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segunda-feira, dezembro 27, 2004

UMA CRÍTICA DO COMUNISMO 

A obra de Nicolai Berdiaeff "O Marxismo e a Religião", além de constituir uma análise indiscutivelmente séria e penetrante das ideias filosóficas do autor de "O Capital", possui, devido a uma linguagem clara e a esplêndidas virtudes de síntese, a qualidade de não ser apenas acessível a uma escassa minoria de técnicos e, em consequência, a vantagem importante de poder influir no espírito do grande público.
Quer dizer: além dum valor teórico, tem um valor ideológico, além de pensamento vivo, capaz de (ao contrário do que acontece com as grandes obras especulativas) por si só agir, directamente, na exarcebada luta de místicas que hoje se trava.
A inclusão deste trabalho na série «Pensamento e Doutrina» da colecção Mensagem - colecção que a todos os títulos se anuncia esplêndida - significa, pois, nitidamente, por parte dos seus directores, José Charters e José Pina Martins (Duarte de Montalegre), a vontade de contribuir para uma solução no sentido europeu, contra-revolucionário e cristão, da imensa crise em que o Mundo se debate e a que Portugal não é alheio. Exemplo notável de fidelidade patriótica nesta hora de deserções, de cumplicidades com o inimigo, de desânimos e de traições.
Karl Marx apresenta-se, muitas vezes, como discípulo de Hegel. Simplesmente, onde este coloca a Ideia Absoluta como essência do universo, o primeiro coloca a matéria, o ser natural. Matéria, ser natural, não concebidos, porém, à maneira grega, medieval ou iluminística, duma forma estática, imóvel, invariável mas considerados como um devir, como a própria actividade do homem ao visar satisfazer as suas necessidades vitais, ou seja como a própria actividade económica. Esse devir, esse agir físico dos indivíduos eis a realidade. E, como consequência, eis a dialéctica. Dado que tudo é movimento, é acto, cada coisa traz em si o gérmen da própria destruição, cada coisa, considerada momento dum imenso fluxo, ao mesmo tempo que se afirma - nega-se, cada coisa, pois tudo se agita e muda e tem de ser superado, ao mesmo tempo que é, está a negar a própria existência - ao mesmo tempo que é - não é.
E além da dialéctica eis, também, o materialismo histórico. A realidade é a actividade económica. Logo, o espírito, a filosofia, a arte, a moral não passam de super-estruturas que se elevam sobre esta base, não passam de produtos dum determinado estádio das forças de produção.
E, finalmente, eis a Revolução. A análise da sociedade capitalista mostra os gérmens da sua morte. A exploração do operário através da mais-valia, e a diminuição do número de empresas, etc., estas antíteses fazem prever o momento da sua negação. A luta de classes, segundo a lei do desenrolar da História, é a fase preparatória da sociedade sem classes, que inexoravelmente há-de surgir.
Berdiaeff, evidentemente, não discutiu nem a mais-valia nem a lei da concentração, refutando-as e dando por finda a sua tarefa de crítico. Pelo contrário. Os debates científicos deixou-os aos especialistas. A sua atenção assentou antes sobre a concepção do Mundo que tão anti-burguês significado faz assumir a esses conceitos económicos.
Em primeiro lugar, denunciou a impossibilidade de ligar o materialismo com a dialéctica.
Este, segundo Hegel - e é Hegel que Marx pretende adaptar - significa a essência, o modo de ser próprio da Ideia, do Espírito. Ora a Ideia, o Espírito, segundo o Comunismo não passam de super-estruturas de que a matéria é a base. Como atribuir-lhes porém um processo, um ritmo interno idêntico ao do Pensamento, senão confundindo-o com este?
Isto é: ou a matéria não tem dialéctica ou então tem de transformar-se naquilo que o filósofo do Idealismo alemão chamava espírito, ficando o Materialismo reduzido a um simples nome.
Um vício idêntico se deve apontar ao Marxismo no terreno filosófico-histórico. Se «toda a ideologia é o reflexo das relações económicas» também o é a ideologia de Karl Marx, não podendo ter, em consequência, «a pretensão de verdade absoluta, pois se coloca ao nível de todas as outras doutrinas». Se lhe é possível conhecer «os mistérios da História e destinos humanos, então existe uma verdade absoluta e nem toda a ideologia é necessariamente uma super-estrutura da economia».
Por último, no que diz respeito à catástrofe final, ao desaparecer da sociedade burguesa, há a reconhecer uma demonstração flagrante da empirização da dialéctica. O devir eterno, eterno porque no Absoluto, tem aqui um final. A luta de classes é o motor da História, logo quando surgir a sociedade sem classes, a História cessa, pára, imobiliza-se. Consequência evidente do absurdo que significa a aplicação no tempo do que pertence ao universal.
Juntamente com a análise teórica, faz Berdiaeff a análise psicológica do Comunismo. Ele mostra como o seu pretenso carácter objectivo, científico, não passa dum disfarce dado a determinados sentimentos morais. Ele mostra que na crença da injustiça da exploração do homem pelo homem (espécie de pecado original proletário) residia a raiz do ódio de Marx a tudo quanto era autoridade religiosa e divina, a qual, segundo ele, não passava de simples instrumento de adormecimento das massas - o ópio do povo. Mostra igualmente a origem judaica, messiânica, da ideia do proletariado, da classe redentora, que há-de a todos salvar, transformação da fé básica do povo de Israel.
Ele mostra, assim, as duas grandes bases em que alicerça a propaganda bolchevista: o ressentimento por um lado, em relação ao presente, o utopismo por outro em relação ao futuro.
A estas bases junte-se a mentalidade derivada do Idealismo que faz o comunista tratar o relativo e o contingente à laia de Absoluto, de Incondicionado, e que imprime uma forte tonalidade religiosa ao movimento, e teremos a explicação do fanatismo, da energia, do espírito de sacrifício e de luta que animam os militantes do Partido. Fanatismo, energia, espírito de sacrifício e de luta postos ao serviço duma raiva incendida contra a Civilização e duma vontade ilimitada de tudo destruir para tudo edificar, que tornam a mística marxista um verdadeiro perigo para a nossa cultura de portugueses e ocidentais.
Um prefácio, esplêndido, de Duarte de Montalegre, valoriza este volume.
Aí se faz com lucidez e com desassombro a análise da presente situação internacional. Perante o dilema Democracia ou Internacionalismo proletário, Duarte de Montalegre proclama o fictício dessas duas soluções e defende com energia a restauração integral de Valores, que o Cristianismo representa, mas o Cristianismo puro e ortodoxo, livre do «escalracho daninho da heresia» liberal, ou para-liberal, hoje defendido com o rótulo menos perigoso de Catolicismo progressivo.
Nesta «hora de confusões e de receios... em que se cruzam tantos caminhos e se cometem tantos atropelos» é consolador deparar com um defensor da Verdade, da Verdade pura, sem mutilações de compromisso e de conveniência, da Verdade integral. Duarte de Montalegre enfileira nessa escassa mas valorosa pleiade. Não lhe regateemos, por isso, os louvores.
António José de Brito
(In «Mensagem» n.º 11, 22.03.1948)

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