domingo, maio 29, 2005
LÉON DAUDET
Há cerca de cem anos, no mês de Novembro, sob o signo de Sagitário, nasceu um dos maiores polemistas do nosso século, Léon Daudet. A sua obra é, propriamente, torrencial e nem de longe temos a pretensão de a conhecermos por inteiro. Basta salientar que, em 1935, no preâmbulo de um livro interessantíssimo — Bréviaire du Journalisme — Daudet declarava: «Dans l`ensemble, mes papiers de l`Action Française, comporteraient, à eux seuls, plusieurs centaines de tomes, in octavo, de 300 pages, lesquels, joints à mes quatre vingt sept romans et essais, feraient, au bas mot, un bibliothéque de six ou sept cents volumes imprimés — en tenant compte de redites de la polémique journaliére — sans y joindre mes collaborations antérieurs à la Nouvelle Revue, au Figaro, à Germinal, au Gaulois, au Journal, au Soleil, à Libre Parole. C`est affreux, c`est impardonnable, c`est invraissemblable; mais c`est ainsi. J`ajoute que je me suis livré et me livre encore à ses excés de l`imprimé avec délices. Il n`est pas de métier plus passionant».
Se isto era assim, em 1935, que dizer em 1942, ano em que o autor de Savoir Réagir nos deixou para sempre?
De qualquer forma, no romance, na crítica, na doutrina política, no ensaio filosófico ou filosofante, no memorialismo, na biografia histórica, Léon Daudet, acima de tudo, foi um polemista, um panfletário de génio. Exactamente pelo que tinham de polémico é que os seus romances, os seus trabalhos doutrinários, os seus volumes de memórias, ganhavam destaque e colorido, ultrapassando a mediocridade honrosa e a banalidade, e dando testemunho dum temperamento excepcional de lutador, com dotes literários fora do comum.
Se, por exemplo, os seus livros de recordações, L`Entre Deux Guerres, L`Hécatombe, Vers le Roi, Deputé de Paris (só falamos naqueles que lemos), se situam muito para além da produção habitual no género é porque neles encontramos, com frequência, quadros e caracteres traçados com uma invulgar força de caricaturista, charges de uma espantosa inventiva, a destruição em duas penadas de personagens consagrados e solenes, o comentário irreverente e acre e a propósito, tudo isto emoldurando e inserindo-se, com perfeita naturalidade, na sequência dos eventos e ambientes descritos.
No tocante ao Daudet romancista não temos outro remédio senão reconhecer que conseguiu elaborar novelas espantosamente fracas — embora aqui e ali palpite o talento — v.g. Suzanne, Les Bachantes, Médée, La Lutte, Le Coeur Brulé. Contudo, do meio desta série de livros incaracterísticos, salta de repente aos nossos olhos, Les Morticoles, que são algo de excepcional, de excelente. Simplesmente aconteceu que Les Morticoles, além de ser um romance — inspirado em Swift — representa uma sátira espantosa de polemista ao ensino médico da época. Na altura, fez escândalo pelos retratos dos vultos conhecidos e proeminentes, que pontificavam na Faculdade e nos Hospitais de Paris. Hoje, em dia, no entanto, apesar de sob tal aspecto já nada significarem para nós, Les Morticoles é obra que não morre e ainda entusiasma. Os seus personagens, debaixo dos quais estamos bem longe de identificar esta ou aquela individualidade real, têm capacidade de nos convencer, de nos despertar aplauso e, sobretudo, repulsa ou asco.
Há ali trouvailles sem par e cenas admiráveis, como a descrição da terrível prova do lêchemente de pieds aos Mestres, que decide da aprovação e da reprovação, e perante a qual o exame é mera formalidade.
Repare-se todavia, que se, enquanto romancista, Léon Daudet frequentes vezes não foi feliz, a justeza do seu gosto crítico constituiu fenómeno que ficou assinalado em definitivo. Ele contribuiu, amplamente, para a descoberta de Proust, lançou, com uma segurança de visão impressionante, Louis Ferdinand Céline, revelou Bernanos ao grande público francês. Não deixamos de pensar porém que algumas das suas melhores páginas de crítica são, simultaneamente, páginas de polémica. Zola ou le Romantisme de l`égout, título só por si de uma grande felicidade, é um estudo impressionante, em que na demolição certeira e firme Daudet se mostra implacável. O crítico, aí animado do demónio da invectiva, consegue, quase por completo, realizar o prodígio de juntar à veemência a penetração no juízo e a análise inteligente.
