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sexta-feira, março 18, 2005

Salazar, visto por Gilberto Freyre 

O telefone retine e recebo o aviso de que o Presidente do conselho me espera às dez horas da manhã. Em Salazar, interessa-me menos o político do que o intelectual. Mas é hoje impossível separar um do outro. Completam-se os dois, para indignação dos que, como o meu amigo Georges Gurvitch, não compreendem intelectual alongado em político. Em 1948, em Paris, Gurvitch mostrou-se furioso comigo porque eu admitia, em casos excepcionais, a intervenção do intelectual na política. Citava eu, entre outros exemplos, o de Masaryk e o de Salazar.
Sigo para o encontro com o Professor Salazar, filosofando a meu modo sobre política. A melhor ainda me parece aquela que permite a um povo ser o mais possível vivo, espontâneo, na sua maneira de comportar-se; fiel ao seu temperamento e à sua experiência e não regulado duramente por fórmulas e regras lógicas mas inumanas ou alheias a diferenças nacionais ou subnacionais de carácter ou de cultura. A verdade é que, nos modos nacionais de um povo ser povo, o que é erro ou defeito numa nação pode ser graça ou virtude noutra. Relativismo que nada tem de novo: já é até acaciano. Mas é preciso sempre reavivá-lo para não nos esquecermos da importância das suas consequências.
Recebe-me o grão-doutor português com uma simplicidade de professor que acolhesse outro. Interessado nos meus livros, alguns dos quais vejo a seu lado: inclusive o mais recente deles, "Quase Política". Interessado em outros livros e em outros autores brasileiros.
A sua palavra, a princípio de um tímido, aos poucos toma toda a sua naturalidade. Até que tenho a impressão de ouvir pessoa amiga e não estranha.
Conversamos sobre muitos e diversos assuntos. A nossa conversa vai das dez às onze horas. Estende-se às doze. E só termina, contra tudo que é regra gramatical de protocolo, às doze e meia.
Fala-me o Professor Salazar de temas inflamáveis com uma franqueza, uma nitidez, às vezes um desassombro, que não é de político mas de intelectual. E intelectual a quem delicia a discussão, a crítica, o próprio choque de ideias, quando o adversário lhe parece da mesma condição, senão intelectual, moral. Sente-se que lhe repugna o verbalismo, a oratória, a própria eloquência que mistifique os problemas por amor aos efeitos verbais e até, aparentemente, lógicos.
É o homem mais ágil de olhar, mais agudamente vigilante, mais didacticamente atento ao que ouve, que tenho conhecido. Não lhe escapa uma só das minhas pequenas hesitações de palavra, como se qualquer delas lhe revelasse uma ideia ainda verde para ser exposta; ou demasiado indiscreta para ser desenvolvida na presença de um chefe de Governo. Não lhe escapa sequer um só dos pequenos gestos com que, às vezes, procuro substituir palavras. Por mais incompletos ou inacabados que sejam os gestos dos outros, ele surpreende-os e tradu-los. Noto que é dos que traduzem com os olhos o que apenas lhe dizem com os olhos; e ouve o que lhe contam com uma agudeza de Jesuíta que, por hábito ou vício de confessar gente subtil, extraísse todo o sumo das palavras: mesmo de meias-palavras.
Nele observo um homem quase sem gestos: nem grandes nem pequenos gestos. Sem eloquência. A sua palavra será talvez monótona mas é de uma nitidez admirável. Dá bem ideia do raro professor que a política arrancou a Coimbra, deixando vazio um capelo, já quase peça ou relíquia de museu. Mas sob a casaca de ministro, o imperecível professor uma vez por outra tem reaparecido, em discursos oficiais que, afastando-se das tradições portuguesas de eloquência política, têm honrado o espírito universitário de Coimbra. Ou o espírito universitário português, desde que, sem ter sido aluno de Coimbra, mas bacharel de academia militar, especializado no estudo das ciências físicas e matemáticas, António Sérgio me dá, como nenhum outro português, a impressão de ser, como Salazar, um intelectual superiormente crítico, objectivo, lúcido. Impressão de outros observadores que conhecem de perto os dois Antónios: Salazar e Sérgio.
