<$BlogRSDURL$>

segunda-feira, dezembro 27, 2004

COMUNIDADE E DISCIPLINA  

Falar em comunidade é indiscutivelmente, pôr o problema da existência de algo que é comum. Mas só há algo em comum quando nos encontramos perante elementos distintos e não perante um único ente. Comunidade é, assim, uma unidade que reúne e liga múltiplas realidades, é, numa palavra, unidade da pluralidade. Reduzir a noção de comunidade a mero acordo entre os que nela participam, representa um contra-senso flagrante, pois destrói aquilo que, precisamente através do conceito de acordo, se pretendia explicar. Se a comunidade resulta de um acordo — conforme pretendem as doutrinas contratualistas — através de um acordo pode ser dissolvida. E, então, não há, verdadeiramente, nada de comum, não há nada que ligue a valer cada um dos membros um ao outro — há apenas uma coexistência dependente por inteiro de arbítrios particulares. Com efeito, o que for comum a vários elementos e os abranger, é qualquer coisa que os constitui, logo é impossível que dependa do bon vouloir dos mesmos.
E, de resto, que possam pôr-se de acordo, que consigam pactuar, isso implica já que os diferentes sujeitos possuam algo em comum e estejam, portanto, duma forma ou doutra, em comunidade.
Simplesmente se temos de repelir a tese de que a comunidade resulta de um contrato ou acordo, a solução que parece impor-se é considerá-la forçosa e necessária para quantos ela englobe. Estes últimos de nenhum modo poderiam subtrair-se à acção da comunidade que os dominaria, inflexivelmente, quisessem ou não. Semelhante ponto de vista conduz a negar qualquer autonomia às individualidades vinculadas pelo elemento comum. Hão-de estar elas, por inteiro, dentro da comunidade (doutro modo, a situação de só estar em parte arrastaria consigo uma independência parcial que, acaso, poderia tentar voltar-se contra a dependência da restante parte e destruí-la) e, portanto, contêm, totalmente, em si, a presença irresistível da unidade comum. Por consequência, as referidas individualidades não possuem nenhuma actividade própria específica, nada são por si.
Serão, no entanto, em si? Também não, porquanto se fossem em si ou não estariam por completo mergulhadas no todo ou, pelo menos, teriam actividade própria específica.
Não se verificando tais condições somos obrigados a concluir que nada constituem por si. E nada sendo em si nem por si, apenas são enquanto a unidade é. Em última análise, só esta existe. E, nessa altura, está também aniquilada a comunidade.
E de que maneira devemos conceber esta derradeira para que se mantenha a indispensável unidade na pluralidade sem que a primeira aniquile a segunda e vice-versa? Em nosso entender de uma única maneira. Considerando a unidade uma exigência normativa, um dever dirigido aos sujeitos múltiplos que jamais pode desaparecer e que, por conseguinte, não depende dos seus arbítrios, e, ao mesmo tempo, reconhecendo a cada elemento plural a liberdade de se decidir, negativa ou afirmativamente, face a essa indestrutível normatividade.
Esclareçamos, contudo, que a unidade normativa não deve entender-se num sentido neo-kantiano como ideal inatingível, entidade transcendente aos múltiplos. A norma está-lhes imanente, é-lhes sempre presente — embora a possam recusar. Exige-se uma superação do neo-kantismo que sem destruir a tensão entre o söllen e o sujeito concreto a que aquele se dirige os congregue, unitariamente, numa síntese superior.
A comunidade situa-se assim in interiore homine. É um modo de existir das individualidades plurais quando elas resolvem ultrapassar o ethos de discórdia e desagregação e afirmar-se no uno. É óbvio que, em contrapartida, pode encaminhar-se para a auto-destruição e o rebaixamento negando a ideia de unidade ou desconhecendo-a, o que é um processo de a negar (de facto, um desconhecimento absoluto da ideia de unidade não é concebível porque, nesse caso, nem sequer as linhas que escrevemos teriam sido traçadas: a ideia de unidade qual existência encontra-se, portanto, sempre proposta à consciência subjectiva seja qual for o seu porta-voz; alhear-se a semelhantes apelos é já desdenhar da força imperativa da unidade ou seja, equivale a negá-la).
Reparemos, todavia, que só há comunidade se os sujeitos plurais se inserirem dinamicamente no uno que se dirige a eles qual regra ética, então a comunidade estrutura-se em função dos conceitos de obediência e disciplina. A comunidade é uma normatividade, uma lei que se torna elo de ligação, vínculo unificador. Não é, evidentemente, pura obediência, pura disciplina, visto que a disciplina e obediência puras podem ter os conteúdos mais diferentes, inclusive anti-comunitários. É obediência e disciplina na medida em que é obediência e disciplina perante a própria norma da unidade, na medida em que a lei disciplinadora a que se obedece é a lei que unifica.
Se nem toda a disciplina e obediência levam à comunidade, não há dúvida que toda a comunidade leva à disciplina e à obediência sem as quais não subsiste.
Por isso, os ataques contra o espírito de obediência e disciplina conduzidos por uns tantos portentosos teorizadores e por eles denominado de concepções comunitária não passa de simples expressão de um mal disfarçado anarquismo besuntado com fortes pinceladas de lirismo sentimentalóide.
Sustenta-se que a substância da comunidade é o amor, pois só o amor junta e liga o que se encontra disperso e dividido. O resto, afirma-se, não passa de artificialidade, de mera coercibilidade exterior.
Nada menos exacto, no entanto. O amor é arbitrariedade e subjectividade. Com verdade, apenas se pode dizer dele que não passa de «oiseau rebelle qui n`a jamais connu de loi». Eis porque o amor isolado nada pode fundar e tão somente consegue destruir. Supô-lo factor de unidade é, afinal, vir a recair no contratualismo, ficando a comunidade a depender de impulsos sentimentais incontroláveis. A unidade comum se é alguma coisa de autêntico não pode traduzir-se senão em disciplina que exige esforço, em obediência que não é agradável mas obrigatória para que tudo não tombe imoralmente no caos. A comunidade é obra da vontade, da vontade tensa cujo expoente máximo é o querer heróico, não é um fado dedilhado à guitarra. Exige elevação e dureza em vez de abandono, espontaneidade ou «conquista da felicidade». A sua força reside no transcendente ideal da honra e não nas blandícias de um amor dito espiritual ou pseudo-espiritual.
António José de Brito
(In Praça Nova, n.º 9, págs. 1/6, Março de 1963)

0 Comentários
Comments: Enviar um comentário
Divulgue o seu blog! Blog search directory

This page is powered by Blogger. Isn't yours?