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quarta-feira, janeiro 05, 2005

O FASCISMO NA HISTÓRIA DO PENSAMENTO 

Seguindo os ensinamentos de Otmar Spann, julgamos que a todas as ideologias, surgidas no decorrer dos tempos, é possível dividi-las e enquadrá-las no âmbito destas duas concepções fundamentais: o Universalismo e o Individualismo. O Individualismo é a afirmação do valor em si e por si da pessoa humana, na sua particularidade, singularidade e isolamento. O Universalismo, pelo contrário, sustenta que só pode valer, intrinsecamente, o que superar a particulariedade, a singulariedade, e isolamento de cada um, ou seja que só pode valer, intrinsecamente, o todo, a universalidade concreta em que os elementos plurais e múltiplos se devem integrar.
Universalismo e Individualismo disputam pela supremacia desde as mais recuadas épocas. Para remontar tão só à Grécia, universalistas foram, por exemplo, um Heráclito, um Platão, um Aristóteles, e individualistas Epicuro, alguns dos sofistas, etc.
Ora não há dúvidas de que, em face da dicotomia Universalismo-Individualismo, o Fascismo se situa, incontestavelmente, no plano do Universalismo. O problema todo, porém, está em averiguar se não passa de uma simples repetição e aplicação de teorias universalistas já pré-existentes ou se veio trazer qualquer coisa de novo ao Universalismo. Pela nossa parte inclinamo-nos, sem hesitar, para a última solução, baseados nas considerações que passamos a expôr.
Até à nossa época, os universalistas encararam, sempre, o todo universal, como algo de superior e extrínseco ao indivíduo, que este tinha por obrigação servir e respeitar e que possuía uma existência per se, desligada em princípio das existências individuais.
Ainda está presente em Hegel semelhante perspectiva. Basta pensar no papel desempenhado, no seio do espírito objectivo, pela astúcia da razão que conduz e domina os homens sem eles o saberem, levando-os a cumprir altas finalidades históricas que só mais tarde são compreendidas e acatadas («a coruja de Minerva apenas levanta voo no crepúsculo»)
Em face disto o Fascismo veio introduzir uma inteira mudança de pontos de vista. O Todo, o Universal entende-os como posição de vontade, da vontade que tanto pode, ou dirigir-se e visar o particular (contradizendo-se), ou erguer-se até a Totalidade e a Universalidade, constituindo-as.
O Universal está, assim, em cada indivíduo e existe nele e por ele. É um Dever, um Valor ou melhor o Dever e o Valor em si, que todos temos presente em nós, no íntimo da nossa capacidade volitiva, premindo-a e incitando-a, sem nunca desaparecer, mesmo se recusado.
Neste sentido, porque situa o Universal no próprio homem e reconhece unicamente a validade, sem condições, da vontade ética, o Fascismo respeita, no seu mais profundo significado, a herança kantiana. Acontece, todavia, que, em Kant ou, pelo menos, em grande número dos seus seguidores e continuadores, o Universal, que é lei imperativa para cada personalidade, está exclusivamente no interior de cada uma delas e jamais excede os limites da sua subjectividade parcelar.
Por assim dizer cada pessoa tem a sua lei universal, havendo, deste modo, vários universais, o que é contraditório.
O Fascismo, avançando para além da prisão kantiana, sustenta que, se o Universal se encontra no interior de cada homem, representa, em contrapartida, o alargamento, a elevação, sem fim, dessa interioridade. Não é cada homem, imediata e directamente, o Universal - o que seria particularizar este último - antes cada homem é universal se se auto-transformar e auto-superar, ou seja, se a sua particulariedade for erguida, por si mesma, ao universal. E cada homem, auto-transformando-se, negando, desse modo, a sua singulariedade, vai fazer com que a sua vontade coincida com a vontade dos demais e vice-versa, criando uma vontade única que é lei universal, em relação a cada vontade encarada ut singuli.
O Universal não está pois, unicamente, em cada um dos homens, fora dos seus recíprocos contactos. Ao invés. O Universal é universal na medida em que, ao estar em cada homem, está ipso facto nos outros e reciprocamente. A personalidade ascende a um domínio em que não quer ser distinta das restantes personalidades, e eis o universal in fieri. Não se trata de cada um submeter-se à norma que, só para ele próprio, deva ser norma de todos. Trata-se de cada um pôr a sua vontade comum com a de todos e considerar essa comunhão com todos a lei imperativa que reside em si e o vincula categoricamente. O Fascismo não admite os homens separados externamente e descobrindo, na sua solidão, uma universalidade meramente pessoal. O universal do Fascismo é a interioridade do homem quando absorve em si, destruindo-as, as barreiras exteriores que separam. É a transformação dos homens num só homem, pelo esforço, a acção, o querer, o movimento, não em direcção ao dentro de cada um, mas em direcção ao ultrapassar por cada um dos seus limites extrínsecos, de modo a constituir-se uma unidade total entre os indivíduos. Essa unidade, que são eles mesmos ainda, se colocados para além do seu egoísmo e separatismo, representa uma severa regra de valor incondicional.
