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segunda-feira, março 21, 2005

UM INTELECTUAL DO NACIONALISMO LUSÍADA 

Recordo‑me bem — e com quantas saudades, santo Deus, pois não tinha ainda vinte anos! — da primeira e única vez que vi Homem Cristo, Filho, por certo o mais garboso, moderno, gentil e brilhante jornalista da sua geração.
Foi no velho Internacional, portuense, ali no Passeio das Cardosas, misto de café e de restaurante, ao tempo ponto certo das mais prestigio­sas figuras do mundo intelectual e artístico dos primeiros cinco lustros deste malfadado e agitado século. Não só local predilecto dos vultos tripeiros mais em evidência (que nós rapazes muito bem conhecíamos e admirávamos) mas de todos os magos das Letras, da Ciência, da Música, da Política e das Artes Plásticas nacionais que, vindos de fora do burgo, de passagem no Porto, ali davam os seus rendez‑vous ou passavam os seus momentos de breve ócio, enquanto sorviam deliciados um bom moka ou se distraíam com o fumo de um aromático cigarro.
Guardada até hoje na câmara‑escura da minha ainda lúcida memória, mais fresca do que tenra alface, revejo nitidamente, quase trinta e cinco anos volvidos, como em impressivo instantâneo, kodaquizado, agora mesmo, a silhueta esguia como um álamo do grande e infortunado jornalista, a sua máscara fortemente vincada; o seu rosto glabro, escanhoado até à derme, levemente arrepanhado num rictus de energia máscula; um colarinho branco, de abas voltadas, em redor do seu pescoço alto de ganso; um monóculo atrevido, faiscante, entalado atrevidamente na órbita, em toda a sua pessoa um ar impressionante e altivo de grand­‑seigneur.
Homem Cristo, Filho, envergava nessa tarde distante de um distante Inverno, uma soberba pelica, mais sumptuosa, talvez, do que a de Fradique Mendes, que naquele ambiente prosaico, meio provinciano, do botequim tripeiro, ressaltava ao olhar de todos, como uma nota smart, verdadeiramente aristocrática. Dir‑se‑ia que com ela desabrochara, na estufa friamente inestética do velho café da Civita Virginis, onde por via de regra se espanejavam, apenas, masculinas toilettes, de corte banal, indumentárias de incerta elegância, uma flor de boulevard parisino, supremamente requintada, smart.
Francisco Manuel Homem Cristo nasceu, a 5 de Março de 1892, em Lisboa, perto do Lumiar, na Quinta da Torre, propriedade de sua mãe D. Laura Amélia da Silva Cristo, onde seus pais viviam ao tempo. Dotado de inteligência muito precoce e de extrema vivacidade de espí­rito, o meu biografado distinguiu‑se, desde criança, como um estudante invulgar. Podia considerar‑se, mesmo, um menino prodígio. Assim, já aos seis anos lia e escrevia muito bem e não lhe eram estranhos uns rudimentos de gramática, história pátria, corografia, aritmética e ciências naturais. E, apenas com nove anos de idade, ainda de calçãozito e fatos infantis, entrou para o Liceu de Viseu, terra onde seu pai estava colocado nessa época, no regimento de Infantaria 14.
Para se poder matricular no ensino secundário, tornou‑se necessário a Francisco Homem Cristo obter, dada a sua diminuta idade, uma por­taria especial do Ministério de Instrução Pública.
Do Liceu visiense passou o moço e distintíssimo estudante para o de Coimbra, do qual foi expulso, salvo erro, por chefiar a greve acadé­mica daquele estabelecimento de ensino que secundou a da Universidade, provocada pela reprovação de José Eugênio Dias Ferreira, quando o jovem doutorado defendeu tese para lente da mesma Universidade. Homem Cristo, Filho, que estava, então, no 7.º ano do Liceu, terminou o seu curso secundário em Lisboa, matriculando‑se, em seguida, na Uni­versidade da Lusa‑Atenas, onde entrou, também por portaria especial, com dezasseis anos incompletos.
