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sexta-feira, março 18, 2005

António Sérgio, visto por Gilberto Freyre 

De volta a Lisboa, que continua quase tão tropicalmente clara como em Julho - quando por aqui passámos, a caminho da França - tenho o gosto de receber a visita de António Sérgio. O mesmo Sérgio. A inteligência ágil é nele a de um crítico ao mesmo tempo poderoso e subtil que compreende os assuntos como os gregos desejavam que se compreendesse qualquer problema novo: apanhando-o o pensador no ar, vivo e vibrante. Como a um pássaro no voo.
A inteligência que não possua este poder, não de improvisação, mas de compreensão ágil, talvez não seja senão meia-inteligência. A melhor inteligência do homem parece estar nisto: em poder ou saber apanhar o assunto, não parado ou quase morto, mas vivo e em movimento, que é como os assuntos são completos e naturais.
É como António Sérgio sabe surpreendê-los: nesta espécie de voo. Daí a sua palavra ser, não a eloquente ou a brilhante do improvisador ou do causeur convencional, mas a surpreendente, do homem de inteligência ao mesmo tempo ágil e profunda. Surpreendente na conversa quase tanto como é no ensaio, Sérgio nunca vê banalmente um assunto nem comenta convencionalmente um facto. Surpreende nos factos e nos problemas aspectos inesperados que nos revela com nitidez às vezes didáctica. É o que ele tem feito principalmente do ensaio em língua portuguesa: um instrumento de revelação de factos e de clarificação de ideias.
Impossível, hoje, considerar os factos da expansão portuguesa no Oriente e nos trópicos e as ideias que se têm acumulado em torno desses factos, sem considerar o critério sugerido por António Sérgio - ele próprio nascido em Damão, filho de português ilustre, depois visconde, que governou durante anos províncias da Índia - para a reinterpretação de tais factos e para a clarificação de quanta ideologia turva nos vem separando deles. Pode haver na sua atitude e na dos jovens estudiosos de assuntos portugueses que a seguem - sistematicamente talvez nenhum, vários, um deles Vitorino Magalhães Godinho, livremente - excesso de racionalismo como que linear. Impaciência com as muitas curvas que fazem do passado e da natureza humana complexos em que intervêm desigualmente no tempo, como no espaço, influências diversas e contraditórias e algumas rebeldes ao puro esclarecimento nacional. Não há dúvida, porém, de que Sérgio, com as suas «considerações histórico-pedagógicas» sobre os descobrimentos portugueses no seu ensaio sobre A Conquista de Ceuta e no seu esboço, publicado em inglês, na Índia, da história de Portugal, veio ampliar sobre todo um grupo de factos como que desnaturalizados por alguns historiadores, a visão já «económico-científica» - como a chama o próprio Magalhães Godinho - de um Oliveira Martins um tanto injustamente desdenhado como «romântico» no mau sentido - quando o foi principalmente no bom; a acrescentar a essa visão de homem de génio - homem de génio meio desajustado entre historiadores convencionais, como foi Martins - novos e sugestivos modos de considerar-se o complexo problema da expansão lusitana. Uma expansão cujo sentido económico vinha sendo esquecido ou desprezado pelos apologetas de um Portugal expansionista considerado apenas «campeão da Fé» ou da «Cristandade».
António Sérgio pôs em relevo, como uma das causas da expansão portuguesa, a crise de subsistência em Portugal no século XV: crise para a qual o celeiro marroquino se apresentava como solução imediata. Ao lado dessa crise regional, salientou a europeia: estava a economia europeia ameaçada pelos triunfos turcos no Levante - que substituiriam, entre os maometanos, uma civilização acomodatíciamente mercantil por outra, guerreira, intolerantemente guerreira, talvez - de desequilibrar-se, perdendo o contacto comercial com a Índia. E não nos esqueçamos - Mestre Sérgio dá todo o relevo ao facto - de que, em Portugal estava, desde o século XIV, no poder, a burguesia comercial-marítima. Era dentro da comunidade portuguesa a parte mais particularmente sensível a um desequilíbrio na economia comercial da Europa, em suas relações com a Índia.
Destacando essas influências, na verdade decisivas e apenas entrevistas pela poderosa inteligência de Oliveira Martins, ao considerar os motivos da expansão portuguesa na África, Sérgio deixou-se levar pelo encanto da interpretação linear. E pela interpretação linearmente económica abandonou de tal modo a político-religiosa, que resvalou no extremo de considerar desprezível o fervor religioso entre os estímulos à actividade expansionista dos portugueses na África e no Oriente. Exagero em que o vêm rectificando historiadores, por sua vez exagerados na exaltação, mas não na consideração, do factor religioso: Joaquim Bensaúde e Jaime Cortezão, entre outros. Mestre Jaime Cortezão - tão mestre quanto Sérgio - sem nunca desprezar a realidade económica; Bensaúde perdendo-se, às vezes, em exageros de retórica patriótica e nacionalista, numa como sobrecompensação da sua condição de português de origem israelita.
