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domingo, abril 24, 2005

O PREC EM FLASH-BACK OU A REVOLUÇÃO DO MAU HÁLITO 

Volto hoje a valer-me de alguns trechos do diário, para alimentar com eles a combustão desta rubrica.
28 de Abril de 1974 — «Sabem o que é a vergonha de acordar com a vergonha de estar vivo?...», pergunta, de lá, o Brito, (São dele, as palavras; mas o estado de espírito que traduzem é comum a mais uns tantos. Feliz ou infelizmente, sou um desses).
Esfrego muito os olhos, à medida que vou dando fé de mim, e qual não é o meu espanto quando os abro, bem esbugalhados, e por eles me inteiro do pânico desvairamento que me cerca; quero eu dizer: do desatino rilhafolesco que acometeu esta gente e tomou conta desta terra, de um dia para o outro.
Arregalo a vista — e, concretamente, o que vejo eu?
Vejo tudo-minha-gente a trepar às árvores. (Às árvores genealógicas, bem entendido.) Tudo a amarinhar e a subir velozmente por elas acima!...
Sintetizando, o fenómeno é este: estala a abrilada; automaticamente, cada um pega em si, vai-se direitinho à árvore genealógica respectiva e desatar a saltar, de galho para galho, no meio da mesma —, à cata de algum remoto antepassado que lá durma, empoleirado, o sono dos justos, e a quem tenha saído a sorte grande de ter sido perseguido e mais ou menos mal tratado pela P.I.D.E.-D.G.S., durante a longa noite terciária (torcionária, ou lá o que é...).
Compreende-se tamanho e tão frenético afã da parte da turba: é que um parente assim, nas condições já descritas — e mesmo bastante afastado que seja —, pode revelar-se, nos dias que correm, de extrema utilidade para os seus descendentes. Como tal, constitui ele um bem precioso — se não providencial... —, que importa exumar, exibir e pôr a render o mais temprano possível. Logo, há toda a vantagem, daqui por diante, em cada qual andar munido de um exemplar de família desses, já que é a credencial antifascista de mais peso que alguém pode hoje apresentar publicamente, e talvez a única susceptível de avalizar os respectivos portadores como «democrata-de-sempre» (ou coisa que o valha...) e de os acreditar, nessa qualidade — nessa falta de qualidade, digo — junto dos mais incrédulos quadrilheiros de Abril.
20 de Maio — Como estivesse em maré de confidências, às tantas fiz-lhe esta:
- Adoro ocupar-me de democratas.
- Pode saber-se a que título?...
- A título póstumo, homem! A título póstumo. Que pergunta a tua!...
15 de Julho — ... E por democratas. Os democratas desta terra, das duas uma: ou bem que andam todos a morrer ao desafio ou então trazem andaço com eles. Não sei que moléstia lhes deu, que se estão a apagar a eito...
Ontem lá quinou mais outro; e também ele, de alegria — ao que rezam as crónicas. (É uma alegria, que na verdade conforta, vê-los assim tão alegretes, na hora de abalar!...) Em todo o caso, o júbilo eventualmente experimentado por este, não deixa de causar-me alguma estranheza; e tão intrigado me traz, que, em relação a isso, aqui lavro desde já a uma moção de desconfiança.
É que, ao longo da vida, o distintíssimo extinto, tanto quanto sei, foi sempre um sujeito muito mau de assoar — em todos os sentidos: não apenas no sentido figurado da expressão, como, inclusivamente, no seu sentido mais concreto. Usava e abusava das trompas nasais, que não era brinquedo!.. E tão categoricamente se assoou até ao fim, com tal convicção pôs e dispôs do seu democrático nariz, com tanto estrépito e tamanho estrondo continuou a servir-se dele, que, antes de ontem, ao meter as narinas onde elas a cada passo eram chamadas a explicar-se, caiu desfalecido, de lenço nas ventas, como era de esperar, e lá rendeu a alma ao Criador — por via nasal!
Das fossas nasais ao fosso da morte, ao menos para ele o trajecto foi curto.
26 de Julho — Que Deus-Pai me perdoe o desabafo (e acho que sim, que perdoará, porquanto o Seu fair-play não tem limites...) mas confesso que não só me custa imenso admitir — como cada vez duvido mais — que Cristo possa exprimir-se pela boca, ou a acção, de certos padres...
O reverendo padre fulano-de-tal é hoje por hoje, uma figura política particularmente em foco, não sei por que artes ou artimanhas do diabo.
Tudo o que sei — e isso, sim, de ciência certa — é que lhe fui apresentado em tempos.