Os ensaios de índole filosófica — L`Hérédo, Le Monde des Images, Le Rêve eveillé — não expressam, por certo, um dos aspectos mais importantes da vasta bibliografia de Léon Daudet. Apesar de tudo, merecem ser lidos, com atenção, porque abundam em pontos de vista originais e especialmente em enérgicas e justas investidas a certas teorias e eis o polemista em acção, o que compensa, de certo modo, a falta de disciplina lógica e o excesso de fantasia.
Em todo o caso julgamos que é num pequeno trabalho — o discurso no Parlamento sobre o ensino das Humanidades — que melhor se demonstra a cultura filosófica de Daudet, fruto de uma vasta curiosidade intelectual não compensada, infelizmente, nesse domínio, pela indispensável serenidade reflexiva e um permanente esforço de ordenação e coerência. Talvez porque a tribuna as não comportava, Daudet suprimiu, aí, as suas costumadas digressões marginais e com um encadeamento e um rigor superior aos habituais, desenvolveu duas ou três ideias mestras bem colhidas e meditadas.
A respeito das biografias históricas da autoria do fogoso director da Action Française poucas considerações podemos formular. Nunca conseguimos obter Sylla et son destin, que muitos louvam fervorosamente, nem ainda, Clemenceau qui sauva la Patrie, ou Alphonse Daudet, etc., etc. Unicamente conhecemos Deux Idoles Sanguinaires, consagrado à Revolução e a Bonaparte. E hesitamos um pouco, até, em integrar este livro no domínio da biografia histórica. Há nele, decerto, o esforço de reconstituir a figura de Napoleão, aliás feito com o usual ímpeto polémico. Mas, por outro lado, aparecem-nos considerações mais directamente político-ideológicas, ao jaez das que, vulgarmente, Daudet insere nos seus volumes de doutrinação. Claro que sabemos que ele escrevia as biografias históricas à luz do seu ideário, não hesitando em tirar ilacções e formular juízos valorativos. Cremos, no entanto, que existe diferença acentuada entre traçar uma narrativa historiográfica alicerçada num fundo ideológico, mais ou menos expresso, e mesclar, quase sistematicamente, a narrativa (já de resto orientada por determinados postulados) com ensinamentos directamente ideológicos. Ora é semelhante mescla de perspectivas que, constantemente, deparamos em Deux Idoles Sanguinaires.
Convém advertir, chegados aqui, que nos trabalhos doutrinários de Daudet não encontramos exposições serenas e académicas de teses e concepções axiológicas. Mais do que em quaisquer outros está presente o polemista, com a sua truculência rabelaisiana e o seu fulgurante dom do sarcasmo corrosivo e aniquilador.
Léon Daudet chegou pelo seu primeiro casamento a ter ligações familiares com republicanos de alta posição e influência. Porém, sob a influência de Édouard Drumont, o grande escritor anti-semita francês, amigo de seu pai Alphonse Daudet, passou a colaborar na Libre Parole que o primeiro dirigia e orientava, filiando-se na Ligue anti-sémite formada em torno desse jornal. O célebre affaire Dreyfus levou Léon Daudet até às fileiras de um amplo movimento — a Patrie Française — destinado a unir todos os que combatiam as agressões dreyfusistas contra o exército e a honra nacional. Movimento profundamente conservador, tímido na sua actuação, confiando-se a generalidades prudentes no plano dos princípios, a cada instante foi tornando mais insatisfeito e desiludido o jovem e ardente discípulo de Drumont.
