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quarta-feira, abril 06, 2005

FASCISMO E TRADIÇÃO 

No artigo que Mussolini escreveu, para a Enciclopédia Italiana, declara-se: «O Fascismo é uma concepção religiosa que considera o homem na sua relação sublime com uma lei superior, com uma Vontade objectiva que ultrapassa o indivíduo como tal e o eleva à dignidade de membro consciente de uma sociedade espiritual.
...O Fascismo é não só um sistema de Governo, mas também, e antes de tudo, um sistema de pensamento.
»
Estas ideias estão verdadeiramente aparentadas com a sabedoria ou ciência «tradicional» que se exprime no próprio cerne do Esoterismo. Não há absoluta coincidência, mas uma inspiração muito semelhante; e, por isso, convém registar alguns passos da exposição de um dos mestres que prolongam a linha da tradição. No volume Autorité Spirituelle et Pouvoir Temporel, René Guénon esclarece: «São os princípios que são, pode dizer-se, de uma actualidade permanente porque estão fora do tempo; e, mesmo que saiamos do domínio da metafísica pura, para encarar certas aplicações, fazêmo-lo sempre de tal modo que essas aplicações conservem um alcance completamente geral.
...Seria necessário distinguir, antes de tudo, a questão de princípio e a questão de oportunidade: sobre a primeira, não há que discutir, porque se trata de coisas pertencendo a um domínio que não pode estar submetido aos processos essencialmente profanos da discussão; e, quanto à segunda, que é só de ordem política e, por assim dizer, diplomática, é em todo o caso muito secundária, e mesmo, rigorosamente, não deve contar enquanto à questão de princípio
». Mais adiante, Guénon explica que a sua exposição tem «um alcance que ultrapassa todas as formas particulares que o poder temporal e mesmo a autoridade espiritual podem revestir, conforme os tempos e os lugares».
Se, no entanto, esse alcance ou significado, se o espírito tradicional ultrapassa as formas particulares, o poder temporal e a autoridade espiritual, não lhes está necessariamente alheio. Quando estes sejam certos e válidos, e nessa medida, só os ultrapassa porque lhes é anterior, superior e interior. Transcende-os, não se esgota neles, nem se limita a um deles, mas inspira-os e foi-lhes fonte e modelo. Verifica-se que, em épocas muito diversas da História e mesmo para além do que se convencionou chamar tempos históricos, existiu «frequente oposição entre os representantes dos dois poderes, um espiritual e outro temporal», mas «na origem, os dois poderes de que se trata não devem ter existido no estado de funções separadas, exercidas respectivamente por individualidades diferentes; deviam, pelo contrário, estar contidos, um e outro, no princípio comum de que ambos procedem e de que se limitavam a representar dois aspectos indivisíveis, indissoluvelmente ligados na unidade de uma síntese ao mesmo tempo superior e anterior à sua distinção». Nesse tempo, todos os homens possuíam um grau espiritual muito elevado. Mas uma decadência, um golpe atingiu a natureza humana. E, assim, os homens, diminuídos na sua espiritualidade, repartiram-se conforme o grau em que, ainda, a realizam. Desde então, e por isso temos de respeitar essa diferenciação, «a diferença de natureza que existe entre os indivíduos humanos e que estabelece entre eles uma hierarquia cujo desconhecimento só pode trazer a desordem e a confusão». À diferença de natureza «deve corresponder a repartição das funções sociais».
As diferentes funções, como a distinção entre poder temporal e poder espiritual, resultam, pois, de diferentes naturezas, e estas resultam da ruptura da unidade primitiva, seguem-se logo, a ela. Nessa segunda fase (hoje perdida também) e nalguns períodos posteriores, talvez, existiu entre poder temporal e poder espiritual, como entre todas as funções sociais atribuídas a diferentes grupos de indivíduos, «uma perfeita harmonia, pela qual a unidade primeira era mantida quanto o permitiam as condições na sua nova fase, porque a harmonia é, apenas, um reflexo ou uma imagem da verdadeira unidade». A degradação foi, porém, processando-se, através de quatro idades.
Guénon faz a distinção entre poder e autoridade. Considera o primeiro ligado à «ideia de poderio ou força e, especialmente de força material, dum poderio que se manifesta visivelmente no exterior e se afirma pelo emprego de meios externos»; esse é o poder temporal. «A autoridade espiritual, interior por essência, afirma-se apenas por ela mesma, independentemente de qualquer apoio sensível e exerce-se de algum modo, invisivelmente; ...trata-se, pois, de um poderio completamente intelectual».
