segunda-feira, maio 30, 2005
AMÂNDIO CÉSAR
Pouco a pouco a solidão me vai rodeando e uma cortina de isolamento lentamente me cerca. Um a um desaparecem amigos de sempre, impiedosamente ceifados pela morte.
Não há muitos dias chegou até mim, de chofre a notícia do falecimento de Amândio César. Desceu sobre o meu ânimo um espesso sentimento de melancolia, ao passo que, simultaneamente, um turbilhão de imagens me afluía à mente.
Vi-me em Coimbra, primeirista de Direito, bisonho e tímido, entrando na Brasileira. Monárquico então (e monárquico continuo a ser, mas monárquico a sério, e não monárquico-democrático à P. P. M. ou à «Nova Monarquia»), sentava-me junto dos correligionários mais velhos que, caridosamente, me iniciavam no mundo dos boatos, da má língua e das querelas das ideias. Um pouco mais adiante, estava a mesa dos intelectuais que eu contemplava com invejoso respeito. Entre eles destacava-se Amândio César cuja voz tonitruante chegava até nós. Foi o meu primeiro contacto com ele, indirecto e à distância.
Não tardou, todavia, que Amândio César, por vezes, abancasse connosco e eu tivesse ocasião de apreciar a sua imensa vitalidade, a sua truculência, o seu humorismo irreverente. Claro que não fraternizámos logo. Eu retraía-me, acanhado, perante quem já tinha livros publicados, conhecia pessoalmente escritores e artistas de nomeada e proferia juízos acertados sobre individualidades a quem eu, na minha ingenuidade, admirava ainda. Mas, insensivelmente, fomo-nos aproximando. Amândio César, com a sua espontânea simpatia por quem começava, encarou com benevolência as minhas primeiras tentativas doutrinárias (que acabaram por me conduzir à filosofia), eu principiei a experimentar a fascinação da sua personalidade excepcional, espécie de força da natureza, sempre em ebulição e desconhecedora de respeitos humanos.
Uma grande admiração nos era comum — a admiração por Alfredo Pimenta. Ambos aguardávamos, com impaciência, os seus últimos volumes e opúsculos e Amândio César, que se correspondia com o Mestre, dava-me notícia dos projectos e opiniões deste.
À recordação de Alfredo Pimenta nos mantivemos ambos fiéis, tendo Amândio César consagrado valiosos trabalhos à obra do historiador de "Idade Média".
E quando no centenário do seu nascimento se promoveu, no Colégio Pio XII, em Lisboa, uma modesta sessão de homenagem à memória de Alfredo Pimenta, lá nos encontramos, de novo, Amândio César e eu, lado a lado, juntamente com Caetano Beirão, Goulart Nogueira, Couto Viana, Rodrigo Emílio, mostrando, pela nossa presença, que «nem nos esquecíamos, nem nos arrependíamos».
Nos nossos tempos de estudante, tão longínquos, acompanhávamos, na mesma trincheira, com entusiasmo e calor, as polémicas veementes contra os pseudo-monárquicos do "Diário Nacional" ou os furiosos ataques, de estilo camiliano, que o ensaísta de "O Imperialismo Contemporâneo" desferia sobre a «Academia Portuguesa de História».
Até que chegou o final dos cursos. O convívio quase constante, as longas peregrinações da baixa para a alta, pelas ruas desertas na madrugada, falando de omne re scibili, tomaram termo definitivo. Regressei ao Porto. Amândio César, após uns anos em Braga, fixou-se definitivamente em Lisboa. Mergulhou aí na agitação do jornalismo sem deixar de cultivar afincadamente a poesia, o conto, a crítica. Para o julgar, nesse plano, não tenho qualquer espécie de autoridade. Aí sou o simples leitor comum. E como leitor comum apreciava grandemente Amândio César, pensando que só não recebeu o incenso e a mirra dedicados a outros, de muito menos valor, por não ser um homem de esquerda, um progressista inflamado. A meu gosto, merecem destaque especial os estudos consagrados à literatura brasileira, que mostram amplos conhecimentos e por momentos análises delicadas e agudas.
Nem sempre partilhei as posições de Amândio César, ou participei do seu entusiasmo por certos personagens. Os nossos interesses fundamentais, de resto, eram bastante diferenciados: ele primordialmente entregue às letras e eu, no meu canto, procurando sulcar os trilhos da especulação.
Respeitámo-nos, sempre, porém, e a nossa estima mútua nunca diminuiu. Aliás, nos grandes momentos, Amândio César não deixava de vir a terreiro com atitudes desassombradas e dignificantes.
