sexta-feira, março 18, 2005
António Sardinha, visto por Gilberto Freyre
Em Elvas - de onde se avista Badajoz - continuo a pensar nas diferenças entre portugueses e espanhóis e nas suas semelhanças. Diferenças e semelhanças que existem sob a forma de atitudes e técnicas que ora parecem ser exactamente as mesmas, ora nos dão a impressão de exigir cada uma a sua língua ou estilo próprio, para melhor exprimir a sua particularidade nacional de ser: a particularidade psicológica de cada um dos dois temperamentos que formam, completando-se, o ethos peninsular, hispânico, ibérico, às vezes independentemente de fronteira política ou de condição rigidamente nacional. estes dois temperamentos - não digo novidade - são o lírico e o dramático.
Há espanhóis - homens e valores - que são predominantemente líricos e portugueses que são predominantemente dramáticos. Se nos é lícito definir o espanhol como dramático em relação com o português, lírico, é considerando simplesmente as predominâncias que parecem caracterizar um povo em face do outro; e não excluindo ou desprezando as constantes interpenetrações entre os dois. Tão constantes que não há talvez português sem alguma coisa de espanhol, nem espanhol sem alguma coisa de português na sua cultura.
Foi de Elvas, e vendo, ao mesmo tempo, Portugal e a Espanha, que o meu amigo António Sardinha observou, como que a olho nu, essas interpenetrações constantes, tão esquecidas por aqueles outros ensaístas que apenas se têm fixado nas diferenças entre os dois povos. E concluiu, como já concluíra Oliveira Martins, por uma unidade peninsular de cultura que, entretanto, para ele, era apenas «cultura» no sentido restrito de conjunto de valores eruditos; e não «cultura», no seu muito mais amplo sentido sociológico e moderno, em que, aos valores eruditos, se acrescentam os quotidianos, os rústicos, os comuns. Sob este critério, creio que as bases da unidade peninsular ganham uma profundidade de que não se fez ainda a exacta sondagem. Oliveira Martins, Moniz Barreto, António Sardinha consideraram-na com olhos particularmente atentos às expressões apenas nobres ou somente políticas. Estas parecem ter favorecido menos como constantes, do que como acidentes, a aproximação entre os dois povos.
E a propósito dessas constantes de interpenetração na cultura erudita da Península - de que o bilinguismo literário parece ter sido a expressão mais completa - convém não nos esquecermos do facto, salientado por Sardinha, de que do português Nuno Gonçalves alguns dos próprios eruditos espanhóis em assuntos de pintura fazem descender toda a pintura tida como mais genuinamente espanhola, no seu realismo ou na sua naturalidade, do mesmo modo que para outros eruditos, de outro português, Gil Vicente, se teria desenvolvido, no drama castelhano, a linguagem popular e até rústica que lhe dá o seu melhor sabor de naturalidade. A pobreza dos portugueses em pintura e em teatro não seria assim absoluta mas relativa: relativa a predominâncias que se acentuaram na Espanha, sem que, de Portugal, deixassem de ter vindo contribuições decisivas e até originais para a cultura comum ou para o complexo peninsular de cultura. Contribuições que se sabe se terem verificado noutros planos e no mesmo sentido de naturalidade de forma ou expressão: no plano da arte do vestido de mulher fidalga, por exemplo. Uma senhora francesa - citada por Sardinha - que estudou o assunto através de retratos de infantas - alguns, obras portuguesas - existentes em Espanha, identificou como portuguesas - regionalmente portuguesas - várias predominâncias nas modas espanholas de trajo fidalgo de mulher.
Já que falo outra vez de pintura e de pintores portugueses, não devo esquecer-me de repetir que Velásquez era um Silva, filho de português; nem de que era português o menos famoso, mas também influente, Sanches Coelho. Se deixaram de enriquecer a pintura peninsular em Portugal, é que por uma predominância não só de temperamento, como, ao que parece, principalmente de educação de gosto, entre reis e o próprio público, a apreciação pela pintura - como pelo teatro - acentuou-se tanto na Espanha que empalideceu em Portugal; e empalideceu em Portugal a ponto de ter-se tornado, segundo parece, incómoda ou esterilizante para os indivíduos com vocação para qualquer das duas artes.
