domingo, fevereiro 27, 2005
TRÊS INICIAIS
Há semanas muito escassas, tentando encontrar no televisor alguma rubrica relaxante, dei repentinamente com uma sabatina sobre Salazar. Como diria o Abade de Jazente, o lugar impróprio era, já que fui bater a uma estação geralmente ferida de esquerdismo infantilizado e da balda de certos erotismos, rés-vés com a desbragada pornografia. No entanto, se no melhor pano cai a nódoa porque não há-de no mau pano cair de vez em quando uma loção profilática.
Para acrescento do meu espanto, o que se discutia era a trilogia Deus, Pátria e Família, que o grande estadista, por quem hoje em Portugal se suspira cada vez mais, inscrevera no pórtico da reconstrução de Portugal e no programa da sua reeducação.
Bem cientes dessa penetração nas almas, foi por aí que no lastro do foguetório de Abril se inaugurou na propaganda mais dissolvente o reinado da chacota. Dos esgotos e valetas do País, siderado de assombro, saltou uma escumalha que logo tomou a peito, aproveitando o impulso revolucionário dos desmiolácios que tornaram as metralhadoras como instrumentos de messianismo, varrer da memória dos portugueses o perfil de Salazar; e, no mesmo lanço, como se se tratasse de cumplicidades políticas, abater os símbolos da Religião Católica.
Contagiados do vírus progressista, alguns responsáveis da Hierarquia esqueceram-se de denunciar a iconoclastia dessa garotada; e outros, mais avançados, para vergonha desta que foi «Nação Fidelíssima», fizeram gala de se nivelar barba por barba com semelhantes enxovedos e desceram pela mão deles a pedir desculpa às galerias.
Deus, Pátria e Família, em vez de divisa plena de significado transcendente e intemporal tornou-se entre nós o fecho ritual dos anátemas democráticos contra o Estado Novo.
Certo era que o moderador do debate porejava contra a síntese luminosa, mas ela caíra nas mãos dos convidados; e tirante um desses exemplares a quem a velha obediência comunista pegou a petrificação ideológica e a fossilização política, toda a gente relembrou com respeitoso acatamento essa escala de valores.
É caso então de perguntar: que passou no trânsito destes três ou quatro lustros para que soassem os primeiros rebates sérios na consciência nacional?
A resposta parece óbvia - e tanto que só os altos culpados do descalabro à vista buscam iludi-la com propagandas sediças e mentirolas grosseiras.
É que a tragédia abateu-se sobre os restos de Portugal. A Pátria sumiu-se pelos abismos da traição; e a Família enredou-se nas malhas de uma dissolução que se abeira da tragédia final. Expulsando Deus da vida, o homem perde a bússola e condena-se a vaguear pelos espaços ermos como um nómada da alma.
Estava consumada a orfandade nacional - na ausência de Deus, na Pátria perdida, na família arruinada, em Portugal nunca se repetirá bastante o alarme - anoitece! Chissano anuncia integrar-se na Comunidade Britânica, arremessando aos lixos da História os despojos culturais de Portugal; e os nossos políticos nem páram um instante na febre dos votos e na cegueira da demagogia barata.
Os bizantinos discutem ninharias com o inimigo à porta. Não contentes com rapinar-nos descaradamente a água dos rios internacionais e de violar os acordos os jornais espanhóis mobilizam a opinião pública contra Alqueva que já capitulam de projecto faraónico e responsabilizam por futuras tragédias ambientais no seu território. E os políticos partem à caça dos votos.
É no quadro desta desgraça que se descobre, ainda a luz difusa, a reabilitação da Família, posta na encruzilhada do destino perdido, a reabilitação da Pátria luz bruxuleante na cerração das consciências; e a reabilitação de Deus, diante desta aridez sepulcral.
Nasceu assim o estranho debate. Mas desenganem-se os ingénuos.
Não se trata de concessão da confraria ou amolecimento providencial dos caracteres empedernidos. Trata-se de medo, e medo instintivo, o pior dos medos, o eco sinistro dos vesúvios da alma. No fundo, um medo que se compendia em três iniciais. Salazar, que conhecia perfeitamente a natureza humana e tinha da evolução dos povos a visão profética, dispôs em vida o seu apagamento total depois da morte; escolheu um cemitério humílimo, perdido num ermo; mandou bater a lousa da campa rasa, só frequentada pelas virações das ravinas do Dão, impregnadas daquilo que lhe foi caro na apoteose da pobreza voluntária: os rosmaninhos e as giestas, bravias. Como identificação condescendeu com três letras, que mal se distinguem dos musgos e das pétalas que ali caem de mãos anónimas.
