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quarta-feira, março 30, 2005

MAURRAS, HOMEM DE DEUS 

A Paixão é em seus quadros e personagens narrativa admirável dos homens de todos os tempos, paradigma da história do mundo, espelho de acções e silêncios, raiz a meditar e construir, estação perene onde cabemos nós e quase tudo.
As linhas cruzadas de Deus e de César, o passamento dos triunfos terrenos (Cristo vitoriado em Domingo de Ramos e escarnecido na Quinta‑feira) a inveja dos Doutores, as interrogações de Pilatos, o medo de Pedro, a fidelidade de João, o Amor de Maria, os eleitos de acaso (Verónica, o Cireneu, os Ladrões) todos escolhendo e cumprindo o seu papel na Economia da Salvação. Cumprindo um papel, um destino. Destino ingrato, estranho e trá­gico, terrivelmente necessário para que tudo fosse como estava escrito, o desse personagem‑chave e maldito que é Judas Iscariotes.
Bem e Mal, Luz e Trevas, Verdade e Erro. A linguagem é feita destas proposições que guardam um sabor maniqueu. A Vida também, sem prejuízo do perigo das simplificações fáceis. E nos homens, em todos e em cada um, em crispação e dúvida perante os extremos, actores e pomos da questão, situa‑se sobretudo a guerra dos reinos de Cima e de Baixo. Vitórias e derrotas marcadas nos sulcos das existências nas obras legadas, nas árvores, nos Livros, nos filhos, embora a bondade dos frutos dependa tanto da semente como da ordem do terreno.
E assim há homens de Deus e homens que O esqueceram, há propagadores e inimigos da Graça; há campos, exércitos, batalhas, algum sangue, mui­to choro, muita esperança. Such is life, isn't it...
Contraponto. Ponto contra ponto. Onde estão os Homens de Deus? Como conhecê­‑los, encontrá‑los, segui-los, dar seu testemunho; quais as marcas, os símbolos, os estigmas, as bandeiras, as espirais de fogo, as roupas dos eleitos? É muito importante descobri‑los. E não será fácil. Homens de Deus. Debruço‑me sobre os contemporâneos, a escutar as linhas traçadas nas sombras que ficaram, os passos na areia, os padrões de tanta via‑sacra esquecida ou ignorada. Homens de Deus, fortes e fiéis, caminheiros incan­sáveis em busca do Reino, numa devoção como­vida e lúcida ao ideal de cumprir e dar a Palavra.
Homens de Deus. Iguais a nós, do mesmo barro e do mesmo sangue, mas tão grandes tam­bém. Penso num Papini, a «ira sagrada» a destroçar os círculos do vício; como tanto Bernanos; como, mais longe, o velho e humilde Édouard Dru­mont, exorcista da usura (como Ezra Pound, mal­dito e poeta); em Antoine de Saint‑Éxupéry, que percorreu os caminhos do céu e nos deixou Cidadela; no Chesterton, aquele rosto de professor de província, uma Fé que não precisava de gritar, antes sabia rir. E tantos, que deram testemunho pela escrita.
Depois, Homens de Deus nas sendas do Poder, em risco perpétuo, dados de alma e corpo às coisas grandes, contas só ao Juiz supremo. Alguns passa­ram bem perto de nós.
Homens de Deus, numa aventura no século, dando tantas vezes, mesmo sem intenção, a medida maior da Luz, que vem aos ser­vos do Reino. Estou agora a lembrar‑me dum des­ses, de Maurras, agnóstico, racionalista, implacável tantas vezes, mas também e acima de tudo Ho­mem de Deus, porque Homem de Esperança. Vem ao Mundo num dia 20 de Abril, aniversário da fundação de Roma, a Providência a entregar ao signo da Loba úbere do Lácio o homem, marcado pelos estigmas do génio e da perseverança, no rosto patrício a vocação imperial temperada pela serenidade de Atenas.
Homem de Deus, sinal de contradição, Des­tino. É vê‑lo desde as primeiras horas da juven­tude na rude batalha contra si mesmo, contra o anarquismo intelectual que é estação quase obri­gatória nos homens de raça, momento de crise a transpor e resolver, a gerar depois a fidelidade aos Valores supremos ou à sua busca que há‑de seguir até ao fim, até aos últimos dias, nem ven­cido nem convencido, pelas pedras do chão e pelos ferros dos homens, trajectória exemplar de amor do Bem.
No intróito de «Maurras et notre temps», prei­to e memorial de Henri Massis àquele que foi seu Mestre e Amigo há uma passagem que revela o significado essencial da vida de Maurras:
«Foi nos humildes começos da Action Fran­çaise, quando ela não passava da «petite revue grise», cujas provas Maurras e os seus reviam nas mesas do Café de Flore. Uns seis ou sete em ardentes discussões, com vista a um acordo — um acordo sobre os meios de salvação da França — e que se exercitavam a pensar e reagir em comum para reagirem da mesma forma. Entre eles havia um tal Octave Tauxier — cujos prometedores bos­quejos tinham impressionado Lemaître e Bourget. Era um jovem que pensava com firmeza, e segundo testemunho do próprio Maurras, foi um dos primeiros da sua geração a pressentir e prever que o prestígio da atracção e da novidade iam passar da esquerda para a direita. Um mal implacável arrancou-o prematuramente aos seus amigos. Quando vieram dizer a Maurras «Tauxier morreu» este teve esta exclamação espantosa que, muitos anos depois, Bainville me relatou — «Não se morre» — retorquiu Maurras, com a voz surda, a cerrar os punhos, nos olhos uma nuvem de dor e de raiva. Não, não se morre, quando se tem uma obra a cumprir, quando há bens a salvar, ma­les a destruir, um combate a que se consagrar, trabalho para mais de meio século.»