Claro, que se o Universal é vontade, vontade em que se reúnem e fundem as diversas vontades, e que, perante qualquer delas, isoladamente, representa uma disciplina, uma norma última, soberana, isso equivale a dizer então que o universal é o Estado.
A equação entre Estado e universal, Estado e eticidade foi, já, traçada, por G. W. F. Hegel, e o Fascismo, nesse campo, limitou-se a seguir as pisadas do genial pensador alemão. Em todo o caso, onde o Fascismo acrescenta algo às teses hegelianas é na sua compreensão do Estado enquanto universal in interiore homine. Para o Fascismo, o Estado não é nada de puramente objectivo, está no íntimo da vontade e do intelecto dos homens. Indiscutivelmente o Estado in interiore homine não quer dizer que cada um possa ter a concepção de Estado que lhe apeteça. Ao contrário, significa que cada um de nós deve tornar-se, em consciência, pela autodisciplina e pela reflexão, a própria norma geral em que o eu e o tu se não distinguem já, norma à qual devemos subordinar o nosso eu empírico e isolado, tal como se lhe devem subordinar os outros eus singulares.
Entre um puro subjectivismo e um puro objectivismo - este tradicional, nas suas orientações universalistas - o Fascismo realizou a síntese com a sua noção de Estado, que é, de certo, ultrapassamento e superação do homem particular (estrito universalismo), ultrapassamento e superação, contudo, que não pretendem atingir nada de alheio e transcendente ao humano, nada de trans-humano, antes se dirigem apenas à estruturação de uma nova e mais ampla dimensão do humano - o humano na sua universalidade, que é a sua estatalidade.
Outro ponto é lícito pôr em destaque, a fim de se acentuar a originalidade do Fascismo: a doutrina da unidade de teoria e praxis. O Universalismo, até aos nossos dias, vem por vezes afirmando o Universal, quer na qualidade de inteligência quer na qualidade de vontade (inteligência e vontade supra-pessoais), nunca sustentando, em rigor, a identidade de teoria e praxis consoante o faz o Fascismo. Para este último, não se trata só de estabelecer que as acções devem corresponder às palavras, etc., num ensinamento meramente deontológico ou axiológico. Trata-se de reconhecer que todo o pensamento é acção e toda a acção é pensamento, numa convertibilidade perene e constante. A própria tese da separação da teoria e da praxis é, ainda, praxis, acção - acção de fugir às responsabilidades do pensamento, de nos afastarmos das lutas, combates e riscos. E a independência e superioridade da acção é, ainda, pensamento, mas pensamento contraditório.
Sem dúvida, podem-nos objectar ter já Espinoza ensinado que as acções eram ideias. Responderemos que Espinoza unicamente procurava reduzir a acção à contemplação passiva e que, na realidade, não eram, para ele, as ideias autêntica acção, autêntica praxis. Também nos dirão, porventura, que o Marxismo proclamou, há muito a unidade da teoria e praxis da boca para fora, desmentindo-a, logo, nos mais fundamentais dos seus ensinamentos. Com efeito, se a consciência é um produto da praxis material-social, como há autêntica unidade de teoria e praxis, tal qual a concebe o Marxismo? O pensamento estará perpetuamente, ligado à praxis material! - sustenta o Marxismo - mas a praxis material é, de longe, anterior à consciência (por isso, esta é um produto, um reflexo). Donde se vislumbrará, portanto, a unidade da praxis ao pensamento, proclamada pelo maxismo?
Por último, acentue-se que é, igualmente, qualquer coisa de novo, de especificadamente fascista, a conexão estabelecida entre a doutrina da unidade de teoria e praxis e a concepção do Estado enquanto universal in interiore homine. O Fascismo considera que esta derradeira implica a unidade de teoria e praxis, e que a unidade de teoria e praxis implica uma concepção de Estado em que este seja acção universalizadora do homem.