Em Coimbra, Homem Cristo, Filho, distinguiu‑se, brilhantemente, no meio académico, pelo seu feitio atrevido, inconformista, combativo cem por cento. Ardoroso paladino dos princípios republicanos, romantica­mente imbuído das ideias de emancipação social apregoada pelos apóstolos da Revolução Francesa, fundou ali o semanário A Verdade, de tendências acentuadamente jacobinas, onde publicou artigos de extrema violência contra alguns dos Professores da Universidade. Isso valeu‑lhe a expulsão daquele estabelecimento de ensino, logo no seu 1.º ano de Direito, em virtude de um complicado incidente com os lentes que o examinavam, durante o decorrer de um acto. O incidente em que o jovem estudante afirmou, galhardamente, o seu feitio revolucionário, rebelde a todas as sugestões e tutelas, foi considerado, apenas, como uma demonstração de indisciplina académica.
Terminaram, assim, por forma tão abrupta e sensacional os estudos oficiais do moço adaíl republicano. Isto por ao tempo não existir no País outra Faculdade de Direito, além da de Coimbra e Homem Cristo Filho não querer, teimosamente, seguir outro curso.
Escrevendo com rara espontaneidade e muito brilho, num estilo literário bastante pessoal, nervoso, vivo, ágil, fulgurante, sincopado, cor­tado às vezes por bruscos repelões de génio, inesperadas sacudidelas de elocução, o já talentoso plumitivo enveredou pelo jornalismo e começou a colaborar no diário A República, prestigiosa folha política, dirigida pelo Dr. António José de Almeida. Os seus editoriais nesse curioso matutino defendendo os Imortais Princípios de 89, atraíram a atenção dos meios cultos pelo vigor do estilo, pela limpidez da forma, pela sonoridade grave do seu ritmo.
De 1907 em diante, a vida de Homem Cristo, Filho, teve o seu quê de aventurosa. Tornou‑se numa galopada frenética, difícil de seguir e evocar. O seu irrequietismo político preocupou, então, a vida do regime. Foi acusado de anarquista, esteve sob a vigilância apertada da Polícia, até que teve de fugir de Portugal para o Brasil. E na própria tarde em que se recebeu, no Rio de Janeiro, a notícia do nefando regicídio de Fevereiro de 1908, Homem Cristo proferiu uma conferência para reve­lar os cordéis misteriosos do atentado, conferência que obteve largo sucesso de imprensa na capital brasileira. Regressou, logo a seguir, a Portugal.
Como escreveu um seu biógrafo, Homem Cristo como «quase todos os moços da sua época, sentia a dinamite rubra do anarquismo a correr‑lhe nas veias. A polícia vigia‑o. Fala‑se num complot contra o rei de Espanha onde Ferrer acaba de ser fuzilado nesse forte sinistro de Montjuich. Abandona pela segunda vez Portugal, corre para França, com uma curta paragem em Madrid. A policia espanhola tem‑no nas fichas com a designação de «anarquista perigoso». Em Paris, no Quai d'Orsay, é esperado por Octávio Mirbeau — o célebre romancista — que estreita, comovido, nos seus braços — o jovem estran­geiro, irmão nas ideias revolucionárias.»
Isto, logo após a proclamação da República no nosso pais, regime que ajudara a implantar com os seus escritos esbraseantes, mas que desi­ludido começou a atacar com rara violência e desassombro, na imprensa nacional. Repetia‑se com Homem Cristo o que acontecera com outro jornalista de raça, Cunha e Costa. Talvez que os motivos que levavam o moço plumitivo a essa reacção contra a República nascente, fossem aqueles que conduziram o notável advogado lisbonense aos mesmos trilhos de aberta e corajosa hostilidade à política desse tempo: «a verifica­ção de que todos os responsáveis pela consolidação e progressos do regime outra coisa não faziam do que atraiçoar, sucessivamente, a obra da propaganda republicana; o espectáculo triste exposto aos olhos de todos no palco da vida nacional, da turbulenta campanha contra os adesivos, revestida de feroz carácter demagógico; o divórcio insofis­mável entre a República e o País, convertido o regime no fomento dos interesses de uma casta fechada, de uma oligarquia, de um bando de dentes vorazes e muito alimento; a reincidência por parte dos governantes de todos os erros que haviam perdido a monarquia; a entrada do novo regime numa política estouvada e sectariamente anti‑religiosa que a consciência pública e a razão de Estado excluía; o conhecimento de que, ao provimento de todos os cargos da República, presidiu o arranjismo, cada qual tratando de anichar, com impudor nunca igualado pela monarquia, os parentes, amigos e aderentes; a constatação de que, fazendo tábua‑rasa dos elementares ditames do patrio­tismo, os governantes democráticos pretendiam escamotear, d`emblée, oito séculos de história, assinalando por nascimento, à nação, o dia 5 de Outubro de 1910.»
