<$BlogRSDURL$>

domingo, maio 29, 2005

CONFISSÃO QUASE PESSOAL 

Somos um punhado de pequenos burgueses insignificantes, unidos num comum propósito nacional-revolucionário. Riem-se de nós, por isso, os homens sábios e sisudos da esquerda e os da direita conservadora, os primeiros sustentando que dadas as nossa origens de classe nada de bom de nós se pode esperar, os segundos aguardando que os grandes braços tentaculares da nossa mãe de origem nos abracem de novo, e que o chamado peso da idade e das responsabilidades nos venham a fazer alinhar outra vez nas fileiras conformistas do grande rebanho egoísta e satisfeito.
Esquecem-se uns e outros que, precisamente, os maiores revolucionários da nossa época foram pequenos burgueses — sirvam de exemplo Lenine e Trotsky, Adolfo Hitler e Onésimo Redondo. Talvez por nascerem da burguesia e por melhor a conhecerem, melhor souberam revoltar-se contra ela, melhor do que um Doriot ou um Mussolini, filhos do povo e proletários.
Não pretendemos, evidentemente, comparar-nos a esses grandes modeladores da história contemporânea, pretendemos mostrar que são injustificados a desconfiança e o desdém (por vezes forçados e receosos) com que, a priori, nos encaram, por sermos quem somos. Nascidos da pequena burguesia, não será isso e só isso que nos impedirá de levarmos a cabo uma acção séria e profundamente revolucionária, no melhor sentido da palavra. Ao lerem a palavra revolucionária não imaginem alguns tímidos patetas que não temos outro desejo nem outro pensamento senão sairmos para a rua a lançar bombas e a dar gritos histéricos.
Há que distinguir entre revolução e revolução. Há que distinguir entre a pseudo-revolução, feita de agitação estéril, de mortos nas ruas, de explosões de granadas, finda a qual tudo continua na mesma ou pior do que antes, e a verdadeira revolução que é o esforço autêntico de modificação de realidades e circunstâncias, e que, se não deve hesitar perante o emprego da força militar, não a envolve, necessariamente, nem necessariamente a utiliza à toa.
Núcleo ainda incipiente, nós outros, para já, unicamente firmamos uma posição de indeclinável e incontroverso antagonismo face ao ambiente que nos rodeia e à mentalidade que nos cerca.
Recusamo-nos a aceitar, com um encolher de ombros indiferente ou resignado, o triste panorama social que vemos em torno de nós.
Indigna-nos, sinceramente, a visão dolorosa deste pobre país, com o seu cortejo infernal de bairros citadinos abjectos, os seus doentes chaguentos nas bermas dos portais, as crianças a vadiar que olham com desespero para os bolos das confeitarias, as mulheres postas à margem da sociedade em função dum moral farisaica e cujo único recurso é venderem-se, os velhos desempregados a apodrecer ao sol, as famílias sem habitação, etc., etc. — e, a par disto tudo, o incremento desenfreado duma plutocracia desumana, ávida de lucro e de prazer.
Claro que não temos ilusões utópicas. Não julgamos possível extinguir por completo a miséria humana, nem acreditamos mesmo que o bem-estar seja sinónimo de felicidade. O homem atormentar-se-á, sempre, no íntimo do seu insatisfeito coração e a dor é sua eterna companheira. Buscar a felicidade integral, é actividade que, apenas, nos torna mais infelizes. E não nos esqueçamos, além disso, que a felicidade, a satisfação íntima, a paz de cada um de nós, são ideias sem dignidade ou valor, meramente egoísticas e particulares.
Nós sustentamos, por conseguinte, que uma vida dura não é sinónimo duma vida indigna, que uma vida dura pode ser uma vida viril e não uma vida lastimável. O panorama social português não nos oferece no entanto o quadro duma vida dura e viril. Oferece-nos antes o quadro de uma vida de mole abandono, e até de desespero. É ao abandono que estão tantos e tantos por aí fora, sem um mínimo de alegria, sem um ideal enérgico a dignificar aos próprios olhos as privações, e contemplando, com uma inveja sem esperança, o devorismo despreocupado dum pequeno núcleo.
Mais do que na escassez das riquezas (que importa, é óbvio, superar) quanto a nós a razão fundamental de todo este desolador espectáculo está na ausência duma forte e disciplinadora justiça social, ausência essa que cria abismos entre as classes, levando a massa a considerar a falta de comodidades uma maldição que só a elas cabe sem se saber porquê, a sentir a penúria qual vexame, humilhação e desgraça, a proclamar o desconforto, mais ou menos relativo, fatalidade que lhe é caprichosamente imposta e, sem consequência, viver a sua pobreza com aviltamento, a tombar no desleixo, na incúria, na abjecção, na falta de respeito por si mesma.
É indiscutível que urge aumentar os rendimentos de cada um, mas aí de nós se semelhante reforma for levada a cabo dentro da iniquidade capitalista, hoje quase por completo dominante, e se os sacrifícios materiais puderem continuar a representar para muitos, e com visos de verdade, degradação, e a causar com razão sentimentos de inferioridade e abandono.
Sem dúvida não há comunidade, nação, pátria que não peça sacrifícios desses aos seus filhos. O que importa, porém, é que tais sacrifícios sejam exigidos com justiça e não possam servir de base a ressentimentos, e a provocar desespero e humilhação, por isso justificados.