Mesmo assim, continuo a não saber explicar de todo porque, de início, não se desenvolveu, num país das condições excepcionais de visibilidade de Portugal, uma pintura que, ainda mais do que o lirismo, se tivesse tornado característica do povo que inspirou a Mrs. Browning o título dos seus Sonnets from the Portuguese. Porque não se terá desenvolvido entre portugueses uma pintura tão marcadamente portuguesa em sua expressão de vida, de carácter e de luz regionais, como a dos holandeses, em trecho igualmente pequeno da Europa? É mistério que volta a preocupar-me em Évora. Ao fitar uma paisagem que, não sendo portuguesa em sua expressão ou definição política, continua igual à portuguesa pelas suas predominâncias de cor, de forma e de luz, não compreendo que, atravessada uma fronteira apenas convencional, esteja qualquer de nós num país de grandes pintores; e que esses grandes pintores faltem - exceptuando um ou outro Nuno Gonçalves - a Portugal: ao Portugal não só de hoje como ao de sempre. Não só ao da Europa como ao do Ultramar.
Consolemo-nos os portugueses e descendentes de portugueses com a moderna exaltação europeia de uma figura portuguesa de pioneiro da pintura hispânica: Nuno Gonçalves; ou com o facto de cuidadosos pesquisadores europeus das origens da pintura peninsular falarem numa «escola portuguesa» de pioneiros vigorosamente realistas na sua arte: arte ou escola da qual, através de Carreño de Miranda, teria resultado o luso-espanhol Velásquez. Havendo assimilado traços de técnica de Van Eyck, teria adaptado a «escola portuguesa», antecipando-se aos espanhóis, processos nórdicos de pintar, à influência, observada em Portugal por pintores portugueses, da luz sobre a figura humana e sobre a paisagem. Desta obra portuguesa de adaptação de processos nórdicos de pintura e uma luz já quase tropical em seu modo de iluminar figuras e paisagens se teria desenvolvido toda uma riqueza - aparentemente só espanhola, na verdade luso-espanhola nas suas raízes - dentro do sistema de cultura comum às duas nações. Sistema de que participamos todos os hispano-americanos, em nossa formação: os da América Portuguesa tanto quanto os da América Espanhola. As origens da cultura peruana estão salpicadas de muitos e bons lusitanismos; o desenvolvimento da cultura brasileira está marcado pela influência de numerosos espanholismos, ultimamente postos em justo relevo pelo Professor Sílvio Júlio.
Em Elvas, deixo de contemplar a paisagem espanhola que se oferece a meus olhos como um prolongamento da portuguesa, para, de olhos fechados, como os místicos, procurar ver melhor o futuro da pintura portuguesa: pintura tão pobre, até hoje, em Portugal embora tenha concorrido notavelmente para a riqueza da espanhola. O futuro daquela um tanto remota obra de adaptação de técnicas norte-europeias de pintura aos resultados de observação, por olhos de portugueses, da influência de uma luz já quase tropical, como a do Sul da Península, sobre os homens e as coisas.
E o futuro de obra tão remotamente portuguesa, aproveitada e desenvolvida de modo magnífico por espanhóis e luso-espanhóis, creio que se afirmará naquelas áreas tropicais de colonização portuguesa, onde a tradição luso-espanhola de pintura começa a exprimir-se em pintores do vigor de Tarsila do Amaral e de Cândido Portinari, de Cícero Dias, de L. Cardoso Ayres, de Pancetti e Rosa Maria. Pintores que vêm adaptado aquela tradição a condições rasgadamente tropicais de influência da luz sobre as figuras e as paisagens.