Transplantado dos horizontes frios e agitados de Madrid, para os horizontes mais sortílegos e estéticos da capital francesa, Homem Cristo, Filho, «começa imediatamente a insinuação subtil mas firme no meio parisiense. Trava relações... Consegue entrar nos jornais. O Éclair contrata‑o; o seu nome surge em vários magazines. É então que pla­neia uma grande revista, Cosmopolis, que deve ser feita em Paris, redigida em português e destinada ao Brasil. Segunda viagem ao Rio. Inauguração do monóculo que o deve estigmatizar; do monóculo que se fosse conhecido no tempo de Luís XIII teria sido aplicado à órbita de D`Artagnan. Banquetes a que assiste o próprio Presidente da Repú­blica. Volta a Paris — mas o plano fracassa... Intensifica a sua obra jornalística na imprensa francesa. Escreve no Intransigeant, no Journal e na Information» — assinalou‑o Reinaldo Ferreira, o talentoso jornalista.
Mercê da perseguição que lhe foi movida por João Chagas, nosso Ministro na Cidade‑Luz, o rude batalhador político de que me venho ocupando foi obrigado a abandonar a França. Já era tal, porém, a pro­jecção do nome de Homem Cristo na capital gaulesa (contava, apenas, vinte anos de idade) que a ordem governamental para a sua expulsão do território francês originou numerosos protestos, campanhas de imprensa, abaixo‑assinados dos mais destacados nomes do intelectualismo gaulês e até uma interpelação no próprio Parlamento.
Mercê desse movimento de solidariedade para com o nóvel quanto vigoroso publicista lusíada, a decisão a que me referi foi revogada e Homem Cristo pôde voltar a estabelecer em Paris, a sua tenda de jor­nalista‑diplomata.
Os franceses cultos admiravam‑no não só pelos fulgores do seu privilegiado talento mas, também, pelo encanto da sua convivência pessoal. Homem Cristo possuía, na verdade, autênticas qualidades de charme.
Posto em contacto com o doutrinarismo social de Georges Sorel, primeiro, e depois com o doutrinarismo político da Action Française, que então avassalava e surpreendia os meios intelectuais da velha Gália, o meu biografado sentiu, fortemente, a sua influência. De Portugal, através dos livros e das revistas de carácter contra‑revolucionário, che­gavam até ele, os ecos vibrantes do apostolado integralista! Foi rápida, meteórica, a sua evolução política. Talvez que, para ela, muito tivesse concorrido a convivência pessoal com Alberto de Monsaraz, um dos mais inteligentes, entusiásticos e sacrificados arautos do Integralismo Lusitano, cujo ideário ajudou a formar e a fortalecer, e que foi, em Paris, um dos mais dilectos e constantes companheiros do autor do Les Porte Flambeaux.
Como narrou, ainda, o nosso Reporter X, as suas relações parisien­ses tomaram, então, um novo rumo, uma directriz diferente. «Frequenta salões da vieille roche... Adere à monarquia... É baptizado na Igreja da Madalena pelo próprio bispo de Paris. Fala‑se que os par­tidários do antigo regime vão confiar‑lhe como que uma embaixada na capital da França. Vários marechais do partido têm ocasião de experimentar a sua actividade, a sua inteligência e a sua influência. Uma única hostilidade: a da ex‑rainha D. Amélia... Mas Homem Cristo acabará por vencê‑la num dos seus mais admiráveis golpes...
O nosso ministro em Itália é entrevistado pelo Popolo Romano e aprecia, em termos pouco lisonjeiros, a ex‑rainha de Portugal. Homem Cristo lê a entrevista e em acto contínuo envia dois telegra­mas: um ao dr. Eusébio Leão e outro ao director do jornal. Desafia‑os a ambos para um duelo de morte. Os telegramas são recebidos — mas os destinatários têm a imprudência de se rir do espadachim audaz... Mal fizeram... Quinze horas depois desembarcava Homem Cristo em Roma... Procura Eusébio Leão, que recusa bater‑se... O director do Popolo, escudado na atitude do diplomata, prefere entrar em acordos com o adversário. Publica‑lhe na primeira página o retrato, um artigo seu de desafronta à rainha — e compara‑o aos nobres e cavalheirescos gentilhomens de outrora — sempre prontos a floretear a espada em defesa da sua dama.»
