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quarta-feira, dezembro 22, 2004

CONTRA A DEMOCRACIA CRISTà

Publicou, recentemente, J. S. da Silva Dias, nome assaz conhecido dentre os católicos progressivos portugueses, um volume de "Estudos Políticos", escritos naquela linha ideológica que vem de Lacordaire passando por Sangnier até ao Sr. Jacques Maritain. Mais pela tendência doutrinária que representa do que pelo seu valor intrínseco merece a obra ser analisada e criticada nos pontos capitais. Em primeiro lugar naquilo que representa a sua noção ética fundamental: o personalismo; em segundo lugar nas soluções político-institucionais que como meios visam a concretização desse ideal; em terceiro e último lugar nos ensaios de conteúdo mais ou menos sociológico que estudam o «drama da hora presente», ou o destino histórico do conservantismo.

O ponto de partida personalista
Em vários passos do seu livro repudia J. S. da Silva Dias a ideia da liberdade considerada como um fim em si, ideia que com muita justeza identifica com «o reinado do ponto de vista e do cepticismo». Afirma, realmente, este que todas as verdades se equivalem; da mesma forma, partindo da liberdade como critério todos os actos são bons desde que sejam produtos duma vontade não constrangida. Posições paralelas como se vê e que de resto se revelam insustentáveis, pois se as verdades se equivalem que títulos apresenta o cepticismo para exigir que se acredite nele? E se todos os actos livres são bons como se poderá condenar do ponto de vista liberal os actos dos indivíduos que neguem a liberdade?
A esta concepção, meramente formal, contrapõe Silva Dias o preceito tradicional de que a liberdade é «um meio... subordinado ao dever (na aceitação dos fins)».
Surge, nesse momento, o problema crucial da hierarquia dos fins a aceitar, surge a questão da tábua de valores donde devemos partir.
Faz aqui a sua aparição o personalismo ético. Segundo esta doutrina há que distinguir no homem dois aspectos diversos: o indivíduo e a pessoa. O indivíduo é em si imperfeito, frágil, incompleto, só podendo existir como parte dum todo, a pessoa é na ordem natural o que há de mais elevado, é autónoma, é ela mesma um todo. Desta forma, o indivíduo tem como fim o ente de que é uma parte — a sociedade — mas esta é por sua vez um mero instrumento em relação à pessoa.
Por isso, quanto à independência individual pertence ao Estado discipliná-la: «incumbe-lhe harmonizar o seu exercício com as exigências do bem-comum, de modo que a minha liberdade não tolha a do meu vizinho, nem ambas tolham a de todos». Compete-lhe, no mesmo sentido, «defender e incorporar nas leis os valores, os ideais e os princípios que constituem o fundo ideológico comum do povo respectivo e são o ingrediente fundamental da paz civil». Além disso, «pode e deve intervir na defesa da moral e do direito... na medida em que a paz social exige ou permite». É claro, porém, que «para lá deste limite imperioso da liberdade individual existe uma vasta esfera em que só o Estado totalitário ousará intervir. É justamente nesse domínio que a liberdade da pessoa goza de soberania perante a autoridade do Estado».
Tais são os princípios personalistas que os seus defensores apresentam como uma superação do Liberalismo do século XIX. Estes preceitos básicos, contudo, encontram-se já nessa cartilha do pensamento político da passada centúria que foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Nela se afirmam igualmente os limites da liberdade: pois esta consiste «em poder fazer tudo que não prejudique a outrém», mas, igualmente, também nela se afirma que o fim da sociedade é a manutenção e defesa dos direitos naturais do homem. As diferenças residem pois na terminologia.
Silva Dias fala em «ingredientes da paz civil» e da «paz social» que ao Estado compete defender; a Declaração, no equilíbrio das liberdades, missão que pode perfeitamente comportar a extensão dos poderes públicos bem além do laissez faire, laissez passer (como por exemplo o frisou Parodi no seu "Traditionalisme et Democratie") e ambos — Silva Dias e a Declaração — para além da Comunidade erguem imediatamente, em concordância notável, a «soberania de pessoa» dum lado e os «direitos naturais do homem» do outro.
Pondo de parte, porém, o problema de filiação histórica do personalismo, interessa discutir e determinar o seu valor racional.
Para se considerar a pessoa um fim seria necessário que esta fosse na ordem natural perfeita, valiosa em si e por si, logo incapaz de errar e de enganar-se. Doutra forma, reclamar a liberdade para ela, seria reclamar a liberdade para o erro e a mentira. Ora tendo de admitir-se que a pessoa é dotada de livre arbítrio sem o qual seria um ser inanimado, uma coisa e não pessoa, a união da Liberdade e da Perfeição, indica que ela é um Absoluto cuja vontade traz consigo pelo simples facto de querer o Bem e o Racional. Ora ao lado da pessoa situa-se o indivíduo, a pluralidade dos indivíduos e daqui se vê que sendo a primeira um Absoluto e a Perfeição contradiz em si todas as características dos últimos (não se podem admitir vários Absolutos porque então nenhum deles seria Absoluto). E como não é possível admitir num sujeito uno, idêntico a si mesmo, atributos contraditórios, a solução consiste em negar a unidade e a identidade do composto humano. Solução a que conduz a lógica da doutrina, pois se o homem é uno todos os actos seus teriam de ser julgados em função dum critério que os englobasse sem distinções e não determinados actos em função de valores para a pessoa, como se não fosse o mesmo homem no seu eu «que unifica os diversos elementos» (Louis Lachance, o.p.) quem estivesse presente nuns e noutros.
E não se pense um minuto em defender a solução personalista admitindo uma separação entre os dois elementos do homem mais acentuada ainda do que a separação cartesiana de alma e corpo. Se estão situados em dois planos ontológicos diversos é inútil proclamar os direitos da pessoa em face do Estado e defendê-los com ardor. Seria impossível a este, a essência, atentar contra ela. A sociedade estaria situada num domínio completamente alheio ao espírito que não poderia ofender.
Será, no entanto, totalmente, de repudiar a distinção entre indivíduo e pessoa? Não! Mas há que concebê-la - de maneira diferente do personalismo — antes como duas possibilidades do ser humano que ao mesmo tempo não pode realizar uma e outra coisa. O homem só pode conquistar dimensão moral procurando tornar suas, isto é, procurando executar as normas ditadas por um Bem objectivo que se situa acima dele. Essas Normas reúnem a todos numa comunidade, numa unidade de obras, em que o indivíduo supera a sua particularidade para se tornar então uma pessoa que em si mesmo recebe o dom divino da universalidade. Na medida em que se distingue, se isola egoisticamente dos seus semelhantes, apresenta toda a sua imperfeição e insuficiência, na medida em que nega o seu eu empírico para se tornar família, Nação, Estado, adquire então valor ético e é homem no sentido elevado da palavra. A Comunidade não existe como coisa transcendente em que ele se submerja e desapareça, existe para o seu aperfeiçoamento, mas o seu aperfeiçoamento não existe sem a Comunidade, de modo que um sem o outro não são compreensíveis, um círculo dialéctico os ligando, como o indissolúvel vínculo fora do qual só há a barbárie e o caos.

