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sábado, fevereiro 26, 2005

GARANTIR O FUTURO 

Os discursos do sr. Presidente do Conselho têm, entre outras características que os assinalam notavelmente na literatura política do nosso tempo, uma qualidade que, para mim, é fundamental: as palavras, as expressões são meditadas, pesadas, medidas, de maneira a traduzirem ideias, com justeza e propósito definido. Elas dizem o que o autor quer, e só o que o autor quer. E este não as escreve de ânimo leve, a pensar noutras coisas: escreve-as, porque quer escrevê-las, porque quer que sejam lidas ou ouvidas.
Não há, portanto, nada de banal nesses discursos. Tudo se aproveita. Se foram meditados, ao serem compostos, devem ser meditados, ao serem lidos.
Uma das proposições mais sérias do último discurso do sr. Presidente do Conselho é esta.
«Não é de patriota, nem de político abandonar o futuro às contingências da sorte, não criar para uma obra condições de duração e de estabilidade. Por definição, só fica feito o que perdura».
Estas palavras contêm a enunciação do problema crucial do momento português que atravessamos.
São horrivelmente egoístas, os governados que só pensam no Presente. Para esses, só o bem que usufruem conta. De resto — quem vier atrás que feche a porta...
São medíocres, e perigosos, os governantes que só pensam no Presente. Para esses, só conta o que está. E dizem: «enquanto está, estou». Para estes, governar é estar. São os discípulos do velho Guizot, para quem governar é conservar-se no Poder.
O verdadeiro homem de Estado é indiferente ao Presente, e por isso o não amedrontam as críticas, ainda as mais severas, como o não atordoam os aplausos, ainda os mais vibrantes. Para ele, o Presente não é mais do que a passagem do Passado para o Futuro. Para ele o Presente é a realização do que meditou, como ponto de partida para o que há a fazer.
O verdadeiro homem de Estado tem sempre diante de si, como preocupações dominantes, duas forças a actuar sobre ele: a da consciência da sua obra ou da sua missão, e a da contingência ou fragilidade da sua pessoa. Ele trabalha com a febre serena de quem tem cem anos de vida, para realizar, e de quem possui apenas cinco minutos de vida, para garantir o que fez.
Tal o verdadeiro homem de Estado. Nem improvisa, nem desanima. Não improvisa — porque sabe que o improviso é estéril, e só por milagre resiste e frutifica. Não desanima, porque o desânimo é a forma elegante da cobardia.
Para o verdadeiro homem de Estado, governar é prolongar-se, continuar-se, projectar-se. Ele não governa pela volúpia, ou pelas facilidades, ou pelos privilégios do Poder. Ele governa, para deixar, atrás de si, uma obra. Não a ergue, portanto, sobre areia ou sobre o fumo. Não condescende, portanto, a abandoná-la às contingências da sorte.
E quando essa obra representa sacrifícios manifestos dos governados, seria abominável deixá-la ao desamparo, tornando irremediavelmente inúteis esses sacrifícios.
Ora é uma verdade irrecusável que a obra que foi possível efectuar-se depois de 1926, mercê das condições estabelecidas pelo 28 de Maio, da actualização superior do sr. Presidente do Conselho, e dos sacrifícios nobremente suportados pela Nação, essa obra está abandonada às contingências da sorte.
Como não sou partidário da instituição do soldado desconhecido, reconheço que essa obra, devendo-se a condições políticas e à adaptação do País, teve um animador, tem um ponto de apoio: o sr. Presidente do Conselho. As condições políticas e a adaptação do País são a parte material dessa obra. O seu espírito é o pensamento do sr. Prof. Oliveira Salazar.
Qual é, actualmente, a garantia da perduração dessa obra?
Pois que o sr. Presidente do Conselho formulou publicamente o problema e evidentemente para todos nós o meditemos, é meu dever analisá-lo.
Nas circunstâncias políticas portuguesas, a obra realizada e que ninguém contesta — saneamento financeiro, prestígio externo, consciência do brio colectivo, ordem material, hábitos políticos sãos — nas circunstâncias políticas portuguesas, a obra realizada está dependente exclusivamente da presença do sr. Presidente do Conselho no Governo.
E esta presença, por sua vez, depende de dois factores que bem podem considerar-se as contingências da sorte: um, de natureza pessoal — a saúde ou a vida do sr. Presidente do Conselho; outra, de natureza política — a orgânica das instituições.
Uma doença grave que inutilize o Chefe do Governo, ou o arrede, indefinidamente das alavancas do comando — e tudo o que se fez entrará em decomposição, porque o inimigo da Nação não se demorará em, por todos os meios, atacar a fortaleza, explorando a impaciência de uns, o descontentamento de outros, as ambições de terceiros. E o que era paz e confiança passará a ser desordem e pavor.
Por outro lado, cumpre não esquecer que estamos em sistema electivo. Na melhor das hipóteses, o fulcro constitucional permanecerá ainda três ou quatro anos, salvo erro, como está. Mas terá, por força da lei, que ser substituído, quando o período da sua função tiver atingido a hora de renovação.
E estamos, então, postos, por força da lei, diante das contingências da sorte, com toda a perturbação que lhes é inerente.
Pense-se bem nisto. Entrarão em actividade grupos e facções — hoje, em repouso. Pressões e ameaças, promessas e seduções, tudo se mobilizará, para se fazer vencer determinada candidatura. Será de novo, o espectáculo de portugueses contra portugueses — a menos que não se enverede pela porta do artifício e da burla. Mas, nesse caso, pergunto: para que recorrer-se ao artifício e à burla, se temos à mão, o processo honesto, legítimo e tradicional?
Que palavras dirão as contingências da sorte convocadas a dar o seu parecer? Ninguém o sabe. Se ninguém o sabe — não é de político nem de português abandonar-lhes o futuro da Nação.
É indispensável criar a esse futuro, condições de duração e à estabilidade.
Sujeitar à opinião flutuante das massas politicamente ignaras, a escolha do fulcro constitucional do Estado é jungir o futuro às contingências da sorte, é recusar a uma obra as condições de duração e estabilidade que ela exige para perdurar.
Nenhum serviço público, por mais modesto, ganha com a substituição contínua dos seus agentes. Como é que se defende o sistema contrário, o da substituição periódica daquele que, constitucionalmente, é o ponto de apoio de toda a vida do Estado?
A obra financeira, política e moral que se realizou, em Portugal, desde 1926 para cá, está, hoje à mercê das contingências da sorte. É preciso criar-lhe condições de duração e de estabilidade.
A inteligência dos homens, até agora, não descobriu outro processo de o fazer, fora da substituição do sistema electivo pelo sistema hereditário. A República assenta nas contingências da sorte; a Monarquia é a condição da duração e estabilidade.
Mas isto precisa de ser desenvolvido.
Alfredo Pimenta
(in «A Voz», n.º 4686, págs. 1/2, 16.03.1940)

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