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terça-feira, dezembro 28, 2004

A UM CONSERVADOR ILUSTRE 

Exmo. Sr.:
Avistámo-nos, há poucos dias, por casualidade, e logo V. Exa., a quem já fui sucessivamente apresentado uma boa meia dúzia de vezes, se dirigiu a mim, dizendo que desejava falar comigo. Eu sou um humílimo desconhecido e V. Exa. é, no regime, um alto vulto que, além de ocupar posição de destaque no mundo da ciência e do saber, consegue, ainda, numa transbordante actividade, servir sacrificadamente a Pátria em importantes lugares das empresas de que depende a economia nacional e em cargos políticos que lhe deram a mais justa notoriedade em todo o país. Por isso, o facto de V. Exa. se ter dignado descer do seu pedestal até à minha insignificância, esse facto, só por si, penhorou-me e honrou-me extremamente. É claro que não supus um minuto que V. Exa. quisesse conversar comigo para desperdiçar o seu tempo louvando os meus insignificantes trabalhos, que nunca leu, ou para discutir, por exemplo, o pensamento de Varisco ou de Octave Hamelin. E de nenhum modo me enganei. O que V. Exa. pretendia era, unicamente, expressar-me o seu desgosto pela minha actuação de escritor nas colunas do "Agora". Escandalizara-o, em particular, o suplemento deste semanário sobre o Fascismo, em que eu tivera a ousadia de colaborar de várias maneiras, o melhor que pude e sei. V. Exa. esclareceu, com desassombro, que desde sempre reprovara tudo o que tenho afirmado acerca dessa ideologia maldita. Mas que eu já não aparecesse como um simples e isolado extravagante, antes enquadrado num grupo de intelectuais, alguns deles muito jovens, que não hesitavam em proclamar-se fascistas, é que pareceu a V. Exa. a «abominação da desolação». Evidentemente, sendo V. Exa. um moderado profissional, a sua indignação e a sua mágoa exprimia-as V. Exa. em termos comedidos, com alguns elogios de circunstância à mistura. Uma vez que os acontecimentos futuros são imprevisíveis, compreende-se, na verdade, que V. Exa. não queira tomar uma atitude de total intransigência que lhe feche de chofre uma determinada saída política, embora de muito remota e pouco provável utilidade. V. Exa! De resto, de que modo um anti-fascista tão resoluto como V. Exa. poderia ser intransigente, sem cair no pecado de extremismo, isto é, de fascismo?
Mas, enfim, eu, todo entregue à delícia e à suprema honra de trocar impressões com uma personalidade do destaque de V. Exa., busquei prolongar a conversação. E atendendo a que nas suas polidas censuras e, até, numa ou outra fase gentil havia, permanentemente, um fundo de azedume e acrimónia, ocorreu-me a ideia de solicitar da esclarecida inteligência de V. Exa. os motivos, por certo profundos, da sua tão manifesta e arreigada aversão ao Fascismo.
V. Exa. teve um sobressalto, ao escutar as minhas interrogações, como se eu estivesse a proferir fortes inconveniências e fosse obsceno imaginar que o anti-fascismo precisa de motivos e argumentos. No entanto, depois de breve pausa, V. Exa. respondeu-me que a sua consciência de católico não lhe permitia pactuar de maneira nenhuma, com um sistema que perseguira tão atrozmente a Igreja.
Não deixei de manifestar o meu espanto, ao ver o Fascismo qualificado desse modo e objectei que desconhecia quaisquer autênticas perseguições à Igreja na Itália do Duce e no Reich hitleriano. Pois não era verdade que a Igreja celebrara com aqueles dois Estados concordatas hoje ainda vigentes e cuja validade firmemente defende? Pois não era verdade que cardeais e bispos, por exemplo um Von Galen e um Faulhaber, permaneceram livres nas suas dioceses, de 1933 a 45, apesar das suas acusações e protestos contra o regime nacional-socialista? Onde se viram, na Alemanha e na Itália fascistas, a prisão de prelados e o seu desterro que assinalaram a nossa república democrática? Onde se viu a expulsão das ordens religiosas que marcou a tão democrática terceira república francesa? E onde se vislumbraram, sequer, as matanças de eclesiásticos que caracterizaram a república democrática espanhola, tanto da simpatia dos Srs. Bernanos, Mauriac, e do ultra celebrado e citado Sr. Jacques Maritain? Houve atritos, na Alemanha do Führer e na Itália de Mussolini, entre o Poder temporal e o Poder espiritual? Sem dúvida. Mas se ninguém se lembra de proclamar a democracia perseguidora da Igreja por causa da prisão e desterro de bispos, por causa da expulsão de ordens religiosas, por causa dos massacres de padres e freiras, cometidos pelas democracias portuguesa, francesa e espanhola, porque havemos de proclamar o Fascismo anti-católico por causa de incidentes ocorridos na Alemanha e Itália, e que nem sequer foram tão graves como os que se verificaram em monarquias cristianíssimas, com excomunhões de reis e tudo o mais?