Os marxistas apelam para a expropriação da burguesia. Mas apelam para ela com a mentalidade da própria burguesia, julgando que com a socialização dos bens de produção e a inversão dos termos no binómio exploradores-explorados, o essencial está resolvido. Erro básico.
A revolução será ético-política ou não será. E, por sê-lo, não deixará de ser económica também, e de cortar as unhas aos potentados escandalosos que sugam os povos.
Mudar o processo de produção, mudar os detentores dos meios de produção não basta para criar uma sociedade estruturalmente diferente da burguesa (excepto para os que tiverem o feiticismo do factor económico). Os marxistas não trazem com eles uma noção de sociedade verdadeiramente nova e verdadeiramente oposta àquela que pretendem combater. Os seus valores são, ainda, os valores actualmente vitoriosos.
Ora o que acima de tudo importa é negá-los efectivamente, e frente a eles erguer uma sociedade que seja um bloco, pobre talvez, mas em que a pouca riqueza se distribua irmamente, que seja em suma, uma unidade, uma hierarquia fraternal, uma comunhão de pensamento e vontade.
Não nos repugna um certo espartanismo, pois não consideramos o chamado progresso, sobretudo industrial e muito pouco espiritual, a chave de todas as soluções, antes admitimos princípios bem mais elevados.
Apelamos para uma ordem nova, e não acreditamos que essa ordem possa surgir senão do propósito firme de a criar em todos os domínios, e não do mero propósito de acabar com o capitalismo, tarefa puramente negativa e sem futuro. Apelamos para uma concepção soldatesca da existência, para a qual o ideal está na coragem, na abnegação, no serviço desinteressado, na camaradagem, e não na tibieza e no culto de Mamom.
De certo o capitalismo atravessa-se-nos no caminho. Mas não confundamos as condições necessárias do nosso triunfo com as condições suficientes. E não nos deixemos, sobretudo, arrastar pelo canto da sereia. O nosso revolucionarismo não pode tornar-se ingenuidade a explorar pelos pescadores de águas turvas. Esperar melhorias duma atmosfera de agitação e desordem, dum enfraquecimento do Poder é dizer que a mais curta distância entre dois pontos é uma curva.
Não restringimos ao nosso País o quadro desolador de misérias e injustiças que referimos. A história passada e presente mostra-nos um sem número de quadros iguais sob o signo da Liberdade e seria estúpido e criminoso, portanto, responsabilizar por eles a tranquilidade pública que temos até aqui usufruído ou o reforço da autoridade estadual tentado nos últimos anos.
Conhecemos, perfeitamente, a estreiteza de vistas, o conservantismo tolo que, em tantos aspectos, caracteriza a certos Senhores da Situação e conhecemos, melhor ainda, os imensos cavalos de Tróia que nela se introduziram a impossibilitar-nos os já de si limitados objectivos sociais.
Contudo sabemos perfeitamente que a destruição duma autoridade autêntica, mesmo tratando-se da autoridade do mais reaccionário dos governos só aproveita aos oportunistas, aos interesseiros, aos homens da corrupção e do dinheiro, aos que, capazes de escapar à vigilância de um sistema ditatorial de vistas curtas e de nele se anicharem, muito melhor medrarão e prosperarão no seio da confusão, da anarquia, do caos.
Sem uma Autoridade soberana, e soberana a valer face a grupos, a pressões, a intimidações, a revolução, que desejamos, é impossível.
A democracia, que equivale a desordem, é o grande inimigo das reformas sérias, as quais exigem um Poder forte para passar a acto, tornar-se reais e afrontar os interesses por elas vulnerados.
Os nossos intentos postulam, pois, a edificação firme e decidida dum regime francamente autoritário, devendo nós, por isso, apoiar e aproveitar o que de antidemocrático e de bom se tem feito, nesse sentido, até agora, em Portugal.
Divisamos já, neste momento, o ar superiormente irónico dos nossos antagonistas conservadores. Uma vez que vos preocupais tanto com o destino dos desprotegidos da fortuna, dir-nos-ão, porque não entregais todos os vossos haveres em favor dos desvalidos, ó nobres revolucionários?
Pobres de nós, pobres de nós! Seria com os nossos modestos meios de pequenos burgueses que conseguiríamos valer aos que nada possuem? Ou apenas iríamos engrossar de alguns elementos a legião dos miseráveis?
A última hipótese de certeza agrada aos inimigos, dado que nessa altura, as nossas vozes deixariam de se ouvir, a reclamar justiça e a desmascará-los. Não lhes faremos a vontade, no entanto. E, dentro da nossa modéstia, persistiremos. Pouco mais nos é possível, nesta altura, do que pensar. Mas pensar é também agir, é atear uma fogueira que se pode tornar um imenso clarão que tudo ilumine.
Ultrapassaremos nós o plano das reflexões despretensiosas, ou teremos de reentrar na nossa mediocridade (mediocridade insatisfeita consigo própria, ao menos)? O futuro no-lo dirá. O certo, porém, é que, bafejados ou não pelo êxito, jamais o seremos pela desonra, porque os nossos propósitos são puros, as nossas mãos limpas e o nosso espírito sereno.
António José de Brito
(In Ataque, n.º 3/4/5, , pág. 11, 2.ª série, Junho/Julho/Agosto/Setembro de 1963)

0 Comentários
Comments: Enviar um comentário
Divulgue o seu blog! Blog search directory

This page is powered by Blogger. Isn't yours?