Assim sucedeu por altura da guerra em defesa da soberania portuguesa no Ultramar, a propósito da qual ele nos legou dois livros — um consagrado a Angola e outro à Guiné — com páginas magníficas que são o espelho de um firme nacionalista, ou seja, de um patriota de raiz.
E na grande catástrofe de Abril, Amândio César recusou-se a partilhar o banquete nauseabundo, sofrendo perseguições e agruras.
Na noite de 27 para 28 de Setembro de 1974, juntamente com Ruy Alvim, foi assaltado, ao atravessar a ponte sobre o Mondego, pelos delinquentes das barricadas que por meios violentos se procuravam opor à realização de uma manifestação, legalmente autorizada, ao Chefe de Estado, general Spínola. Este era um democrata e um abandonista de primeira água, mas assacavam-lhe, ao que parece, o terrível defeito de querer entregar as províncias ultramarinas de além-mar à influência americana e não à influência soviética (ao que havíamos chegado). Daí que não tivesse direito a manifestações que firmassem a sua quebrantada autoridade. Amândio César e Ruy Alvim (e uma criança filha deste) seguiam ambos para Lisboa perfeitamente alheios à apoteose spinolista. Reconhecidos e identificados, foram detidos por uma multidão à margem da lei e só por muita sorte conseguiram escapar.
Ao fim da manhã de 28 chegaram a minha casa, Amândio incólume graças a Deus, Ruy Alvim com pensos e adesivos, seu filho, que fora traiçoeiramente separado do pai para ser «interrogado», nervosíssimo, aos vómitos, tendo de ingerir comprimidos de Valium. Contaram-me os acontecimentos, ao mesmo tempo, que nos iam chegando notícias das arbitrárias prisões de velhos e queridos camaradas.
Amândio César e Ruy Alvim seguiram para Braga. Nessa noite transpuseram o Minho a caminho do exílio.
Amândio, primeiro, esteve em Espanha, donde me escreveu uma pungente carta de despedida, ao resolver partir para o Brasil. Não lhe foi este propício, infelizmente, pelo que teve de regressar, após o 25 de Novembro.
Na chegada ofereci-lhe um exemplar dos meus "Diálogos de Doutrina Anti-Democrática", que eu pusera à venda em pleno gonçalvismo.
Amândio César, em agradecimento, enviou-me um poema que me era dedicado, e que conservo com orgulho.
Fomo-nos encontrando cada vez mais raramente, afastados pelos afazeres prementes da luta pela sobrevivência, no mar de lama (para não lhe chamar outra coisa) em que a sublevação dos cravos precipitou esta terra que outrora foi uma nação.
Estivemos no primeiro almoço celebrando o início da Revolução Nacional, a 28 de Maio, e no jantar em idêntica data do ano seguinte, num e noutro tendo Amândio César proferido extraordinários discursos.
E, como já disse, participámos nas comemorações do centenário do nascimento de Alfredo Pimenta.
De longe a longe, trocávamos correspondência (sou muito preguiçoso em epistolografia). Até que, de repente, veio a doença que o vitimou e lhe diminuiu consideravelmente as capacidades. Visitei-o nas minhas rápidas e sobrecarregadas idas à capital numa única ocasião. Pesa-me na consciência não lhe ter aparecido com maior assiduidade, mas surgiam sempre contratempos nas deslocações a Lisboa que me impediam de o fazer. Mas já não há próxima vez, porque o irreparável deu-se.
Com Amândio César, foi como se tivesse desaparecido uma parte de mim mesmo, uma parte da minha juventude, daquilo que fui nos anos de 45, quando me sentava nos bancos da velha universidade coimbrã, sonhando com um Portugal renovado pela ampliação e aprofundamento do que de mais válido tinha o Estado Novo, e uma Europa ressurgida e heróica afastada dos miasmas torpes do demo-liberalismo e do marxismo.
À sua maneira, Amândio César comungou nestes sonhos e, sobretudo, nunca os traiu. Dos que nos acompanhavam, uns tantos iniciaram uma curiosa evolução que acabou por os conduzir a tombar nos braços dos vencedores, integrando-se nos corrilhos, nos partidos, nas Assembleias legislativas do regime abjecto que destruiu a Pátria. Outros mantiveram-se iguais a si próprios e, chegados ao ocaso da vida, recebem o prémio de ter vergonha na cara e não alinhar no cortejo dos adoradores do Sol Nascente; as campanhas de silêncio, a obscuridade, os vexames ou tentativas de vexame (porque não vexa quem quer) e as dificuldades financeiras. Amândio César alinhou entre os últimos e eis porque as trombetas da fama não o celebram com fervor no instante do seu falecimento, como acontece a qualquer medíocre abrilino que vai a enterrar.
Em compensação, pode escrever-se no seu túmulo o epitáfio de que raros, hoje, são dignos: «foi sempre um bom português».