Mas o medo dessas iniciais resulta ainda da consciência da mentira. Não temos nós visto e ouvido os grandes pretores de Abril a chamar fascismo ao Estado Novo e ditador a Salazar? E, no entanto, foi ele quem, antes de qualquer outra potência, exarou esta condenação que soa como bronze e que os ingleses reproduziram na grande imprensa do tempo: «É preciso afastar de nós o Estado totalitário. O Estado que subordinasse tudo sem excepção à ideia de nação ou de raça por ele representada na moral, no direito, na política e na economia, apresentar-se-ia como ser omnipotente, princípio e fim de si mesmo, que poderia envolver um absolutismo pior do que aquele que antecedeu os regimes liberais porque ao menos esses não se desligaram do destino humano. Tal Estado seria essencialmente pagão, incompatível por natureza com o génio da nossa civilização cristã. (...) O fascismo e o nacional socialismo divergentes do comunismo pelas concepções económicas e exigências espiritualistas, a ele se assemelham pelo conceito do Estado totalitário. (...)Se o Estado tem em si o seu fim e razão de ser não há regra exterior que lhe limite a actividade nem fora de si existe qualquer direito...».
Isto reproduz-se hoje, quando passam 25 anos sobre a morte do grande estadista, para vergonha da cafreagem política que não deixou ainda de gosmar sobre o grande morto a baba da calúnia. Mais do que homenagem é desafronta, porque eles mantêm aferrolhados os discursos e paralisadas as editoras, como antes de morrer acusou António José Saraiva.
Revertamos então à trilogia que tantos engulhos provoca nessa mestiçagem ideológica que nos domina. «Não discutimos Deus e a Virtude; não discutimos a Pátria e a sua História; não discutimos a Família e a sua Moral» (...) A explanação que se segue ao enunciado destes conceitos é do mais belo que se escreveu em Língua Portuguesa e é também de alta Filosofia. Não cabe, evidentemente, nos limites deste escrito, mas as palavras soam aqui como um dobre de finados quando o país, privado da sua dimensão histórica e à beira de o remeterem a uma soberania simbólica, vê os monumentos a cair, a miséria física e moral a alastrar, os incêndios ateados por mãos criminosas que já ninguém contém a consumir e a reduzir a cinzas o que resta daquilo que dantes se cantava como um Jardim.
Hoje os portugueses, entre muitas jeremíadas, choram principalmente sobre a Família. Oiçamos então a voz de Salazar:
«Não discutimos a Família. Aí nasce o homem, aí se educam as gerações, aí se forma o pequeno mundo de afectos sem os quais o homem dificilmente pode viver. Quando a família se desfaz, desfaz-se a casa, desfaz-se o lar, desatam-se os laços de parentesco, para ficarem os homens diante do Estado, isolados, estranhos, sem arrimo e despidos moralmente de mais de metade de si mesmos, perde-se um nome, adquire-se um número - a vida social toma logo feição diferente. Tem várias vezes acontecido, em épocas perturbadas de retrocesso à soberania dos instintos, relaxarem-se os laços da família, desaparecerem a intimidade e o pudor, submergir-se a autoridade dos pais e o respeito dos filhos. Mas só em nosso tempo se ergueu em teoria, em ciência e em programa de Estado o que havia de supor-se passageiro desvairamento. A natureza reconquistará os seus direitos; e a sociedade civil verá mais uma vez como a sua moral, consistência e coesão dependem directamente da moral, consistência e coesão do agregado familiar...».
Sintomático no televisivo debate a objecção titubeante do seu condutor, que mais parecia dirigida à pitonisa do Oráculo de Delfos: «Mas então isso, essa trilogia do Salazar, essas, isto é, isso é ainda viável?».
A pergunta irrespondida rematou o debate sobressaltado. De Salazar nada restou de material: nem os sustentáculos do poder que não teve; nem as honrarias que recusou todas; nem as clientelas que não deixou medrar, nem os bens de que totalmente se desprendeu. Nem mesmo a oferta aos pósteros de um recanto simbólico. Não. Dele ficaram três iniciais. Mas a História não se apaga com doestos imbecis nem se violenta à pedrada. Ela conserva, intactas, sobre as flutuações dos homens e as vicissitudes dos regimes, as tabelas de aferição definitiva: aos pigmeus, fundindo-os na poeira dos caminhos; aos gigantes, alçando-os sobre o horizonte dos séculos. O critério da distinção reside apenas na perenidade do pensamento, revérbero de luz divina.