Cheguei ao conhecimento com ele, não me lembro bem em que circunstâncias e muito menos recordo por intermédio de quem. Mas lá que já um dia passei pelo vexame de com ele trocar dois dedos de conversa — lá disso, estou eu tão ciente e seguro, como de o ter, ainda agora, entrevisto na televisão, onde aliás vem surgindo com frequência imoderada.
E o caso é que tão depressa o tirei, há pouco, pelas imagens, tão prontamente e sem demora o identifiquei e reconheci através delas — que o tal remoto fortuito contacto que outrora tivemos, de imediato emergiu «das brumas da memória», adquiriu desde logo inesperada nitidez e, como por encanto, ganhou contornos bastante precisos.
E agora, sim: boa ideia vou tendo de que, já naquela altura, ele era um sacerdote extremamente fogoso. (Achei-o logo fogoso de mais, devo dizer; mesmo para progressista...) E então para padre, estava simplesmente irreconhecível (cabeção: que é dele? Batina: qual quê? Sotaina: viste-la!... Tonsura: onde isso vai!...).
Mais: tinha todo o ar de não acreditar excessivamente em Deus e pareceu-me muito pouco tolerante com os católicos.
Apesar de tudo, passava por ser uma das colunas do Templo.
E, de facto, era: era a quinta coluna.
Agora se viu...
29 de Agosto — Os tão celebrados cravos vermelhos, que em seu dia deram um toque de janotismo floral — e de incrível piroseira — às lapelas da Revolução, já hoje rescendem a morte que tresanda!...
Por outras palavrinhas, dir-se-á que a hora embriagante dos cravos — como era, aliás, de prever — depressa cedeu o passo à dos crisântemos. Mormente no Ultramar...
E: ou amplamente eu me engano, ou ainda para aí termina tudo num grande arraial... Já se sabe de quê. De criar bicho!
30 de Setembro — Decididamente, não há nada mais monótono que o monólogo de um monóculo. Irra!
... Quanto ao indivíduo com óculos, que doravante sucede ao do monóculo, bastará dizer que, em matéria de traições à Pátria, é o que se chama um veterano: tem estado em todas! E quanto mais trai, mais avulta!...
2 de Outubro — Agora, em Portugal, é assim: um cidadão adormece, à noite, em sua casa — e acorda em Caxias, no dia seguinte, sem saber como nem porquê.
6 de Outubro — Começa a ficar lindamente provado e comprovado que as portas prisionais do marxismo em liberdade ou dão directamente para Caxias, e para outras pousadas congéneres, ou se abrem rasgadamente para o exílio. (— Será legítimo, ou sequer admissível, que alguém, ainda agora, se dê ao luxo de alimentar dúvidas a esse respeito? Ou estes últimos dias não terão sido suficientemente concludentes e instrutivos?!...)
Em Caxias, à hora que escrevo (escondidinho, claro está), é um ver-se-te-avias que mete impressão! O número de pessoas lá encafuado, já agora ascende a largos milhares. (O que quer dizer que o pessoal penitenciário não tem tido mãos a medir, na sua tarefa de receber reféns.)
Varrer homens (de-bem!) para dentro das celas de reclusão, é uma ocupação que — de momento, pelo menos — não conhece nem consente qualquer pausa. Há mais de oito dias consecutivos que não se faz por cá outra coisa, senão malhar com os ossos na cadeia — ou cavar clandestinamente para Espanha... E o que é facto é que tanto os portões dos presídios como as veredas do êxodo, longe de perderem o apetite, continuam a mostrar-se esfomeadinhos de todo (assim haja gente que lhes mate a fome!...) e positivamente insaciáveis — não cessando de abocanhar, digamos, e de sorver, com uma gula devoradora, sucessivas levas de perseguidos. Ou antes: não parando de dar sumiço a portugueses e mais portugueses — precisamente acusados de o serem!
Daí que o recinto prisional de Caxias registe, a estas horas, repito, não apenas um movimento desusado, mas a sua maior enchente de sempre; e, sobretudo, uma afluência record de figuras de prestígio, de pessoas decentes, de gente grada, em suma.
Não. Não há memória, frise-se bem, de Caxias ter estado, alguma vez, tão concorrida — e tão bem frequentada, socialmente — como agora. Tendo entretanto em conta toda a enorme quantidade de gente que lá tem ido (e continua a ir) parar, dir-se-ia — e já disso me começo a convencer — que a afável mansão da Costa do Sol, em termos de arrecadação humana, é um pouco como certos esconderijos: quanto mais gente se lá mete, mais gente lá cabe.

Rodrigo Emílio
(In A Rua, n.º 139, pág. 10, 08.02.1979)

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