Por um lado, o Fascismo sustenta que, se o Estado é vontade universal do homem, supôr-se que fora dela esteja o reino da teoria conduziria isso, considerando-se a teoria universal, à tese absurda da existência de dois universais; considerando-se a teoria particular, à afirmação de um particular que se não pode universalizar, o que tornaria a vontade universal algo de particular, visto ter pela frente uma barreira que não conseguia superar. A solução, por conseguinte, estava em proclamar a vontade universal enquanto universal, teoria. Logo não será possível teoria sem vontade universal e na vontade universal terá de se encontrar a teoria. E como quem diz vontade universal tem de estar a dizer praxis (praxis que pela universalidade contém toda a praxis) eis que, a fortiori, se tem de chegar à conclusão que a praxis é teoria e a teoria praxis.
A praxis e a teoria se forem limitadas e não universais não podem verdadeiramente formar unidade porque a fortiori a teoria terá de ter algo fora de si - que é praxis - e a praxis fora de si a teoria, pois o que não é teoria é praxis e o que não é praxis é teoria. A unidade de teoria e praxis exige assim a universalidade de ambas que formarão deste modo uma vontade que supera o particular e o singular e no acto de superar põe tal intenção, logo é pensamento. Por outras palavras, exige a vontade universal dos homens, ou seja, o Estado consoante o concebe o Fascismo.
Não deixa de possuir utilidade acentuar que o Fascismo pondo o problema do valor em si e incondicional, e fazendo coincidir esse valor com a vontade universal, desde logo representa uma concepção geral da realidade. O problema do valor em si envolve a questão do que é a realidade para que nela possa haver tal valor, e a noção de vontade universal requer uma tomada de posição sobre o real no seu conjunto, pois o que for universal é, por definição, tudo, nada podendo estar fora do universal sem que este deixe de ser o universal.
O Fascismo teve nítida consciência de tudo isto e, implicando uma concepção geral da realidade, não deixou de, abertamente, a explicitar (não se limitou a pressupôr implicitamente uma teoria do real). E que concepção geral da realidade adoptou?
Desde que a universalidade a atribua a uma vontade que era pensamento e na qual residia o bem em absoluto, é legítimo asseverar que o Fascismo é uma concepção que afirma a unidade do real no seu desenvolvimento activo (pensamento-vontade como universal), ao qual está imanente o valor. Evidentemente o real, enquanto actividade, tem de ser esforço, luta até, do valor contra o desvalor, exactamente o esforço, a luta que se trava pela universalização do particular contra a particularização do universal. Nessa medida, o Fascismo nem é quieticamente optimista, nem cegamente pessimista. É voluntarista e espiritualista, acreditando na insuperabilidade em si da vontade ética - o Estado - mas não ignorando que ela, apenas, existe e se manifesta, na obediência, no trabalho, no sacríficio.
Escreveu, magnificamente, Mussolini: «Não se poderia entender o Fascismo... como organização de partido, sistema de educação, disciplina, se estas não forem encaradas à luz do seu modo geral de compreender a vida. Modo espiritualista... O Fascismo quer que o homem seja activo e dedicado à acção com todas as suas energias; que seja virilmente conhecedor das dificuldades... e esteja disposto a enfrentá-las. Concebe a existência como combate considerando que cabe ao homem mesmo conquistar aquela que for digna de si... Esta concepção de vida é, obviamente, uma concepção ética. E abarca toda a realidade e não somente a actividade humana que a domina. Nenhuma acção se subtrai ao domínio moral; nada no mundo pode despojar-se do valor que a tudo compete em função dos seus fins morais. Portanto, a vida, tal como a concebe o fascista, é séria, austera, religiosa, inteiramente desenrolada num mundo sustentado pelas forças morais e responsáveis do espírito. O fascista despreza a vida cómoda.»
Resta observar que, se o Fascismo é uma concepção geral da realidade, não é, em rigor, uma filosofia, pois falta-lhe o sentido de uma autofundamentação racional estricta. Houve, de certo, filósofos fascistas. O que prova, no entanto, que não houve uma filosofia fascista é que, precisamente, tais filósofos, se coincidiam nos momentos doutrinários básicos por nós apontados (exceptuamos, é quase inútil frisá-lo, os filósofos que se disseram fascistas por simples oportunismo, embora nunca o fossem a valer) divergiam, amplamente nos primeiros princípios em que se apoiavam e de onde partiam, e, nem sequer, travavam franca e enérgica controvérsia para determinar quais os autênticos alicerces lógico-ontológicos das ideias fascistas. O Fascismo surgia, assim, mais como uma Weltanschaunng em cuja verdade se acreditava, do como um sistema articulado e deduzido apoliticamente.
Nós julgamos que a elevação da Weltanschauung fascista, com a sua originalidade própria dentro do Universalismo, a filosofia bem ordenada e claramente exposta, é a tarefa que cabe aos pensadores do nosso tempo.
António José de Brito
(In «Agora», n.º 329, 04.11.1967)

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