*
Vou à quinta em que morou o meu amigo António Sardinha. Visito a viúva: tão portuguesa no seu modo um tanto triste, mas discreto - discretamente triste - de ser viúva. Recebe-me com encantadora simplicidade. Mostra-me a quinta: é pequena e, na sua técnica de exploração da terra, arcaica. Pequena é também a casa. Pequeno o gabinete de trabalho do escritor. Conserva-o a ternura da viúva fiel exactamente como Sardinha o deixou. Os mesmos livros, então novos, que começara a ler. Os mesmos livros velhos abertos para consulta. Os mesmos papéis. A mesma desordem de mesa realmente de trabalho de escritor realmente escritor. De ensaísta que estudava os assuntos, que lia os autores novos, que relia os velhos e os mestres, que examinava os prós e considerava os contras das questões, antes de tomar as suas atitudes de homem de combate.
Homem de combate mas não panfletário amigo da improvisação fácil ou superficialmente brilhante. Havia nele fervor. Mas não o jornalístico e sim o do «moralista» no bom sentido francês em que até um Voltaire ou um Montaigne ou um Pascal é considerado moralista. É verdade que o animava uma doutrina; que o caracterizava nítida vocação para doutrinário e até para doutrinador; que essa vocação mais de uma vez prejudicou, limitou ou amesquinhou nele a independência ou a flexibilidade de escritor. A própria dignidade do pensador. Mas nunca a honestidade do homem. E em seu modo de ser escritor havia muito de hispânico: entre os hispanos, parece que, mais do que entre outros povos, o homem alonga-se em escritor sem que o escritor artificialize o homem numa espécie de alma-do-outro-mundo que só saiba, como Flaubert, na França, ou Machado de Assis, no Brasil, ou Edgar Poe, nos Estados Unidos, compor com perfeição literária os seus poemas ou os seus romances ou os seus ensaios. «Incapaz de indignar-se» - como de Anatole France disse uma vez Unamuno. Quando me afoito a dizer, como já disse, uma vez, de um Cervantes, que era tão tipicamente hispânico que nele o escritor como que grecóidemente alongava ou exagerava o homem de acção, de combate, de aventura, é apenas reconhecendo em personalidade como a do autor de "Dom Quixote" certa maneira tão espanhola quanto portuguesa, de ser um indivíduo de génio, homem de letras, sem deixar de ser homem simplesmente homem. Ou homem intensamente homem. Intensamente da sua província, da sua região, da sua raça no sentido sociológico de raça. Mas intensamente, da sua condição humana; demasiadamente humana, até.
Foi como Fernão Mendes Pinto, como o próprio Camões, como António Vieira, como Garrett, como Antero, como Herculano, como Oliveira Martins, como o Eça - o mais flaubertiano dos portugueses - foram escritores: sendo intensamente homens e transbordantemente hispanos. Alongando a sua condição de homens e de hispanos na de escritores. Sendo maiores como personalidades do que como estetas ou eruditos ou compositores literários.
António Sardinha, sem ter sido um grande escritor ou mesmo um grande homem de acção, preso, grande parte da vida, à rotina da sua vida de província e de quinta, foi típicamente da sua raça no modo de ser escritor. Nele aconteceu o transbordamento em homem de letras de uma personalidade marcada pelo fervor combativo ou pela maneira pessoal de reagir contra convenções a seu ver desnacionalizantes ou desispanizantes do português; e a favor de tradições, no seu entender, essenciais à conservação do espírito nacional e do espírito hispânico, na gente portuguesa. Pecou, talvez, por excesso não só de sectarismo político mas - o que me parece grave - de ocidentalismo cultural. Mas sem se fechar de todo à vocação tropicalista do português. Admitindo a incorporação do extra-europeu ao Ocidente.
