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quarta-feira, março 30, 2005

PERMANÊNCIA E FÉ 

Aquele que não acredita na sua verdade morre e merece morrer. Acreditar é viver aquilo em que se acredita, é ser aquilo em que se acredita, é sofrer de que não esteja tudo repassado dessa alma, e de que ela não subjugue tudo. Acreditar é ser absolutista, firmar a absolutidade daquilo em que acreditamos. É ser totalitário, intransigente, fanático. Acreditar é viver e proclamar um dogma. Só ao tornar-se dogma, combate, intolerância e imperialismo, só na implacável invasão do amor, no incêndio total da fé, só assim existe a crença.
A crença não admite limites no seu objecto, pois, de outro modo, ela e ele desapareceriam pela bruma indecisa dos contornos. A crença é indemovível e impenetrável, inflexível e dura como diamante. A crença não pactua nem se amolda, nem recua, nem amolece, nem se minimiza. Infla e avança e sobe, como um vento ou uma cheia. Se admitisse outra verdade contrária, se lhe tolerasse a existência, se duvidasse, não seria crença, mas sim dúvida.
Arrastamo-nos, alheados e vagos, por um tempo de demissão. Não assumimos a nossa verdade, não combatemos pela nossa alma. Ou amamos demasiadamente a vida, a nossa vida animal, a vidinha — e, de cobardia, morremos; ou levantamos anteparos, amortecedores, pára-choques, passamos a mão pelo lombo das feras, comprazemos com as exigências dos provocadores, fazemos desvios de caminho, disfarçamo-nos ou abastardamo-nos, metemos o rabinho entre as pernas, damos ao erro e à mentira foros de cidade na cidade que nos pertence — e tornamo-nos pigmeus e escravos.
Passamos os dias, os anos, os lugares, a retirar e a conceder. A nossa grande habilidade, o nosso embofiado triunfo é não ter cedido cem por cento, mas só oitenta por cento ou — feito digno dos grandes capitães... — vinte por cento, apenas. E de cada vez cedemos: não tudo, mas só parte. E de cada vez recuamos alguns passos, não todos quanto o adversário exigia... Recuamos, de cada vez, vinte passos até perfazer cem — e o adversário conseguir os seus propósitos.
E o nosso propósito? Desde há muito que não é vencer, mas neutralizar. O resultado é sermos vencidos. Envergonhamo-nos de ser nítidos e firmes, desafiadores e coesos. Tememos a nitidez, a firmeza, o desafio, a coesão do adversário. Achamos ridículas e obsoletas as nossas ideias, as nossas insígnias, as nossas palavras. Inquietamo-nos de que o nosso ser possa ferir susceptibilidade e intransigência, o ser, do inimigo. Descolorimo-nos, abrandamo-nos, invertebramo-nos, pedimos desculpa. Levamos o tempo a hesitar e a tentar convencer, a abrandar e a moderar, enquanto o inimigo actua e avança. Perante uma acusação, entramos em pânico. «Oh!, não demos pretexto a uma acusação!» Os outros lançam ofensivas e, orgulhosamente, conquistam e afirmam-se e são fortes. Diante dessa altivez e insolência, ficamos perplexos e perdemo-nos em diplomacias, raciocínios e disfarces. Hesitamos. Relegamos a fé. «Nada de violências», dizemo-nos. E pomo-nos gravemente a pensar. A pensar morreu um burro. Burros é que nós somos, ou bois a olhar para palácio, ou carneiros insensíveis conduzidos ao matadouro. De qualquer modo, animais. Sem fé, morreremos por tanto amar a vidinha. Que porcaria de tempo, ó meu Deus!
Goulart Nogueira
(In Agora – n.º 342, pág. 3, 27.01.1968)

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