Descrendo, em absoluto, das possibilidades de uma república ordeira e patriota, Daudet, em 1904, quando o movimento da Patrie Française agonizava, depois da morte de Syveton (um assassinato político segundo toda a verosimilhança), veio a ingressar na Action Française, convertendo-se à Monarquia. É incontestável que o ideário político deste último agrupamento se deveu exclusivamente a Maurras e que foi, sempre, no âmbito das ideais maurrasianas que Léon Daudet se passou a mover e a traçar as páginas dos seus livros de combate e doutrina. Não vamos aqui referir, em esboço sequer, as grandes linhas da obra de Maurras. Pensador subtil, mais apaixonado pela controvérsia de ideias do que pelas grandes exposições sistemáticas, deixou análises incomparáveis dos erros liberais e democráticos e rápidos mas finos esquissos das suas concepções do Estado e da Ordem, desgraçadamente dispersos em volumes muitas vezes repletos dos ecos de querelas ultrapassadas. Ao lado do esforço de clarificação, dissecação, rectificação de Maurras, que se não permitia um duro qualificativo sem antes apresentar argumentos e provas, publicamente, a fúria, o ímpeto, o arrebatamento de Daudet formavam um contraste impressionante. Contraste no estilo, na maneira de polemicar, no temperamento, apenas, porque a identidade quanto a pontos de vista era perfeita. Daudet seguia Maurras em tudo, até no germanofobismo rábido que constitui o grande e obcessivo defeito do prosador de Anthinéa.
Dentre os livros de Léon Daudet de índole mais directamente político-ideológica destaca-se, primordialmente, Le Stupide XIX siècle, cujo título causou sensação. Muitos democratas e conservadores espiritualistas e católicos, que não foram além da portada do ensaio, ergueram-se, com indignação, a proclamar que o século XIX não fora estúpido, pois legara um sem número de grandes homens e de importantes progressos à Humanidade. Foi pena que não se chegassem a aperceber que Daudet só considerava estúpido o século dezanove em certos aspectos ou tendências, realmente primárias, como o cientismo intolerante, o anti-clericalismo desmedido, a lisonja baixa e demagógica do popular, a falsificação sectária da história anterior à Revolução, o naturalismo semi-pornográfico, etc.
Nessa medida, e unicamente nela, é que Daudet condenava o século XIX, nunca atacando, antes ressalvando, as suas descobertas e as suas grandes criações literárias e artísticas.
Redigido com a endiabrada veia de Daudet, Le Stupide XIX siècle abunda em fórmulas polémicas que despertam gargalhadas homéricas e põem o adversário exaltado ao rubro. Falando em liberais, Léon Daudet proclamava, com a mais serena tranquilidade: «A mes yeux, je vous le dis franchement, il n`est grand liberal qui me soit un grand âne et autant plus grand qu`il est plus libéral».
Outros estudos políticos de Daudet que conhecemos — Moloch et Minerve, La Police Politique, ses Moyens et ses Crimes, Sauveteurs et Incendiaires — possuem evidentes méritos, mas estão longe de superar Le Stupide XIX siècle.
Depois do desastre de 1940, de acordo com Maurras, Léon Daudet deu todo o seu apoio ao regime do Marechal Pétain e, segundo informa Brasillach em Les Quatres Jeudis, num artigo do Gringoire, publicado no inverno de 1941, declarou-se partidário da reconciliação europeia. Se, até ao momento, não conseguimos ler tal artigo — que seria da mais alta importância — em compensação já em Sauveteurs et Incendiaires conseguimos encontrar uma inequívoca apologia de Philippe Pétain e do Novo Estado francês.
A vida agitada e tumultuosa de Daudet e a sua obra de polemista, plena de calor e desassombro, encerram uma lição de validade permanente e um exemplo que, nestes tempos de abandono e cobardia, esplende com diamantina pureza. Lição e exemplo de fidelidade e coragem modelares. Através de todas as tempestades, prisões, ameaças, Léon Daudet nunca abandonou os seus amigos da Action Française nem renegou as suas ideias de nacionalismo integral. Até ao fim, permaneceu ao serviço da verdade política que nos anos da sua juventude descobrira e não houve directrizes de prudência, sentidos de conveniências e oportunidades, que o tivessem levado a modificar, atenuar, ocultar, os seus princípios.