Diante da sua mesa de trabalho, vem-me à lembrança a amizade que me ligou a este português de Elvas que não cheguei a conhecer senão através de cartas. Vêm-me à lembrança as suas expansões de amigo talvez compreensivo, como nenhum, entre os que tenho tido em Portugal, do meu modo, no seu tempo, ainda vago, de considerar o português não apenas um europeu mas o criador de um sistema extra-europeu de vida e de cultura, corajosamente assimilador da África negra e não apenas da morena ou árabe. Assimilador de índios no Oriente e ameríndios no Brasil. Luso-tropical, é como hoje creio que se deve caracterizar tal sistema, que dá à cultura lusíada condições excepcionais de sobrevivência na África, na América e no Oriente. Num mundo que já não é uma expansão imperial do Ocidente em terras consideradas de populações todas bárbaras e de culturas todas inferiores à europeia, mas um começo de síntese do Ocidente com o Oriente, da Europa com os trópicos. Síntese esboçada pelos portugueses desde o século XV, sem que dela se tivesse apercebido a arrogância britânicamente monocular dos subkiplings.
Sardinha usava monóculo mas não era imperial ou patrioteiramente monocular na sua visão dos problemas de relações de Portugal com a Espanha, com o Norte de África e com o Brasil. Talvez o fosse com relação à África Negra e à Índia, um tanto à maneira, certamente lamentável, dos Mouzinhos de Albuquerque. Com relação a indianos e a africanos negros, parece ter Mouzinho, mais de uma vez, assumido atitudes não de português capaz de extra-europeizar-se em seus critérios e em seus actos ultramarinos, mas de português com pretensões a europeu «puro» ou «superior». E quando o português pretende parecer estritamente europeu em face de indianos ou africanos, por mais britânico que seja o seu monóculo e por mais germânicamente louros que sejam os seus bigodes, resvala em caricatura de europeu. E torna-se tão subeuropeu como qualquer turco, dos que só por terem substituído o fez pela cartola se imaginem parisienses ou londrinos; e deixam de pensar e agir como turcos bons e admiráveis - povo dinâmicamente em transição - para agirem e pensarem como estáticos e incaracterísticos subeuropeus, sem compromissos com a Europa, por um lado, e com o Oriente, por outro, que os obrigassem a pensar e a agir acima da mediocridade ou dos medíocres preconceitos, quer europeus, quer orientais.»
Gilberto Freyre
("Aventura e Rotina", Livros do Brasil, Lisboa, (s/ data), pp. 91-96)
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Há espanhóis - homens e valores - que são predominantemente líricos e portugueses que são predominantemente dramáticos. Se nos é lícito definir o espanhol como dramático em relação com o português, lírico, é considerando simplesmente as predominâncias que parecem caracterizar um povo em face do outro; e não excluindo ou desprezando as constantes interpenetrações entre os dois. Tão constantes que não há talvez português sem alguma coisa de espanhol, nem espanhol sem alguma coisa de português na sua cultura.
Foi de Elvas, e vendo, ao mesmo tempo, Portugal e a Espanha, que o meu amigo António Sardinha observou, como que a olho nu, essas interpenetrações constantes, tão esquecidas por aqueles outros ensaístas que apenas se têm fixado nas diferenças entre os dois povos. E concluiu, como já concluíra Oliveira Martins, por uma unidade peninsular de cultura que, entretanto, para ele, era apenas «cultura» no sentido restrito de conjunto de valores eruditos; e não «cultura», no seu muito mais amplo sentido sociológico e moderno, em que, aos valores eruditos, se acrescentam os quotidianos, os rústicos, os comuns. Sob este critério, creio que as bases da unidade peninsular ganham uma profundidade de que não se fez ainda a exacta sondagem. Oliveira Martins, Moniz Barreto, António Sardinha consideraram-na com olhos particularmente atentos às expressões apenas nobres ou somente políticas. Estas parecem ter favorecido menos como constantes, do que como acidentes, a aproximação entre os dois povos.