«A função real que compreende tudo o que, na ordem social, constitui o governo propriamente dito, ...e é, de algum modo, dupla: administrativa e judiciosa, por um lado, militar, por outro, porque deve assegurar a manutenção da ordem, ao mesmo tempo dentro, como função reguladora e equilibradora, e fora, como função protectora da organização social».
A função sacerdotal consiste, essencialmente, na «conservação e transmissão da doutrina tradicional em que toda a organização social regular encontra os seus princípios fundamentais; esta função, aliás, é, evidentemente distinta de todas as formas especiais que a doutrina pode revestir para se adaptar, na sua expressão, às condições particulares de um dado povo ou de uma dada época». «O que possui, propriamente, o carácter sagrado é a doutrina tradicional e o que lhe diz respeito directamente, e esta doutrina não toma, necessariamente, a forma religiosa; sagrado e religioso não se equivalem, pois, e o primeiro destes termos é bastante mais extenso do que o segundo; se a religião faz parte do domínio sagrado, este compreende elementos e modalidades que não têm absolutamente nada de religioso». Assim, para Guénon, a religião é uma forma especial de doutrina, uma expressão devida a condições particulares.
Guénon faz, ainda, a distinção entre acção e conhecimento, embora admita que aquela receba deste a inspiração. No entanto, afirma que «os homens feitos para a acção não são feitos para o puro conhecimento, e, numa sociedade constituída em bases verdadeiramente tradicionais, cada qual deve preencher a função para a qual está realmente qualificado, de outro modo, tudo será, apenas, confusão e desordem». Ora a acção pertence ao poder temporal. Esta afirmação de Guénon rectifica-a ele, ao defender que o homem de acção deve possuir «um conhecimento por participação» e que, como ensina Confúcio, o governante deve atingir uma vontade perfeita, para bem governar os seus estados e, assim, «fazer brilhar as virtudes naturais no coração de todos os homens».
Estas ideias de Guénon formam um núcleo essencial no pensamento da Tradição e, por isso, as registamos. É a altura de as comparar com o Fascismo.
Mussolini afirma o Fascismo como prática e pensamento («É uma acção animada por uma doutrina»). Afirma-o como Filosofia, concepção da vida, da realidade e das suas leis. Para Mussolini, o Fascismo é universalidade em expressão («O Fascismo tem, doravante, no mundo inteiro, a universalidade que têm todas as doutrinas que realizando-se representam uma época na história do espírito humano»). Proclama: «O Fascismo responde hoje às exigências de carácter universal»; e considera que a Europa resolverá «num sentido fascista o problema do Estado moderno, do Estado do século XX, bem diferente dos Estados que existiam antes de 1789 ou que se formaram a seguir». Para o Duce, «não se pode agir espiritualmente sobre o mundo, como vontade dominante de outras vontades, sem uma concepção da realidade passageira e particular sobre a qual temos de agir, e dessa outra realidade permanente e universal à qual a primeira vai buscar o seu ser e a sua vida». Se aproximarmos estas declarações do que citámos no início deste artigo, entenderemos como, afinal, Mussolini pretende situar-se na esfera da progressiva recuperação da unidade inicial.
O centro da concepção fascista é, pois, uma actividade alquímica, transformadora, pela graduação nas fases da Obra, pela graduação, nos indivíduos, da realização espiritual, por uma espécie de processo iniciático. Além disso, a mesma concepção totalitária do espírito, onde se integra a natureza, faz com que, sem desconhecer o real, a vida e a matéria, tudo seja espiritualmente transcendido.
Estas linhas gerais conduzem ao mesmo sentido hierárquico e religioso, onde o profano é animado pelo sagrado. Mas, aqui, o religioso não significa para Mussolini algo que esteja submetido ao temporal, antes se representa como a própria respiração do temporal. Assim, compreende-se que o Fascismo não pretenda competir com as religiões, nem dominá-las, embora preze, distinga e requeira o Catolicismo, declaradamente; o Fascismo existe em religiosidade, como uma outra expressão do sagrado.
João de Albuquerque
(In «Agora», n.º 329, 04.11.1967, pág. 4)

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