A noção de Democracia
Assente como premissa o personalismo, J. S. da Silva Dias procura no terreno das instituições uma solução intermédia entre dois enormes males: a Ditadura, estrutura política do totalitarismo opressor, e o Demo-liberalismo, estrutura do Individualismo anárquico.
Apregoando, no ponto de vista teórico, dum lado a subordinação do indivíduo, do outro a liberdade da pessoa, Silva Dias, procura estabelecer no terreno político uma tendência de equilíbrio negando o exclusivismo anti-partidarista e o uso do poder pessoal característico das Ditaduras, mas repudiando por forma análoga a «democracia opinativa» em que «os governantes não mandam por direito próprio» em que se «discute o caminho mais seguro para o predomínio anárquico das sociedades particulares sobre a sociedade política e o despotismo de uma sobre outra classe». As suas soluções tendem por um lado a assegurar a autoridade necessária do Estado, do outro a limitá-lo para que se não torne Leviatã.
No primeiro sentido, repudia o parlamentarismo achando que «Legislativo e executivo devem ser ambos soberanos, independentes e autónomos» com a restrição de que o executivo não pode revogar as leis emanadas do segundo nem tão pouco legislar em sentido contrário ao que imprimiu ao direito, «mas pode legislar nos casos particulares e de urgente necessidade pública» e reforça a competência por meio da representação orgânica.
No sentido contrário exige que os governantes sejam «designados pelo povo», sendo essa designação por sufrágio atomístico na eleição dos organismos bases (freguesias) e do Chefe de Estado, e por sufrágio universal ou por sufrágio universal e sufrágio orgânico nos Parlamentos políticos: «Está bem que haja uma ou duas assembleias representativas das opiniões individuais, mas ao lado delas ou constituindo parte delas devia existir uma representação de família, da profissão, do emprego, do concelho, etc.». A escolha dos governantes exige, em circunstâncias normais, o direito de formar partidos políticos.
Colocando-se no ponto de vista do autor ao exigir reforço da autoridade do Estado, não é difícil reconhecer que os meios empregados são péssimos. Reforçar a autoridade é reforçar a sua unidade, reforçar a sua unidade é inconcebível com dois poderes autónomos independentes e soberanos. Montesquieu, o teórico da separação dos poderes, pedia-a como garantia da liberdade, como método para o Estado se manter nos seus limites, não para assentar em base sólida o seu poderio.
Quanto ao resto a Democracia-Cristã só traz como novidade a adopção parcial do sufrágio corporativo. Ora este na representação de interesses como guia consultivo pode servir; na designação dos governantes não lhes dá competência no ponto de vista do interesse nacional. A soma da vontade dos indivíduos ou grupos nunca conseguirá atingir o todo.
De resto para quem repelir a miragem duma pessoa isolada e superior à sociedade o problema não consiste em rodear o Estado de barreiras mas antes em descobrir o processo para que seja cada vez mais Estado, isto é, realidade ética. Trata-se não de restringir o poder dos governantes, mas de dirigi-los no sentido do interesse geral. Como esse interesse é uma unidade, a primeira condição requerida consiste na unidade de poder — logo governo pessoal.
E, para que esse governo não resulte uma tirania arbitrária do Chefe, há que fazer coincidir pelo melhor processo o interesse geral com o seu interesse privado pela sucessão hereditária do poder. Abandonado o fantasma das restrições externas do Estado surge, assim, a Monarquia autoritária como garantia interna suprema da perpetuidade do Estado ou seja da Pátria.