Eu tomei um certo calor ao formular as minhas perguntas e V. Exa., após encarar-me cheio de surpresa, disse-me, sem me replicar directamente, com um sorriso que pretendia ser paternal: «Meu caro, o que importa, verdadeiramente, não é averiguar se o Fascismo perseguiu ou não a Igreja; o que interessa acentuar é que o Fascismo, na sua essência, é uma ideologia incompatível com o Catolicismo, pois que não é personalista, não aceita a supremacia da pessoa humana sobre a Sociedade política».
Nesta altura, parei estupefacto e fiquei silencioso. V. Exa. colocou protectoramente a mão no meu ombro, supondo-me, por assim dizer, fulminado. De facto, eu estava abismado, mas não pelos motivos que V. Exa. julgava. O que eu estava era em assombro, ao ver o personalismo elevado a dogma de fé e servindo de critério para definir as doutrinas perante o Catolicismo. Passado um primeiro momento de espanto, não deixei, imediatamente, de expor as minhas objecções. E observei que o personalismo era doutrina moderna e não me parecia que a religião católica datasse dos Garrigou-Lagrange, dos Gillet, dos Olgiati e do ultra celebrado e citado Sr. Jacques Maritain. E seriam pensadores na essência anti-católicos filósofos como Louis Lachance, o P. Pedro Descoqus, s.j., o prof. Charles de Koninck e o prof. Leopoldo Eulogio Palacios, todos vigorosamente anti-personalistas e cuja ortodoxia jamais foi posta em causa? A moda hoje em dia levava a confundir personalismo e catolicismo, prossegui; não pensava, porém, que a moda fosse o equivalente de uma formulação dogmática. O personalismo até ao presente momento não passava de uma teoria, de resto falsíssima, e racionalmente reputável. Que o Fascismo não fosse personalista só provava que o Fascismo estava na verdade.
Ouvindo estas considerações, V. Exa. recuou um pouco, como se tivesse escutado a maior das blasfémias. Depois encolheu os ombros e, por certo reflectindo que não valia a pena permanecer no plano das ideias, comunicou-me com secura que houvesse o que houvesse, jamais poderia dar o seu aplauso a uma ideologia responsável pelo extermínio de seis milhões de judeus. Fiquei assaz entristecido, ao ver V. Exa. despenhar-se dos cumes da teologia para o charco da propaganda bélica das democracias vitoriosas. E, bastante impaciente e mais secamente ainda, ripostei que, se ninguém condenava os princípios demo-liberais pelas atrocidades da revolução de 89 ou pelos bombardeamentos a fósforo de Bremen, Hamburgo, Dresden, etc., eventos historicamente incontestáveis, constituía puro disparate repudiar a concepção fascista em nome da chamada exterminação dos judeus que, segundo todas as probabilidades, não passava de invencionice torpe destinada a desacreditar os vencidos e a justificar as monstruosas indemnizações pagas a Israel.
V. Exa., inflamado, bradou-me, sem demoras, que pouco lhe importavam as digressões em torno da verdade histórica e tão só o que representava convicção generalizada de todos ou quase todos. O indiscutível era o sentimento geral de que o Nacional-Socialismo assassinara a totalidade dos hebreus da Europa. E não passava de estupidez rematada procurar remar contra essa maré. Em vez de esgrimirmos contra moinhos de vento eu e os que acompanho devíamos, unicamente, ter a preocupação de servir o actual statu quo nacional, evitando cuidadosamente comprometê-lo.
Tendo dito isto em tom soberano e dogmático, V. Exa. houve por bem retirar-se. Não fui eu quem procurou retê-lo, visto que a companhia de V. Exa. estava a aborrecer-me supinamente. Quedei-me, com satisfação, solitário, a cogitar nas últimas frases de V. Exa. E é o resultado dessas meditações — aliás breves, visto que o tema não merecia mais — que me apresso a transmitir a V. Exa.