«Não se morre»... A revolta, a recusa perante o irremediável, é, na evidência do paradoxo, espelho duma vida ao serviço da Vida, guerra sem tréguas a todos os derrotismos, a todas as negações, a todos os abandonos, linha ascensional onde correm lampejos de epopeia, onde circula a seiva da grandeza, onde não se vislumbra mancha de comodismo ou concessão.
«Não se morre»... E entretanto há os amigos e companheiros que tombaram por palavras de vida, os muitos que ficaram na berma ou no meio da estrada: Marius Plateau abatido nos escritórios da Action Française, os caídos no 6 de Fevereiro, os assassinados na Libertação.
«Não se morre...» mas morria‑se pela França em Verdun e no Marne, mesmo na drôle de guerre; depois, pela França e qualquer coisa mais, diante de Moscovo...
«Não se morre...» — e há cadáveres, sepultos ou es­quecidos, há gerações e juventudes perdidas e reencontradas em manhãs e crepúsculos de carni­ficina; e o mais cru, o mais terrível, há os mortos, os sobreviventes, os que renegaram, os que traíram.
Mas na verdade, «não se morre». A imagem de Maurras ao ter notícia do fim de Tauxier, não é um mero episódio, um grito de retórica. — Depois das escaramuças do affaire Dreyfus, da «petite revue grise», a Action Française quotidiana sai a lume, e as polémicas, os ataques, os recontros sem tréguas tornam-se permanentes. As suas palavras de ordem são um apelo à França real, à pátria de Joana d`Arc e Luís XIV, um apelo e uma chamada à salvação contra o país legal, a III República do parlamentarismo, conservantista, radical —.
Para Maurras são as noites brancas, em tipografias de redacção, é uma existência de renúncia de quem se deu todo às suas ideias e aos seus fins; são as dores e sacrifícios que importa um combate político constante, as esperan­ças e as desilusões, os capitólios e as rochas tarpeias, os escolhos, as opções, as responsabilidades sem contas afinal a cair sobre ele que era mestre e guia de todos.
A Grande Guerra, as campanhas contra o derrotismo e a traição. Maurras e Daudet na brecha, «professores de energia». Os anos vinte, tumultuosos, que vão trazer a questão com Roma e luto e provações sem nome: o non possumus nos limites do risco, a alma mais que o corpo numa entrega completa aos ideais, esteios de fidelidade e amargura numa era de trevas — . Depois o 6 de Fevereiro de 1934, a Frente Popular. Maurras é ferido. A Guerra de Espanha vem acender as cores do Fogo e do Sangue, revelar as bandeiras por que os homens vão morrendo na Europa, as cinzas, prelúdio das futuras, e a iluminação, a caírem como fundo de mau presságio, sobre os já curtos dias de Paz.
A guerra, a débacle, o armistício, Vichy, as esperanças no Marechal, no «État Français», encontram Maurras sempre na primeira linha. Como o processo iníquo que lhe movem os seus inimigos, a vingança de Dreyfus, as acusações mentirosas, acham o velho leão inquebrantável acusador dos seus juizes, monolítico, invencível, admirável.
A prisão, o aproximar da morte, numa linha de luz. «Não se morre» —. Há esperança, muita, no limiar da morte.
Nestes tempos em que a Decadência nos amea­ça, quando as internacionais da Plutocracia e do Proletariado põem em perigo as Pátrias e o Ocidente, quando a Civilização Cristã é lugar‑comum na boca de gente que nada tem de civilizado ou de cristão, nestes dias tão tormentosos, tão decisivos, onde tememos por uma concepção de vida e pela própria vida civilizada à superfície da terra, quando o cepticismo e resignação diante do curso da História envenenam até os melhores, numa idade de catacumbas, a lição de Maurras, nas suas ideias e nos seus livros, confirmada por uma nobre coerência que não conheceu receio ou hesitação, deve ser para nós pedra e penhor de esperança — «Ceux qui disent que ce qui est mort est mort ne sont pas sûrs de l'affaire. Il semble bien que ce qui est mort ne meurt pas de mort naturelle et qu`il y eut toujours quelque recoin obscur résérvé a l`espoir»...
Assim foi, viveu e morreu Charles Maurras. Grande entre os grandes, o culto da razão, a inflexibilidade dos juízos, a permanência nos valores, não impedem que, mesmo que afastado e até tantas vezes alheio às trajectórias ortodoxas, não seja acima de tudo, com verdade e fé, um Homem de Vontade e de Esperança, dos que querem e acreditam que a Vida há‑de continuar, dos que permanecem.
Um Homem Fiel. Um Homem de Deus.
Jaime Nogueira Pinto
(In «Política», n.º 30, 01.04.1971, pág. 3)

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