António José de Brito
(In «O Diabo», 18.08.1987, pág. 12)
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Não há muitos dias chegou até mim, de chofre a notícia do falecimento de Amândio César. Desceu sobre o meu ânimo um espesso sentimento de melancolia, ao passo que, simultaneamente, um turbilhão de imagens me afluía à mente.
Vi-me em Coimbra, primeirista de Direito, bisonho e tímido, entrando na Brasileira. Monárquico então (e monárquico continuo a ser, mas monárquico a sério, e não monárquico-democrático à P. P. M. ou à «Nova Monarquia»), sentava-me junto dos correligionários mais velhos que, caridosamente, me iniciavam no mundo dos boatos, da má língua e das querelas das ideias. Um pouco mais adiante, estava a mesa dos intelectuais que eu contemplava com invejoso respeito. Entre eles destacava-se Amândio César cuja voz tonitruante chegava até nós. Foi o meu primeiro contacto com ele, indirecto e à distância.
Não tardou, todavia, que Amândio César, por vezes, abancasse connosco e eu tivesse ocasião de apreciar a sua imensa vitalidade, a sua truculência, o seu humorismo irreverente. Claro que não fraternizámos logo. Eu retraía-me, acanhado, perante quem já tinha livros publicados, conhecia pessoalmente escritores e artistas de nomeada e proferia juízos acertados sobre individualidades a quem eu, na minha ingenuidade, admirava ainda. Mas, insensivelmente, fomo-nos aproximando. Amândio César, com a sua espontânea simpatia por quem começava, encarou com benevolência as minhas primeiras tentativas doutrinárias (que acabaram por me conduzir à filosofia), eu principiei a experimentar a fascinação da sua personalidade excepcional, espécie de força da natureza, sempre em ebulição e desconhecedora de respeitos humanos.
Uma grande admiração nos era comum — a admiração por Alfredo Pimenta. Ambos aguardávamos, com impaciência, os seus últimos volumes e opúsculos e Amândio César, que se correspondia com o Mestre, dava-me notícia dos projectos e opiniões deste.
À recordação de Alfredo Pimenta nos mantivemos ambos fiéis, tendo Amândio César consagrado valiosos trabalhos à obra do historiador de "Idade Média".
E quando no centenário do seu nascimento se promoveu, no Colégio Pio XII, em Lisboa, uma modesta sessão de homenagem à memória de Alfredo Pimenta, lá nos encontramos, de novo, Amândio César e eu, lado a lado, juntamente com Caetano Beirão, Goulart Nogueira, Couto Viana, Rodrigo Emílio, mostrando, pela nossa presença, que «nem nos esquecíamos, nem nos arrependíamos».
Nos nossos tempos de estudante, tão longínquos, acompanhávamos, na mesma trincheira, com entusiasmo e calor, as polémicas veementes contra os pseudo-monárquicos do "Diário Nacional" ou os furiosos ataques, de estilo camiliano, que o ensaísta de "O Imperialismo Contemporâneo" desferia sobre a «Academia Portuguesa de História».
Até que chegou o final dos cursos. O convívio quase constante, as longas peregrinações da baixa para a alta, pelas ruas desertas na madrugada, falando de omne re scibili, tomaram termo definitivo. Regressei ao Porto. Amândio César, após uns anos em Braga, fixou-se definitivamente em Lisboa. Mergulhou aí na agitação do jornalismo sem deixar de cultivar afincadamente a poesia, o conto, a crítica. Para o julgar, nesse plano, não tenho qualquer espécie de autoridade. Aí sou o simples leitor comum. E como leitor comum apreciava grandemente Amândio César, pensando que só não recebeu o incenso e a mirra dedicados a outros, de muito menos valor, por não ser um homem de esquerda, um progressista inflamado. A meu gosto, merecem destaque especial os estudos consagrados à literatura brasileira, que mostram amplos conhecimentos e por momentos análises delicadas e agudas.
Nem sempre partilhei as posições de Amândio César, ou participei do seu entusiasmo por certos personagens. Os nossos interesses fundamentais, de resto, eram bastante diferenciados: ele primordialmente entregue às letras e eu, no meu canto, procurando sulcar os trilhos da especulação.
Respeitámo-nos, sempre, porém, e a nossa estima mútua nunca diminuiu. Aliás, nos grandes momentos, Amândio César não deixava de vir a terreiro com atitudes desassombradas e dignificantes.
Assim sucedeu por altura da guerra em defesa da soberania portuguesa no Ultramar, a propósito da qual ele nos legou dois livros — um consagrado a Angola e outro à Guiné — com páginas magníficas que são o espelho de um firme nacionalista, ou seja, de um patriota de raiz.