Começo por observar que não percebo porque forma um tão reduzido número de franco-atiradores, como são os fascistas que escrevem neste semanário, conseguem comprometer algo ou alguém excepto eles próprios. Bem gostaria que V. Exa. me esclarecesse tal mistério.
Por outro lado, V. Exa. manifesta o seu desdém pela verdade histórica. O que lhe importam, pelos vistos, são as convicções generalizadas, ainda que mentirosas. V. Exa., há alguns anos atrás, protestava indignado contra as acusações que atingiam a memória do Senhor D. Miguel I — que provinham, por coincidência, do campo dos que actualmente se encarniçam contra o Fascismo — e acusava a historiografia maçónica de deturpar o passado português. Percebo agora, que V. Exa. continua a ignorar se o filho de D. João VI foi um monstro ou um mártir e se o passado português corresponde ou não às descrições dos Pinheiros Chagas e quejandos. Tais problemas em nada o interessavam. O que V. Exa. queria era acompanhar com os seus aplausos uma corrente de revisão historiográfica que surgira bem antes de V. Exa. e lhe parecia irresistível.
V. Exa., se seu pai fosse alvo de graves acusações em que mais ou menos toda a gente acreditasse, não procuraria averiguar do bom fundamento dessas acusações, investigando uma verdade histórica que despreza; preferiria, com certeza, mudar de nome e arranjar nova árvore genealógica, em lugar de se dar ao trabalho inútil de atacar uma convicção generalizada. Não podemos deixar de felicitar V. Exa. pelo nobre comedimento das suas posições.
V. Exa. alude à defesa do statu quo como única tarefa digna que nos competiria. Lastimo que V. Exa. não se tenha referido, de preferência, ao aperfeiçoamento da situação presente e à garantia para o futuro do que nela há de válido. Mas V. Exa. — não ignoro isso — classifica de tolas as preocupações pelo porvir do regime. Ocupemo-nos exclusivamente com o que está e não façamos ondas, não mexamos sequer numa vírgula, que as consequências podem ser trágicas, eis o lema de V. Exa. V. Exa. no pavor de toda a modificação, de toda a agitação, julga, até, perigosíssimo o movimento de oposição às desvairadas ideologias do nosso tempo, esquecendo-se de que o triunfo dessas ideologias em Portugal seria precisamente, o fim do statu quo que V. Exa. afirma defender. Basta pensar, verbi gratia, no personalismo, que V. Exa.
Idolatra, para se perceber que a sua vitória constituiria o fim da situação actual. Se cada pessoa humana é um valor em si, porquê negar-lhe a liberdade de expressão pela censura, recusar-lhe a liberdade de associação e a liberdade política, impedindo a formação de partidos políticos e condicionando o sufrágio universal?
Parece-me em extremo estranho que V. Exa., que nada tem de tolo, não descortine isto. E está-me a parecer que o extremo conservantismo de V. Exa. corresponde antes, ao raciocínio subtil de que uma extrema reacção de defesa é uma aventura que pode trazer riscos a V. Exa., ao passo que o imobilismo, que quase pela certa leva à dissolução, vai protelando a mesma até ao instante supremo em que as contas correntes de V. Exa. na Suíça e na América atinjam nível substancial. Não diremos que o cálculo de V. Exa. seja disparatado. Simplesmente, pela nossa parte, como não pertencemos à elite dos plutocratas e enfileiramos entre os quixotes, que V. Exa. tanto despreza e teme, ao mesmo tempo, preferimos enfrentar os ventos da história e procurar salvar o que puder ser salvo. Doutrinariamente, estamos na mais decidida oposição à mitologia hoje dominante no mundo e que ameaça subverter Portugal. Somos, mesmo, a única oposição autêntica aos falsos ídolos. Entre o mundo da democracia — liberal ou marxista — e o nosso mundo, não há meios termos entre o ser e o não-ser, o bem e o mal. E se não for possível triunfar do ambiente de loucura que sopra sobre o globo, preferimos tombar com plena consciência e em plena luta a deixar-nos arrastar para o abismo, passivamente, indiferentemente alheios a tudo o que não nos traga vantagem ou proveito pessoal. Este o nosso ponto de vista, Exmo. Sr.
Certos da incompreensão de V. Exa., subscrevemo-nos sem qualquer consideração,
António José de Brito
(In «Agora», n.º 332, 25.11.1967, págs. 11/12).

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