Nenhum perigo ou risco jamais conteve a sua pena terrível. Daudet dizia sempre o que pensava e ai de quem tentasse detê-lo. Segundo todas as probabilidades, no auge de seus ataques à República a Sureté Générale assassinou-lhe o filho mais velho, sendo o próprio Daudet encarcerado pela sua violenta campanha para desmascarar os assassinos. Conseguindo escapar da prisão alcançou ao fim de alguns dias a Bélgica — durante o período da evasão diariamente aparecia nas colunas da Action Française o seu habitual artigo — onde exilado prosseguiu intemeratamente nas suas duras e veementes arremetidas. Nada conseguiu quebrar o seu espírito de lutador. E pelos anos fora Daudet permaneceu firme na trincheira. Só a morte, em 1942, fez cessar, sem remissão, a ingente batalha de um polemista que nunca temeu nem tremeu.
António José de Brito
(In «Agora», n.º 335, 16.12.1967., pág. 6)
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Se isto era assim, em 1935, que dizer em 1942, ano em que o autor de Savoir Réagir nos deixou para sempre?
De qualquer forma, no romance, na crítica, na doutrina política, no ensaio filosófico ou filosofante, no memorialismo, na biografia histórica, Léon Daudet, acima de tudo, foi um polemista, um panfletário de génio. Exactamente pelo que tinham de polémico é que os seus romances, os seus trabalhos doutrinários, os seus volumes de memórias, ganhavam destaque e colorido, ultrapassando a mediocridade honrosa e a banalidade, e dando testemunho dum temperamento excepcional de lutador, com dotes literários fora do comum.
Se, por exemplo, os seus livros de recordações, L`Entre Deux Guerres, L`Hécatombe, Vers le Roi, Deputé de Paris (só falamos naqueles que lemos), se situam muito para além da produção habitual no género é porque neles encontramos, com frequência, quadros e caracteres traçados com uma invulgar força de caricaturista, charges de uma espantosa inventiva, a destruição em duas penadas de personagens consagrados e solenes, o comentário irreverente e acre e a propósito, tudo isto emoldurando e inserindo-se, com perfeita naturalidade, na sequência dos eventos e ambientes descritos.
No tocante ao Daudet romancista não temos outro remédio senão reconhecer que conseguiu elaborar novelas espantosamente fracas — embora aqui e ali palpite o talento — v.g. Suzanne, Les Bachantes, Médée, La Lutte, Le Coeur Brulé. Contudo, do meio desta série de livros incaracterísticos, salta de repente aos nossos olhos, Les Morticoles, que são algo de excepcional, de excelente. Simplesmente aconteceu que Les Morticoles, além de ser um romance — inspirado em Swift — representa uma sátira espantosa de polemista ao ensino médico da época. Na altura, fez escândalo pelos retratos dos vultos conhecidos e proeminentes, que pontificavam na Faculdade e nos Hospitais de Paris. Hoje, em dia, no entanto, apesar de sob tal aspecto já nada significarem para nós, Les Morticoles é obra que não morre e ainda entusiasma. Os seus personagens, debaixo dos quais estamos bem longe de identificar esta ou aquela individualidade real, têm capacidade de nos convencer, de nos despertar aplauso e, sobretudo, repulsa ou asco.
Há ali trouvailles sem par e cenas admiráveis, como a descrição da terrível prova do lêchemente de pieds aos Mestres, que decide da aprovação e da reprovação, e perante a qual o exame é mera formalidade.
Repare-se todavia, que se, enquanto romancista, Léon Daudet frequentes vezes não foi feliz, a justeza do seu gosto crítico constituiu fenómeno que ficou assinalado em definitivo. Ele contribuiu, amplamente, para a descoberta de Proust, lançou, com uma segurança de visão impressionante, Louis Ferdinand Céline, revelou Bernanos ao grande público francês. Não deixamos de pensar porém que algumas das suas melhores páginas de crítica são, simultaneamente, páginas de polémica. Zola ou le Romantisme de l`égout, título só por si de uma grande felicidade, é um estudo impressionante, em que na demolição certeira e firme Daudet se mostra implacável. O crítico, aí animado do demónio da invectiva, consegue, quase por completo, realizar o prodígio de juntar à veemência a penetração no juízo e a análise inteligente.
Os ensaios de índole filosófica — L`Hérédo, Le Monde des Images, Le Rêve eveillé — não expressam, por certo, um dos aspectos mais importantes da vasta bibliografia de Léon Daudet. Apesar de tudo, merecem ser lidos, com atenção, porque abundam em pontos de vista originais e especialmente em enérgicas e justas investidas a certas teorias e eis o polemista em acção, o que compensa, de certo modo, a falta de disciplina lógica e o excesso de fantasia.