Diante de Salazar, que há vinte e cinco anos desapareceu do número dos vivos, já começa a desmantelar-se aquilo que Anselmo de Andrade noutra hora de desorientação cívica, chamou a putrilagem do sectarismo.
Silva Resende
(in O Dia, 27.07.1995)
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Para acrescento do meu espanto, o que se discutia era a trilogia Deus, Pátria e Família, que o grande estadista, por quem hoje em Portugal se suspira cada vez mais, inscrevera no pórtico da reconstrução de Portugal e no programa da sua reeducação.
Bem cientes dessa penetração nas almas, foi por aí que no lastro do foguetório de Abril se inaugurou na propaganda mais dissolvente o reinado da chacota. Dos esgotos e valetas do País, siderado de assombro, saltou uma escumalha que logo tomou a peito, aproveitando o impulso revolucionário dos desmiolácios que tornaram as metralhadoras como instrumentos de messianismo, varrer da memória dos portugueses o perfil de Salazar; e, no mesmo lanço, como se se tratasse de cumplicidades políticas, abater os símbolos da Religião Católica.
Contagiados do vírus progressista, alguns responsáveis da Hierarquia esqueceram-se de denunciar a iconoclastia dessa garotada; e outros, mais avançados, para vergonha desta que foi «Nação Fidelíssima», fizeram gala de se nivelar barba por barba com semelhantes enxovedos e desceram pela mão deles a pedir desculpa às galerias.
Deus, Pátria e Família, em vez de divisa plena de significado transcendente e intemporal tornou-se entre nós o fecho ritual dos anátemas democráticos contra o Estado Novo.
Certo era que o moderador do debate porejava contra a síntese luminosa, mas ela caíra nas mãos dos convidados; e tirante um desses exemplares a quem a velha obediência comunista pegou a petrificação ideológica e a fossilização política, toda a gente relembrou com respeitoso acatamento essa escala de valores.
É caso então de perguntar: que passou no trânsito destes três ou quatro lustros para que soassem os primeiros rebates sérios na consciência nacional?
A resposta parece óbvia - e tanto que só os altos culpados do descalabro à vista buscam iludi-la com propagandas sediças e mentirolas grosseiras.
É que a tragédia abateu-se sobre os restos de Portugal. A Pátria sumiu-se pelos abismos da traição; e a Família enredou-se nas malhas de uma dissolução que se abeira da tragédia final. Expulsando Deus da vida, o homem perde a bússola e condena-se a vaguear pelos espaços ermos como um nómada da alma.
Estava consumada a orfandade nacional - na ausência de Deus, na Pátria perdida, na família arruinada, em Portugal nunca se repetirá bastante o alarme - anoitece! Chissano anuncia integrar-se na Comunidade Britânica, arremessando aos lixos da História os despojos culturais de Portugal; e os nossos políticos nem páram um instante na febre dos votos e na cegueira da demagogia barata.
Os bizantinos discutem ninharias com o inimigo à porta. Não contentes com rapinar-nos descaradamente a água dos rios internacionais e de violar os acordos os jornais espanhóis mobilizam a opinião pública contra Alqueva que já capitulam de projecto faraónico e responsabilizam por futuras tragédias ambientais no seu território. E os políticos partem à caça dos votos.
É no quadro desta desgraça que se descobre, ainda a luz difusa, a reabilitação da Família, posta na encruzilhada do destino perdido, a reabilitação da Pátria luz bruxuleante na cerração das consciências; e a reabilitação de Deus, diante desta aridez sepulcral.
Nasceu assim o estranho debate. Mas desenganem-se os ingénuos.
Não se trata de concessão da confraria ou amolecimento providencial dos caracteres empedernidos. Trata-se de medo, e medo instintivo, o pior dos medos, o eco sinistro dos vesúvios da alma. No fundo, um medo que se compendia em três iniciais. Salazar, que conhecia perfeitamente a natureza humana e tinha da evolução dos povos a visão profética, dispôs em vida o seu apagamento total depois da morte; escolheu um cemitério humílimo, perdido num ermo; mandou bater a lousa da campa rasa, só frequentada pelas virações das ravinas do Dão, impregnadas daquilo que lhe foi caro na apoteose da pobreza voluntária: os rosmaninhos e as giestas, bravias. Como identificação condescendeu com três letras, que mal se distinguem dos musgos e das pétalas que ali caem de mãos anónimas.