A Cortezão sempre pareceu difícil de separar, na tentativa de explicar-se a expansão portuguesa, o motivo económico do religioso: se a feição marítima tomada pela economia europeia - inclusive a portuguesa - como que obrigava a Europa a entrar em conflito com outra civilização também marítima e mercantil como a dos árabes, empenhados há longo tempo na exploração do mesmo ouro africano e das mesmas especiarias orientais agora desejadas pelos europeus, também favorecia o conflito entre as duas civilizações o ódio teológico que separava cristãos de maometanos: um ódio teológico acentuado entre cada um dos dois grandes grupos pelo fervor proselitista que em cada um deles animava poderosos subgrupos. Entre os cristãos, o principal subgrupo militantemente expansionista teria sido, segundo Cortezão, o franciscano, com os seu amor senão ao estudo, à contemplação da natureza, ao qual se teria juntado aquele «apetite de conhecimento» desenvolvido nos europeus do sul pela ciência greco-árabe.
Recorda Magalhães Godinho ter em 1940 Jaime Cortezão modificado a sua interpretação da expressão portuguesa no Oriente e nos trópicos, no sentido de acentuar a importância do factor religioso como estímulo aos descobrimentos e às actividades lusitanas no Ultramar. O facto apenas parece indicar, tratando-se de pesquisador tão honesto, a dificuldade em torno do que o mesmo Magalhães Godinho - cujo excelente ensaio A Expansão Quatrocentista Portuguesa venha lendo - chama «diagnóstico da causa decisiva». Para Magalhães Godinho, «o problema da génese dos descobrimentos desdobra-se em três aspectos» que seriam, um de «impulsões e solicitações», a ser estudado sociológicamente; outro de «iniciativas e adaptações», psicológico; outro de «valores culturais», lógico. Desprezando o «imperialismo turco» como causa da expansão portuguesa no século XV, Magalhães Godinho prefere destacar, divergindo de Sérgio mais em sistemática do que em orientação, «a convergência das necessidades de dilatação territorial da nobreza e de conquista de mercados da burguesia», que teria sido uma causa sociológica «por impulsão»; e ao lado dela, por «solicitação» - causa também sociológica - os cereais, panos, ouro, pescarias e posição estratégica de Marrocos; o ouro, a malagueta, os escravos da Guiné; as especiarias, pedras preciosas, madeiras raras e aromáticas da Índia. A expansão não se teria realizado como uma «iniciativa única» mas como uma pluralidade de iniciativas. Não teria sido só no sentido da conquista territorial (interesse da nobreza) mas no comercial (interesse da burguesia): orientação reunidas por D. João II em Marrocos. A Ordem de Cristo é que teria tido a iniciativa dos descobrimentos portugueses; mas não por fervor religioso e sim porque era «uma organização de riqueza fundiária e mobiliária». Quanto ao Infante, teria sido movido no seu modo de pôr-se a «serviço de Deus e do reino», pela «curiosidade, a perspectiva comercial, o espírito de cruzada e cavalaria e considerações político-estratégicas».
Como se vê, atribui o continuador de António Sérgio na interpretação materialista da expansão portuguesa na África e no Oriente, importância tal aos factores económicos que deixa na sombra - a não ser com relação ao Infante - os religiosos ou idealistas ou românticos ou místicos. É como se não existisse da parte do português aquele lirismo, ao mesmo tempo religioso e naturalista, que Cortezão simplifica sob o nome de «franciscanismo»; e que parece ter sido o motivo de atracção de tantos homens do Reino para a vida livre nos trópicos, para os encantos da natureza tropical, para a actividade românticamente missionária no estilo da de João de Brito na Índia. O mesmo lirismo ou romanticismo em que se teria inspirado, através de novelas ainda quase infantis mas sugestivas, como expressão literária de efusão lírica, o romantismo de Rousseau.
Ninguém hoje que se interesse pelo estudo das actividades não só económicas como religiosas, não só comerciais, mas a seu modo, românticas, que definem a presença do português no Oriente e nos trópicos, pode desprezar as páginas que sobre a expansão lusitana nessas áreas já escreveu António Sérgio. São lúcidas e iniciaram uma fase em estudos, que Oliveira Martins foi o primeiro a libertar de exagero de «ufanismo» português em relação com um passado nem sempre cor-de-rosa. O mesmo direi dos recentes ensaios de Magalhães Godinho, tão influenciado por Sérgio nos seus primeiros pontos de partida. Mas são interpretações, tanto as que eles oferecem como as já clássicas - a despeito de «românticas» - de Oliveira Martins, a que precisamos de opor, mais de uma vez, as oferecidas por outro ensaísta português, tão moderno quanto Sérgio em sua formação de historiador e com igual sentido sociológico do passado que pretende reconstituir e interpretar: o hoje meio-brasileiro Jaime Cortezão.»
Gilberto Freyre
("Aventura e Rotina", Livros do Brasil, Lisboa, (s/ data), 191-194.)

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