Em todo o caso julgamos que é num pequeno trabalho — o discurso no Parlamento sobre o ensino das Humanidades — que melhor se demonstra a cultura filosófica de Daudet, fruto de uma vasta curiosidade intelectual não compensada, infelizmente, nesse domínio, pela indispensável serenidade reflexiva e um permanente esforço de ordenação e coerência. Talvez porque a tribuna as não comportava, Daudet suprimiu, aí, as suas costumadas digressões marginais e com um encadeamento e um rigor superior aos habituais, desenvolveu duas ou três ideias mestras bem colhidas e meditadas.
A respeito das biografias históricas da autoria do fogoso director da Action Française poucas considerações podemos formular. Nunca conseguimos obter Sylla et son destin, que muitos louvam fervorosamente, nem ainda, Clemenceau qui sauva la Patrie, ou Alphonse Daudet, etc., etc. Unicamente conhecemos Deux Idoles Sanguinaires, consagrado à Revolução e a Bonaparte. E hesitamos um pouco, até, em integrar este livro no domínio da biografia histórica. Há nele, decerto, o esforço de reconstituir a figura de Napoleão, aliás feito com o usual ímpeto polémico. Mas, por outro lado, aparecem-nos considerações mais directamente político-ideológicas, ao jaez das que, vulgarmente, Daudet insere nos seus volumes de doutrinação. Claro que sabemos que ele escrevia as biografias históricas à luz do seu ideário, não hesitando em tirar ilacções e formular juízos valorativos. Cremos, no entanto, que existe diferença acentuada entre traçar uma narrativa historiográfica alicerçada num fundo ideológico, mais ou menos expresso, e mesclar, quase sistematicamente, a narrativa (já de resto orientada por determinados postulados) com ensinamentos directamente ideológicos. Ora é semelhante mescla de perspectivas que, constantemente, deparamos em Deux Idoles Sanguinaires.
Convém advertir, chegados aqui, que nos trabalhos doutrinários de Daudet não encontramos exposições serenas e académicas de teses e concepções axiológicas. Mais do que em quaisquer outros está presente o polemista, com a sua truculência rabelaisiana e o seu fulgurante dom do sarcasmo corrosivo e aniquilador.
Léon Daudet chegou pelo seu primeiro casamento a ter ligações familiares com republicanos de alta posição e influência. Porém, sob a influência de Édouard Drumont, o grande escritor anti-semita francês, amigo de seu pai Alphonse Daudet, passou a colaborar na Libre Parole que o primeiro dirigia e orientava, filiando-se na Ligue anti-sémite formada em torno desse jornal. O célebre affaire Dreyfus levou Léon Daudet até às fileiras de um amplo movimento — a Patrie Française — destinado a unir todos os que combatiam as agressões dreyfusistas contra o exército e a honra nacional. Movimento profundamente conservador, tímido na sua actuação, confiando-se a generalidades prudentes no plano dos princípios, a cada instante foi tornando mais insatisfeito e desiludido o jovem e ardente discípulo de Drumont.
Descrendo, em absoluto, das possibilidades de uma república ordeira e patriota, Daudet, em 1904, quando o movimento da Patrie Française agonizava, depois da morte de Syveton (um assassinato político segundo toda a verosimilhança), veio a ingressar na Action Française, convertendo-se à Monarquia. É incontestável que o ideário político deste último agrupamento se deveu exclusivamente a Maurras e que foi, sempre, no âmbito das ideais maurrasianas que Léon Daudet se passou a mover e a traçar as páginas dos seus livros de combate e doutrina. Não vamos aqui referir, em esboço sequer, as grandes linhas da obra de Maurras. Pensador subtil, mais apaixonado pela controvérsia de ideias do que pelas grandes exposições sistemáticas, deixou análises incomparáveis dos erros liberais e democráticos e rápidos mas finos esquissos das suas concepções do Estado e da Ordem, desgraçadamente dispersos em volumes muitas vezes repletos dos ecos de querelas ultrapassadas. Ao lado do esforço de clarificação, dissecação, rectificação de Maurras, que se não permitia um duro qualificativo sem antes apresentar argumentos e provas, publicamente, a fúria, o ímpeto, o arrebatamento de Daudet formavam um contraste impressionante. Contraste no estilo, na maneira de polemicar, no temperamento, apenas, porque a identidade quanto a pontos de vista era perfeita. Daudet seguia Maurras em tudo, até no germanofobismo rábido que constitui o grande e obcessivo defeito do prosador de Anthinéa.
