismo integral, praticamente, esquecerem as páginas dos seus livros de outrora e enfileirarem, com desfaçatez, nas hostes dos defensores da monarquia democrática, dos entusiastas das liberdades fundamentais, dos campeões da vitória das demo-plutocracias e do marxismo sobre o autoritarismo totalitário fascista e nacional-socialista.
Contudo, no que diz respeito a Caetano Beirão, graças a Deus nunca tive a amargura de me sentir obrigado a deixar de o julgar digno da admiração e do respeito que lhe votava desde rapaz. Ele não pertencia — louvado seja! — à escola daquele destacado militante do integralismo que, segundo conta nas suas memórias o Sr. Cunha Leal, lhe surgiu, agora, a penitenciar-se do seu ódio à Revolução Francesa e a dizer-lhe compungido que só após se perder a liberdade se sabe apreciar o seu valor.
Caetano Beirão, fossem quais fossem os acidentes da sua vida pessoal (e também ele conheceu a prisão, a seguir a 1926) jamais renegou princípios e convicções passadas ou principiou, sem aviso ou explicação, a incensar os erros e as mentiras que combatera grande parte da sua existência. Para ele, como para os melhores combatentes da Europa, a sua honra era a sua fidelidade.
Circunstâncias várias, em primeiro lugar a fraternal amizade que me ligava a Caetano de Melo Beirão com quem luto, lado a lado, na mesma trincheira, desde os bancos da Faculdade de Direito, levaram-me a estreitar os contactos e a penetrar um pouco na intimidade do autor de "Via Latina". Durante o meu curso de oficiais milicianos, com a maior simplicidade e a mais afectuosa cordialidade, Caetano Beirão recebia-me em sua casa, nos fins de semana. No domingo eu jantava lá frequentemente havendo, sempre, à noite, uma pequena reunião, com conversa interessante e viva, que, por regra, nos momentos de maior animação, eu era forçado a abandonar, para tomar o caminho do regresso ao quartel, em Mafra.
Mais tarde, lembro-me perfeitamente, estava, por curiosa coincidência, ao lado de Caetano Beirão e seus filhos quando me foram dadas as primeiras notícias fidedignas da sublevação de Argel. Era a 14 ou 15 de Maio. Tínhamos ido escutar uma conferência de Gérard Hupin sobre Charles Maurras. No fim, Jacques Ploncard d`Assac aproximou-se de nós e, sorridente, optimista, disse-nos o que sabia dos acontecimentos. Confirmou a notícia, dada pelas agências, de que o nome do general La Perche fora invocado pelos revolucionários, no Forum. Em face disso expressei algumas reservas e dúvidas, ciente, como estava, de que desse general nada mais podia vir senão o perjúrio, a desonra e a infâmia. Em todo o caso, sob o meu cepticismo havia, ainda, um forte substracto de esperança. Pensava que a invocação de tão abominável nome talvez não passasse de manobra transitória ou de infeliz balão de ensaio de grupo mais ou menos restrito e que, a final, nunca o poder viria a cair em tais mãos. Tremenda ilusão a minha!
Os eventos tomaram o rumo de todos conhecido e o sonho que eu sonhava, ao lado de Caetano Beirão, o sonho de um início do ressurgimento da Europa, de um firme começo de reacção contra as forças da barbárie e da desordem sossobrou frente ao amargo, sórdido e torpe quadro das realidades. Nesse período, a acompanhar-nos, constantemente, nos nossos anseios, a compartilhar dos nossos desencantos, encontrávamos sempre, o polemista corajoso de Resposta à letra ao jornal Novidades. As nossas tentativas de avançar para além do ideário integralista — para além no sentido do aprofundamento do que esse ideário tinha de anti-democrático, anti-liberal, anti-personalista ou individualista, autoritário, hierárquico, pré-fascista e pré-totalitário — não escandalizavam Caetano Beirão, antes deparavam com a sua compreensão e a sua simpatia. Ele não deixava de nos acompanhar, com uma discreta presença tutelar, embora, de idade e formação diferentes, não quisesse lançar-se connosco numa empresa de renovação doutrinária primordialmente inspirada em preocupações de índole filosófica a que nunca se sentiu ligado e que nunca o entusiasmaram com veemência.
Morto Alfredo Pimenta, Caetano Beirão tornara-se o mais prestigioso dos sobreviventes da Acção Realista Portuguesa, agrupamento em que se destacaram individualidades como João Ameal, Fernando de Campos, Luís Chaves, Gastão de Melo de Matos, e outros. A sua devoção à memória do erudito pensador de "Novos Estudos Filosóficos e Críticos" foi sempre exemplar e tocante, testemunhando um carácter nobilíssimo. Na presença de Caetano Beirão nunca ouvi uma alusão irónica a certos pendores pessoais mais ou menos discutíveis (desses que toda a gente tem) de Alfredo Pimenta, ou uma referência pouco elogiosa a determinados livros da fase esteticista do poeta de "Paisagem de Orquídeas", sem que o investigador de "Cartas da Rainha D. Mariana Vitória" acorresse a observar, serenamente, que, mesmo nos livros de menor valia de Alfredo Pimenta, palpitava o talento e que, até nas extravagâncias individuais, este evidenciava inconformismo, desassombro e coragem.
A obra de Caetano Beirão sem ser, e é pena, extremamente vasta, possui um real e incontestável valor. No domínio da doutrinação política salientam-se os volumes "Uma Campanha Tradicionalista", e "A Lição da Democracia" de tão acentuado mérito no seu tempo, "O Tradicionalismo da Carta", "Resposta à letra ao jornal Novidades", etc., e vários e notáveis artigos dispersos em jornais e revistas que bom seria fossem reunidos e publicados de novo.
No domínio da historiografia legou-nos o excelente trabalho "Dona Maria I", que bastaria para o celebrizar além das já mencionadas "Cartas da Rainha D. Mariana Vitória" (lastimavelmente não passaram do tomo I), de "O Problema da sucessão do Rei D. João VI na História de Portugal do Sr. Fortunato de Almeida", de "Vinte e oito anos de guerra — 1640-1668", de "El-Rei D. Miguel e a sua Descendência", de "História Breve de Portugal" (torpemente atacada, na sua 2.ª edição, por um saltimbanco da política nacional que, se um dia está ao lado do reviralho, no dia seguinte faz tagatés à situação), etc., etc. Foi, sem dúvida, enquanto historiador que mais se destacou Caetano Beirão, convindo, todavia, não esquecer o cronista de "As Grandes Reportagens de outros tempos", (com o pseudónimo de Amador Patrício), e de "Via Latina", com capítulos em que palpita a sua admiração pela extraordinária figura de Benito Mussolini e um grande amor pela Itália.
No entanto, no instante em que Caetano Beirão nos deixou definitivamente, mais do que à sua obra — obra que, na sua maior parte, não perecerá, apesar de lhe faltarem as consagrações da fama fácil e os aplausos de suspeitos intuitos — o que rememorámos com nostalgia foi a sua figura, tranquila mas inquebrantável, o seu aprumo inalterável, a sua gentileza na amizade. Com ele desapareceu um pouco de nós próprios, dos nossos anos de aprendizagens, quimeras, entusiasmos, pugnas, enfim, aquela época encantada cujo perfume se foi diluindo no dobrar dos anos, a época em que éramos jovens confiantes, despreocupados e pensávamos, candidamente, que um futuro cheio de feitos e aventuras nos aguardava e chamava por nós.
António José de Brito
(In «Agora», n.º 344, 17.02.1968., pág. 12).

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