E a propósito dessas constantes de interpenetração na cultura erudita da Península - de que o bilinguismo literário parece ter sido a expressão mais completa - convém não nos esquecermos do facto, salientado por Sardinha, de que do português Nuno Gonçalves alguns dos próprios eruditos espanhóis em assuntos de pintura fazem descender toda a pintura tida como mais genuinamente espanhola, no seu realismo ou na sua naturalidade, do mesmo modo que para outros eruditos, de outro português, Gil Vicente, se teria desenvolvido, no drama castelhano, a linguagem popular e até rústica que lhe dá o seu melhor sabor de naturalidade. A pobreza dos portugueses em pintura e em teatro não seria assim absoluta mas relativa: relativa a predominâncias que se acentuaram na Espanha, sem que, de Portugal, deixassem de ter vindo contribuições decisivas e até originais para a cultura comum ou para o complexo peninsular de cultura. Contribuições que se sabe se terem verificado noutros planos e no mesmo sentido de naturalidade de forma ou expressão: no plano da arte do vestido de mulher fidalga, por exemplo. Uma senhora francesa - citada por Sardinha - que estudou o assunto através de retratos de infantas - alguns, obras portuguesas - existentes em Espanha, identificou como portuguesas - regionalmente portuguesas - várias predominâncias nas modas espanholas de trajo fidalgo de mulher.
Já que falo outra vez de pintura e de pintores portugueses, não devo esquecer-me de repetir que Velásquez era um Silva, filho de português; nem de que era português o menos famoso, mas também influente, Sanches Coelho. Se deixaram de enriquecer a pintura peninsular em Portugal, é que por uma predominância não só de temperamento, como, ao que parece, principalmente de educação de gosto, entre reis e o próprio público, a apreciação pela pintura - como pelo teatro - acentuou-se tanto na Espanha que empalideceu em Portugal; e empalideceu em Portugal a ponto de ter-se tornado, segundo parece, incómoda ou esterilizante para os indivíduos com vocação para qualquer das duas artes.
Mesmo assim, continuo a não saber explicar de todo porque, de início, não se desenvolveu, num país das condições excepcionais de visibilidade de Portugal, uma pintura que, ainda mais do que o lirismo, se tivesse tornado característica do povo que inspirou a Mrs. Browning o título dos seus Sonnets from the Portuguese. Porque não se terá desenvolvido entre portugueses uma pintura tão marcadamente portuguesa em sua expressão de vida, de carácter e de luz regionais, como a dos holandeses, em trecho igualmente pequeno da Europa? É mistério que volta a preocupar-me em Évora. Ao fitar uma paisagem que, não sendo portuguesa em sua expressão ou definição política, continua igual à portuguesa pelas suas predominâncias de cor, de forma e de luz, não compreendo que, atravessada uma fronteira apenas convencional, esteja qualquer de nós num país de grandes pintores; e que esses grandes pintores faltem - exceptuando um ou outro Nuno Gonçalves - a Portugal: ao Portugal não só de hoje como ao de sempre. Não só ao da Europa como ao do Ultramar.
Consolemo-nos os portugueses e descendentes de portugueses com a moderna exaltação europeia de uma figura portuguesa de pioneiro da pintura hispânica: Nuno Gonçalves; ou com o facto de cuidadosos pesquisadores europeus das origens da pintura peninsular falarem numa «escola portuguesa» de pioneiros vigorosamente realistas na sua arte: arte ou escola da qual, através de Carreño de Miranda, teria resultado o luso-espanhol Velásquez. Havendo assimilado traços de técnica de Van Eyck, teria adaptado a «escola portuguesa», antecipando-se aos espanhóis, processos nórdicos de pintar, à influência, observada em Portugal por pintores portugueses, da luz sobre a figura humana e sobre a paisagem. Desta obra portuguesa de adaptação de processos nórdicos de pintura e uma luz já quase tropical em seu modo de iluminar figuras e paisagens se teria desenvolvido toda uma riqueza - aparentemente só espanhola, na verdade luso-espanhola nas suas raízes - dentro do sistema de cultura comum às duas nações. Sistema de que participamos todos os hispano-americanos, em nossa formação: os da América Portuguesa tanto quanto os da América Espanhola. As origens da cultura peruana estão salpicadas de muitos e bons lusitanismos; o desenvolvimento da cultura brasileira está marcado pela influência de numerosos espanholismos, ultimamente postos em justo relevo pelo Professor Sílvio Júlio.