Dentre os livros de Léon Daudet de índole mais directamente político-ideológica destaca-se, primordialmente, Le Stupide XIX siècle, cujo título causou sensação. Muitos democratas e conservadores espiritualistas e católicos, que não foram além da portada do ensaio, ergueram-se, com indignação, a proclamar que o século XIX não fora estúpido, pois legara um sem número de grandes homens e de importantes progressos à Humanidade. Foi pena que não se chegassem a aperceber que Daudet só considerava estúpido o século dezanove em certos aspectos ou tendências, realmente primárias, como o cientismo intolerante, o anti-clericalismo desmedido, a lisonja baixa e demagógica do popular, a falsificação sectária da história anterior à Revolução, o naturalismo semi-pornográfico, etc.
Nessa medida, e unicamente nela, é que Daudet condenava o século XIX, nunca atacando, antes ressalvando, as suas descobertas e as suas grandes criações literárias e artísticas.
Redigido com a endiabrada veia de Daudet, Le Stupide XIX siècle abunda em fórmulas polémicas que despertam gargalhadas homéricas e põem o adversário exaltado ao rubro. Falando em liberais, Léon Daudet proclamava, com a mais serena tranquilidade: «A mes yeux, je vous le dis franchement, il n`est grand liberal qui me soit un grand âne et autant plus grand qu`il est plus libéral».
Outros estudos políticos de Daudet que conhecemos — Moloch et Minerve, La Police Politique, ses Moyens et ses Crimes, Sauveteurs et Incendiaires — possuem evidentes méritos, mas estão longe de superar Le Stupide XIX siècle.
Depois do desastre de 1940, de acordo com Maurras, Léon Daudet deu todo o seu apoio ao regime do Marechal Pétain e, segundo informa Brasillach em Les Quatres Jeudis, num artigo do Gringoire, publicado no inverno de 1941, declarou-se partidário da reconciliação europeia. Se, até ao momento, não conseguimos ler tal artigo — que seria da mais alta importância — em compensação já em Sauveteurs et Incendiaires conseguimos encontrar uma inequívoca apologia de Philippe Pétain e do Novo Estado francês.
A vida agitada e tumultuosa de Daudet e a sua obra de polemista, plena de calor e desassombro, encerram uma lição de validade permanente e um exemplo que, nestes tempos de abandono e cobardia, esplende com diamantina pureza. Lição e exemplo de fidelidade e coragem modelares. Através de todas as tempestades, prisões, ameaças, Léon Daudet nunca abandonou os seus amigos da Action Française nem renegou as suas ideias de nacionalismo integral. Até ao fim, permaneceu ao serviço da verdade política que nos anos da sua juventude descobrira e não houve directrizes de prudência, sentidos de conveniências e oportunidades, que o tivessem levado a modificar, atenuar, ocultar, os seus princípios.
Nenhum perigo ou risco jamais conteve a sua pena terrível. Daudet dizia sempre o que pensava e ai de quem tentasse detê-lo. Segundo todas as probabilidades, no auge de seus ataques à República a Sureté Générale assassinou-lhe o filho mais velho, sendo o próprio Daudet encarcerado pela sua violenta campanha para desmascarar os assassinos. Conseguindo escapar da prisão alcançou ao fim de alguns dias a Bélgica — durante o período da evasão diariamente aparecia nas colunas da Action Française o seu habitual artigo — onde exilado prosseguiu intemeratamente nas suas duras e veementes arremetidas. Nada conseguiu quebrar o seu espírito de lutador. E pelos anos fora Daudet permaneceu firme na trincheira. Só a morte, em 1942, fez cessar, sem remissão, a ingente batalha de um polemista que nunca temeu nem tremeu.
António José de Brito
(In «Agora», n.º 335, 16.12.1967., pág. 6)
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