Mas o medo dessas iniciais resulta ainda da consciência da mentira. Não temos nós visto e ouvido os grandes pretores de Abril a chamar fascismo ao Estado Novo e ditador a Salazar? E, no entanto, foi ele quem, antes de qualquer outra potência, exarou esta condenação que soa como bronze e que os ingleses reproduziram na grande imprensa do tempo: «É preciso afastar de nós o Estado totalitário. O Estado que subordinasse tudo sem excepção à ideia de nação ou de raça por ele representada na moral, no direito, na política e na economia, apresentar-se-ia como ser omnipotente, princípio e fim de si mesmo, que poderia envolver um absolutismo pior do que aquele que antecedeu os regimes liberais porque ao menos esses não se desligaram do destino humano. Tal Estado seria essencialmente pagão, incompatível por natureza com o génio da nossa civilização cristã. (...) O fascismo e o nacional socialismo divergentes do comunismo pelas concepções económicas e exigências espiritualistas, a ele se assemelham pelo conceito do Estado totalitário. (...)Se o Estado tem em si o seu fim e razão de ser não há regra exterior que lhe limite a actividade nem fora de si existe qualquer direito...».
Isto reproduz-se hoje, quando passam 25 anos sobre a morte do grande estadista, para vergonha da cafreagem política que não deixou ainda de gosmar sobre o grande morto a baba da calúnia. Mais do que homenagem é desafronta, porque eles mantêm aferrolhados os discursos e paralisadas as editoras, como antes de morrer acusou António José Saraiva.
Revertamos então à trilogia que tantos engulhos provoca nessa mestiçagem ideológica que nos domina. «Não discutimos Deus e a Virtude; não discutimos a Pátria e a sua História; não discutimos a Família e a sua Moral» (...) A explanação que se segue ao enunciado destes conceitos é do mais belo que se escreveu em Língua Portuguesa e é também de alta Filosofia. Não cabe, evidentemente, nos limites deste escrito, mas as palavras soam aqui como um dobre de finados quando o país, privado da sua dimensão histórica e à beira de o remeterem a uma soberania simbólica, vê os monumentos a cair, a miséria física e moral a alastrar, os incêndios ateados por mãos criminosas que já ninguém contém a consumir e a reduzir a cinzas o que resta daquilo que dantes se cantava como um Jardim.
Hoje os portugueses, entre muitas jeremíadas, choram principalmente sobre a Família. Oiçamos então a voz de Salazar:
«Não discutimos a Família. Aí nasce o homem, aí se educam as gerações, aí se forma o pequeno mundo de afectos sem os quais o homem dificilmente pode viver. Quando a família se desfaz, desfaz-se a casa, desfaz-se o lar, desatam-se os laços de parentesco, para ficarem os homens diante do Estado, isolados, estranhos, sem arrimo e despidos moralmente de mais de metade de si mesmos, perde-se um nome, adquire-se um número - a vida social toma logo feição diferente. Tem várias vezes acontecido, em épocas perturbadas de retrocesso à soberania dos instintos, relaxarem-se os laços da família, desaparecerem a intimidade e o pudor, submergir-se a autoridade dos pais e o respeito dos filhos. Mas só em nosso tempo se ergueu em teoria, em ciência e em programa de Estado o que havia de supor-se passageiro desvairamento. A natureza reconquistará os seus direitos; e a sociedade civil verá mais uma vez como a sua moral, consistência e coesão dependem directamente da moral, consistência e coesão do agregado familiar...».
Sintomático no televisivo debate a objecção titubeante do seu condutor, que mais parecia dirigida à pitonisa do Oráculo de Delfos: «Mas então isso, essa trilogia do Salazar, essas, isto é, isso é ainda viável?».
A pergunta irrespondida rematou o debate sobressaltado. De Salazar nada restou de material: nem os sustentáculos do poder que não teve; nem as honrarias que recusou todas; nem as clientelas que não deixou medrar, nem os bens de que totalmente se desprendeu. Nem mesmo a oferta aos pósteros de um recanto simbólico. Não. Dele ficaram três iniciais. Mas a História não se apaga com doestos imbecis nem se violenta à pedrada. Ela conserva, intactas, sobre as flutuações dos homens e as vicissitudes dos regimes, as tabelas de aferição definitiva: aos pigmeus, fundindo-os na poeira dos caminhos; aos gigantes, alçando-os sobre o horizonte dos séculos. O critério da distinção reside apenas na perenidade do pensamento, revérbero de luz divina.
Diante de Salazar, que há vinte e cinco anos desapareceu do número dos vivos, já começa a desmantelar-se aquilo que Anselmo de Andrade noutra hora de desorientação cívica, chamou a putrilagem do sectarismo.
Silva Resende
(in O Dia, 27.07.1995)
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