Em Elvas, deixo de contemplar a paisagem espanhola que se oferece a meus olhos como um prolongamento da portuguesa, para, de olhos fechados, como os místicos, procurar ver melhor o futuro da pintura portuguesa: pintura tão pobre, até hoje, em Portugal embora tenha concorrido notavelmente para a riqueza da espanhola. O futuro daquela um tanto remota obra de adaptação de técnicas norte-europeias de pintura aos resultados de observação, por olhos de portugueses, da influência de uma luz já quase tropical, como a do Sul da Península, sobre os homens e as coisas.
E o futuro de obra tão remotamente portuguesa, aproveitada e desenvolvida de modo magnífico por espanhóis e luso-espanhóis, creio que se afirmará naquelas áreas tropicais de colonização portuguesa, onde a tradição luso-espanhola de pintura começa a exprimir-se em pintores do vigor de Tarsila do Amaral e de Cândido Portinari, de Cícero Dias, de L. Cardoso Ayres, de Pancetti e Rosa Maria. Pintores que vêm adaptado aquela tradição a condições rasgadamente tropicais de influência da luz sobre as figuras e as paisagens.
*
Vou à quinta em que morou o meu amigo António Sardinha. Visito a viúva: tão portuguesa no seu modo um tanto triste, mas discreto - discretamente triste - de ser viúva. Recebe-me com encantadora simplicidade. Mostra-me a quinta: é pequena e, na sua técnica de exploração da terra, arcaica. Pequena é também a casa. Pequeno o gabinete de trabalho do escritor. Conserva-o a ternura da viúva fiel exactamente como Sardinha o deixou. Os mesmos livros, então novos, que começara a ler. Os mesmos livros velhos abertos para consulta. Os mesmos papéis. A mesma desordem de mesa realmente de trabalho de escritor realmente escritor. De ensaísta que estudava os assuntos, que lia os autores novos, que relia os velhos e os mestres, que examinava os prós e considerava os contras das questões, antes de tomar as suas atitudes de homem de combate.
Homem de combate mas não panfletário amigo da improvisação fácil ou superficialmente brilhante. Havia nele fervor. Mas não o jornalístico e sim o do «moralista» no bom sentido francês em que até um Voltaire ou um Montaigne ou um Pascal é considerado moralista. É verdade que o animava uma doutrina; que o caracterizava nítida vocação para doutrinário e até para doutrinador; que essa vocação mais de uma vez prejudicou, limitou ou amesquinhou nele a independência ou a flexibilidade de escritor. A própria dignidade do pensador. Mas nunca a honestidade do homem. E em seu modo de ser escritor havia muito de hispânico: entre os hispanos, parece que, mais do que entre outros povos, o homem alonga-se em escritor sem que o escritor artificialize o homem numa espécie de alma-do-outro-mundo que só saiba, como Flaubert, na França, ou Machado de Assis, no Brasil, ou Edgar Poe, nos Estados Unidos, compor com perfeição literária os seus poemas ou os seus romances ou os seus ensaios. «Incapaz de indignar-se» - como de Anatole France disse uma vez Unamuno. Quando me afoito a dizer, como já disse, uma vez, de um Cervantes, que era tão tipicamente hispânico que nele o escritor como que grecóidemente alongava ou exagerava o homem de acção, de combate, de aventura, é apenas reconhecendo em personalidade como a do autor de "Dom Quixote" certa maneira tão espanhola quanto portuguesa, de ser um indivíduo de génio, homem de letras, sem deixar de ser homem simplesmente homem. Ou homem intensamente homem. Intensamente da sua província, da sua região, da sua raça no sentido sociológico de raça. Mas intensamente, da sua condição humana; demasiadamente humana, até.