Numas vagas acalmias da política portuguesa, que lhe permitiram o regresso ao seu país, Homem Cristo fundou e dirigiu em Lisboa, a ldeia Nacional, revista literário‑política, de acentuada feição anti‑democrática, e o jornal Restauração de carácter monárquico. Incompatibilizado por questões ideológicas com os realistas‑constitucionais portugueses, regressou de novo a Paris, onde se manteve até ao triunfo da revolução de 28 de Maio de 1926, chefiada pelo General Gomes da Costa.
Durante o consulado de Sidónio Pais, que tanto admirou e sobre quem escreveu um estudo magistral, o meu evocado foi, na Cidade‑Luz, o verdadeiro embaixador do nosso país.
Mal soube em Paris da arrancada Gloriosa do Exército e da instau­ração entre nós de uma Ditadura Militar, Homem Cristo Filho fez as malas e abalou para Lisboa. Foi então que fundou, na capital, o diário Informação, modelo perfeito no género, uma amostra inédita, entre nós, do jornalismo europeu. Esse diário foi posto ao serviço da situação polí­tica nascente, de que foi partidário fervoroso.
Em virtude da publicação de um artigo de crítica ao Ministro Sinel de Cordes, inserto no referido vespertino, eis de novo expulso de Portugal um dos mais garbosos, gentis e brilhantes jornalistas lusíadas da sua geração.
Em Paris fundou e dirigiu a Chez‑Fast, casa editora e simultanea­mente casa de chá. Nela se realizavam as reuniões dos Amis des Lettres Françaises, onde se agrupavam os maiores nomes do intelectualismo, da política, da ciência, da arte, da aristocracia, da finança, do exército franceses.
Por 1926, foi Homem Cristo eleito Presidente da Associação da Imprensa Estrangeira de Paris, terra em que estavam, nessa época dis­tante, os mais notáveis correspondentes dos mais importantes jornais do mundo. Tinha trinta e quatro anos.
Homem Cristo, Filho, falava e escrevia francês como um francês culto, e nessa língua publicou cinco belos livros: Le Portugal contre l`Alemagne, em 1918; Le Cinéma des Jours, em 1918; Les Porte‑Flam­beaux, em 1920; Mussolini, Batisseur de l`Avenir, em 1923, e Le Parc du Mystére, de colaboração com Madame Rachilde, em 1924.
Figura mental de cimeiras altitudes, nacionalista e contra-revolucionário convicto e apaixonado, o escritor lusitano morreu em 12 de Junho de 1928, às portas de Roma, de um estúpido desastre de automóvel. Ia ter uma conferência com o Duce, que tinha por ele extraordinária estima e admiração, sobre a organização do Congresso das Nações do Ocidente, a realizar na capital italiana. Devia partir para o Brasil, Argentina e outros países da América, fazer a propaganda do Bloco das Raças Latinas, que foi o seu grande sonho. Que vida tão curta, para glória tão alta!
Em Itália foram-lhe prestadas, pelo Fascismo, honras de Príncipe, no funeral mandado fazer por Mussolini, e os seus restos mortais repousam em Roma, no ajardinado cemitério de S. Lourenço, num pequeno monumento que, sob o signo do Litório, o mesmo estadista lhe mandou erigir e onde pode ler-se o epitáfio seguinte, que ele próprio quis compor:
A FRANCESCO DE HOMEM CHRISTO
SCRITTORE
PORTUGHESE DE ORIGINE
CITTADINO DE ROMA NELLO SPIRITO E NELLA FEDE
Evocando o glorioso artista das letras, tenho-o diante dos meus pupilares inquietos, tal como o vi, em carne e osso, há mais de trinta e cinco anos. Recordo o seu vulto enlaçado de dândi, esguio como um álamo; a sua face glabra, onde a energia se espelhava em linhas fortes de estatuária; o seu monóculo atrevido, entalado atrevidamente na órbita funda; o seu sorriso blasé. Recordo o seu rosto de homem feito, com os músculos faciais numa contínua contracção; os dentes cerrados e os lábios entreabertos. Como muito bem registou o admirável jornalista Reinaldo Ferreira que muito de perto o conheceu, surdia dele, «como que um fluído de energia que o impunha, que o destacava, que dominava os espíritos mais fortes — os espíritos melhor preparados para antipatizarem com ele...»
Cláudio Correia d`Oliveira Guimarães
(in «Gil Vicente», n.º 11/12, Novembro/Dezembro de 1956, vol. 7, págs. 165/171)

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