Considerações sociológicas
Procura traçar o autor no breve ensaio destinado ao estudo da «sorte dos conservadores» a oposição psicológica-social entre aqueles que vivem com os olhos no passado «embalados pelos braços da tradição, com as suas proezas heróicas e os seus rasgos de generosidade» e os que permanecem de «olhos fitos no mundo utópico que há-de vir, só nele vendo uma condição político-social digna». Estes dois tipos na sua pureza são casos limites em torno dos quais oscilam os movimentos humanos. Realmente a pura tendência conservadora não existe nem pode existir. Na vida, as gerações sucedem-se, os costumes mudam, o movimento é uma realidade.
A mera tendência defensiva traz consigo o gérmen da derrota. Aqueles que se esquecem de agir, fazem, apenas, com que os outros ajam em seu lugar. Este repúdio do conservantismo estático poderá entender-se, no entanto, como a aceitação duma terceira posição, renovadora no sentido de Silva Dias, isto é, duma terceira posição que aceite os acontecimentos novos para a eles se adaptar, sem contudo os criar? Não! Trata-se antes de coisa bem diferente, trata-se de adoptar aquele «conservantismo revolucionário» (defendido por Moeller van der Bruck) que, baseado nos seus princípios é ele mesmo o dirigente da História, aquele conservantismo que não aceita acontecimentos criados por forças alheias e hostis para nelas humildemente se infiltrar, mas antes vive numa contínua auto-superação, numa contínua «permanência na renovação», num dinamismo perpétuo que pela solidez das ideias e audácia da obra o torne um sempre jovem triunfador.
No segundo ensaio, dedicado ao «drama da hora presente», Silva Dias estuda a genealogia dos diversos humanismos contemporâneos. Partindo do colapso da burguesia, do fracasso desta na realização do seu «culto da dignidade humana» afirma que a esta restou-lhe o apegar-se aos seus privilégios e regalias por meio do Fascismo, «reduto embora contrafeito do mundo conservador» ou o caminhar no sentido do comunismo que não distinguindo entre pessoa e indivíduo e tendo do homem uma noção prevalentemente materialista não pode deixar de se apresentar como uma tentativa de libertação do homem. Contra estas místicas e reassumindo o ideal da verdadeira dignidade humana surge o Personalismo, etc.
A afirmação — exacta, talvez — de que no Fascismo se recolheu «embora com intenção de desembaraçar-se do aliado» parte da burguesia liberal, faz reflectir, porém, num interessante ponto da vida futura da mística demo-cristã.
Quem se acolhe a ela? Surge como um movimento de pura renovação? Parece bem que pelo contrário os resíduos do liberalismo se lhe dirigem com uma satisfação evidente e que a sua democracia-cristã é cada vez mais democracia e cada vez menos cristã. Nas suas fileiras infiltram-se mais e mais crentes duvidosos mas democratas convictos. A sua doutrina procurando satisfazer melhor o ideal revolucionário de 89 e a sua benevolência para todos os que partilham do mesmo ideal de «dignidade humana» embora inimigos da Fé (S. Dias cita, por exemplo, com toda a consideração, Roosevelt, Trumann, Marshall, Atlee, Blum — protestantes, maçons, judeus, e pelo pensamento autênticas nulidades) fazem com que a sua semente pretensamente renovadora e religiosa esteja breve destinada a desaparecer para maior glória das Lojas e do Semitismo universal.
António José de Brito
(In «Mensagem» n.º 14, 23.12.1948)

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