Foi como Fernão Mendes Pinto, como o próprio Camões, como António Vieira, como Garrett, como Antero, como Herculano, como Oliveira Martins, como o Eça - o mais flaubertiano dos portugueses - foram escritores: sendo intensamente homens e transbordantemente hispanos. Alongando a sua condição de homens e de hispanos na de escritores. Sendo maiores como personalidades do que como estetas ou eruditos ou compositores literários.
António Sardinha, sem ter sido um grande escritor ou mesmo um grande homem de acção, preso, grande parte da vida, à rotina da sua vida de província e de quinta, foi típicamente da sua raça no modo de ser escritor. Nele aconteceu o transbordamento em homem de letras de uma personalidade marcada pelo fervor combativo ou pela maneira pessoal de reagir contra convenções a seu ver desnacionalizantes ou desispanizantes do português; e a favor de tradições, no seu entender, essenciais à conservação do espírito nacional e do espírito hispânico, na gente portuguesa. Pecou, talvez, por excesso não só de sectarismo político mas - o que me parece grave - de ocidentalismo cultural. Mas sem se fechar de todo à vocação tropicalista do português. Admitindo a incorporação do extra-europeu ao Ocidente.
Diante da sua mesa de trabalho, vem-me à lembrança a amizade que me ligou a este português de Elvas que não cheguei a conhecer senão através de cartas. Vêm-me à lembrança as suas expansões de amigo talvez compreensivo, como nenhum, entre os que tenho tido em Portugal, do meu modo, no seu tempo, ainda vago, de considerar o português não apenas um europeu mas o criador de um sistema extra-europeu de vida e de cultura, corajosamente assimilador da África negra e não apenas da morena ou árabe. Assimilador de índios no Oriente e ameríndios no Brasil. Luso-tropical, é como hoje creio que se deve caracterizar tal sistema, que dá à cultura lusíada condições excepcionais de sobrevivência na África, na América e no Oriente. Num mundo que já não é uma expansão imperial do Ocidente em terras consideradas de populações todas bárbaras e de culturas todas inferiores à europeia, mas um começo de síntese do Ocidente com o Oriente, da Europa com os trópicos. Síntese esboçada pelos portugueses desde o século XV, sem que dela se tivesse apercebido a arrogância britânicamente monocular dos subkiplings.
Sardinha usava monóculo mas não era imperial ou patrioteiramente monocular na sua visão dos problemas de relações de Portugal com a Espanha, com o Norte de África e com o Brasil. Talvez o fosse com relação à África Negra e à Índia, um tanto à maneira, certamente lamentável, dos Mouzinhos de Albuquerque. Com relação a indianos e a africanos negros, parece ter Mouzinho, mais de uma vez, assumido atitudes não de português capaz de extra-europeizar-se em seus critérios e em seus actos ultramarinos, mas de português com pretensões a europeu «puro» ou «superior». E quando o português pretende parecer estritamente europeu em face de indianos ou africanos, por mais britânico que seja o seu monóculo e por mais germânicamente louros que sejam os seus bigodes, resvala em caricatura de europeu. E torna-se tão subeuropeu como qualquer turco, dos que só por terem substituído o fez pela cartola se imaginem parisienses ou londrinos; e deixam de pensar e agir como turcos bons e admiráveis - povo dinâmicamente em transição - para agirem e pensarem como estáticos e incaracterísticos subeuropeus, sem compromissos com a Europa, por um lado, e com o Oriente, por outro, que os obrigassem a pensar e a agir acima da mediocridade ou dos medíocres preconceitos, quer europeus, quer orientais.»
Gilberto Freyre
("Aventura e Rotina", Livros do Brasil, Lisboa, (s/ data), pp. 91-96)
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