E na grande catástrofe de Abril, Amândio César recusou-se a partilhar o banquete nauseabundo, sofrendo perseguições e agruras.
Na noite de 27 para 28 de Setembro de 1974, juntamente com Ruy Alvim, foi assaltado, ao atravessar a ponte sobre o Mondego, pelos delinquentes das barricadas que por meios violentos se procuravam opor à realização de uma manifestação, legalmente autorizada, ao Chefe de Estado, general Spínola. Este era um democrata e um abandonista de primeira água, mas assacavam-lhe, ao que parece, o terrível defeito de querer entregar as províncias ultramarinas de além-mar à influência americana e não à influência soviética (ao que havíamos chegado). Daí que não tivesse direito a manifestações que firmassem a sua quebrantada autoridade. Amândio César e Ruy Alvim (e uma criança filha deste) seguiam ambos para Lisboa perfeitamente alheios à apoteose spinolista. Reconhecidos e identificados, foram detidos por uma multidão à margem da lei e só por muita sorte conseguiram escapar.
Ao fim da manhã de 28 chegaram a minha casa, Amândio incólume graças a Deus, Ruy Alvim com pensos e adesivos, seu filho, que fora traiçoeiramente separado do pai para ser «interrogado», nervosíssimo, aos vómitos, tendo de ingerir comprimidos de Valium. Contaram-me os acontecimentos, ao mesmo tempo, que nos iam chegando notícias das arbitrárias prisões de velhos e queridos camaradas.
Amândio César e Ruy Alvim seguiram para Braga. Nessa noite transpuseram o Minho a caminho do exílio.
Amândio, primeiro, esteve em Espanha, donde me escreveu uma pungente carta de despedida, ao resolver partir para o Brasil. Não lhe foi este propício, infelizmente, pelo que teve de regressar, após o 25 de Novembro.
Na chegada ofereci-lhe um exemplar dos meus "Diálogos de Doutrina Anti-Democrática", que eu pusera à venda em pleno gonçalvismo.
Amândio César, em agradecimento, enviou-me um poema que me era dedicado, e que conservo com orgulho.
Fomo-nos encontrando cada vez mais raramente, afastados pelos afazeres prementes da luta pela sobrevivência, no mar de lama (para não lhe chamar outra coisa) em que a sublevação dos cravos precipitou esta terra que outrora foi uma nação.
Estivemos no primeiro almoço celebrando o início da Revolução Nacional, a 28 de Maio, e no jantar em idêntica data do ano seguinte, num e noutro tendo Amândio César proferido extraordinários discursos.
E, como já disse, participámos nas comemorações do centenário do nascimento de Alfredo Pimenta.
De longe a longe, trocávamos correspondência (sou muito preguiçoso em epistolografia). Até que, de repente, veio a doença que o vitimou e lhe diminuiu consideravelmente as capacidades. Visitei-o nas minhas rápidas e sobrecarregadas idas à capital numa única ocasião. Pesa-me na consciência não lhe ter aparecido com maior assiduidade, mas surgiam sempre contratempos nas deslocações a Lisboa que me impediam de o fazer. Mas já não há próxima vez, porque o irreparável deu-se.
Com Amândio César, foi como se tivesse desaparecido uma parte de mim mesmo, uma parte da minha juventude, daquilo que fui nos anos de 45, quando me sentava nos bancos da velha universidade coimbrã, sonhando com um Portugal renovado pela ampliação e aprofundamento do que de mais válido tinha o Estado Novo, e uma Europa ressurgida e heróica afastada dos miasmas torpes do demo-liberalismo e do marxismo.
À sua maneira, Amândio César comungou nestes sonhos e, sobretudo, nunca os traiu. Dos que nos acompanhavam, uns tantos iniciaram uma curiosa evolução que acabou por os conduzir a tombar nos braços dos vencedores, integrando-se nos corrilhos, nos partidos, nas Assembleias legislativas do regime abjecto que destruiu a Pátria. Outros mantiveram-se iguais a si próprios e, chegados ao ocaso da vida, recebem o prémio de ter vergonha na cara e não alinhar no cortejo dos adoradores do Sol Nascente; as campanhas de silêncio, a obscuridade, os vexames ou tentativas de vexame (porque não vexa quem quer) e as dificuldades financeiras. Amândio César alinhou entre os últimos e eis porque as trombetas da fama não o celebram com fervor no instante do seu falecimento, como acontece a qualquer medíocre abrilino que vai a enterrar.
Em compensação, pode escrever-se no seu túmulo o epitáfio de que raros, hoje, são dignos: «foi sempre um bom português».
António José de Brito
(In «O Diabo», 18.08.1987, pág. 12)
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