É como se desses dois superiores portugueses de hoje pudesse outro Ganivet escrever o mesmo que o arguto espanhol do século XIX sugeriu de Portugal em relação com a Espanha: separa-os antes o excesso de semelhanças que o de diferenças. Semelhanças de feitio, é claro: feitio talvez demasiadamente lógico com prejuízo do mágico, no caso dos dois intelectuais portugueses. Em ideias, eu talvez me incline mais para as de António Sérgio que para as de António de Oliveira Salazar, embora respeitando no grão-doutor um dos maiores portugueses de todos os tempos. Alguém que, na verdade, fez nascer de novo em Portugal muita virtude ou valor que adormecera até parecer morto.
Que espécie de aparência é a do Professor Salazar? Vi-o, como tenho visto desde novo, desde discípulo de antropologia do velho Boas, os grandes homens que tenho encontrado: com olhos de estudante de antropologia que auxiliassem sempre o escritor na sua impressão das pessoas; e o tornassem particularmente atento, talvez por deformação profissional, à raça, à cor, ao nariz de Cleópatra do indivíduo e não apenas ao seu modo de resistir ao tempo, ao clima, à profissão; ou de conservar, na figura de adulto, o passado ou a meninice ou a adolescência.
O Professor Salazar é homem de aparência sã. Um tanto curvado, vê-se que nele o pequeno lavrador de Santa Comba Dão já quase não tem tempo para corrigir no grande homem de gabinete os efeitos da rotina de sedentário. Na mocidade, o seu cabelo, agora precocemente quase todo branco - de um branco prateado (argenté, diria um cronista elegante, dos que não perderam o vício do francesismo) que lhe dá certa dignidade episcopal - deve ter sido quase românticamente preto. Alguma coisa de semita marca-lhe a fisionomia. Alguma coisa de defroqué - não o é, bem sei, mas poderia sê-lo - adoça-lhe os gestos: sobretudo os de cortesia. Adoça-lhe também a voz, que é de ordinário calma, suave, embora didacticamente clara. Transparece-lhe nas mãos, que às vezes parecem mais de moça do que de homem.
Não é voz, a sua, de português típico que, como o brasileiro típico, tende a falar alto: quase a gritar, mesmo quando conversa sobre assuntos íntimos. O Professor Salazar, ao contrário, conversa sobre qualquer assunto como se fosse tema para ser versado em voz baixa e não aos gritos. Nisto se parece com o brasileiro Getúlio Vargas, em quem também há qualquer coisa de defroqué: pelo menos de indivíduo que, na adolescência, tivesse estudado ou querido estudar para padre. Alguma coisa de subtilmente canónico distingue um e o outro, dos bacharéis tipicamente bacharéis em seus gestos e em seus modos, geralmente enfáticos, de falar.
O que é muito português no Professor Salazar é a doçura um pouco triste do seu olhar: um olhar doce, mas não melífluo, de homem virilmente bom. Nem fraco nem sequer sentimental: virilmente bom. Mas esses olhos de ordinário doces são, ao mesmo tempo, espontaneamente vigilantes; e podem tomar expressões de energia ou decisão, que não seria exagero de retórica descrever como aquilinas. Também a voz suave sabe encrespar-se. Dizem-me que ainda hoje devem doer os ouvidos de certo estrangeiro ilustre, um tanto incauto nas palavras que, certo dia, empregou com relação a Portugal: o Professor Salazar, ter-lhe-ia falado tão alto e tão crespo, a ponto de ter parecido até aos íntimos outro Salazar. Mas era o mesmo. Basta saber vê-lo, mesmo uma só vez, para saber que era o mesmo.»
Gilberto Freyre ("Aventura e Rotina", Livros do Brasil, Lisboa, (s/ data), pp. 21-23).

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