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terça-feira, maio 31, 2005

MARXISMO E EXISTENCIALISMO 

Bastantes anos após a publicação de "L`Être et le Néant", aparece nas montras das livrarias novo livro de Jean-Paul Sartre dedicado a problemas filosóficos. Trata-se do tomo I da "Critique de la Raison Dialectique", o qual, inserindo também, de começo, o ensaio "Question de Méthode", eleva-se às bonitas proporções de um volume de 753 páginas impresso em caracteres minúsculos. Que nos reservará o tomo II, meu Deus?!
"Question de Méthode" denominou-se, primitivamente, "Existencialisme et Marxisme", quando editada, em 1957, nas colunas duma revista polaca. Sartre modificou-lhe, depois, o título e compreende-se porquê. Por um lado, repugnava-lhe falar em existencialismo como se se tratasse já dum sistema fechado, acabado — e podia lá julgar-se o existencialismo algo de acabado enquanto ele Sartre, seu pontífice máximo, estivesse ainda em pleno labor intelectual?
Por outro lado, o estudo aludido possuía, de facto, um puro aspecto metodológico, não se adaptando ao seu limitado conteúdo uma epígrafe que abrangia marxismo e existencialismo, na totalidade, sem distinções.
Simplesmente, segundo cremos, para a obra imensa e exaustiva de que "Question de Méthode" é agora, um simples prólogo, já tal epígrafe tem perfeito cabimento, tanto mais que, embora isso pese a Sartre, considerar o existencialismo um sistema concluído e liquidado possui a melhor das justificações. Encontra-se ela, precisamente, na referida obra, pois dominada, por inteiro, pela fascinação de Marx, visa apenas, modestamente, arranjar um pequeno altar na igreja comunista para as primitivas teses do sartrismo.
Assim, é sob a rubrica "Marxismo e Existencialismo" que nos vamos ocupar da "Critique de la Raison Dialectique". Supomos essa rubrica o mais adequada possível, até porque na presente "Critique", a crítica quase só está no nome. Conquanto Sartre invoque o exemplo de Kant manifesta sempre muito pouco senso crítico (no sentido kantiano ou em qualquer outro), conforme passaremos a mostrar o mais claramente que pudermos e soubermos.
Comecemos por notar que Jean Paul-Sartre, apesar de ter colocado o ensaio "Question de Méthode" no início do volume não deixa de reconhecer-lhe um carácter secundário e derivado. «Dos dois trabalhos (...) logicamente o segundo» — a "Critique de la Raison Dialectique" — «devia preceder o primeiro, cujos fundamentos procura estabelecer», escreve o autor de "La Putain Respectueuse".
Nestas circunstâncias, não deve causar estranheza que, cingindo-nos ao básico e ao essencial, não tomemos para objecto das nossas considerações a tão citada "Question de Méthode" e nos restrinjamos, exclusivamente, às congeminações sartrianas em torno da razão dialéctica.
Determinar «a validade e os limites» desta última são os propósitos que o fenomenólogo de "L`Imaginaire" começa por confessar, logo no prefácio.
Contudo uma série de obstáculos lhe surge, imediatamente, a dificultar a ambiciosa tarefa. Na verdade, a razão dialéctica a que aludia não era a de Hegel, onde havia «identidade de ser, fazer e saber», era a de Marx para o qual «a existência material é irredutível ao conhecimento, (...) a praxis ultrapassa com a sua eficácia real o saber». A Marx com efeito é que Sartre diz seguir e proclama inultrapassável, falando mesmo num «acordo de princípio com o materialismo dialéctico».
Torna-se evidente, pois, que o problema é de árdua resolução. Se a realidade é dialéctica e se ultrapassa de longe o conhecimento, como obter um autêntico conhecimento dialéctico, uma razão que expresse a dialéctica mesma das coisas? De que forma a dialéctica real origina a dialéctica cognoscitiva? De que maneira o todo aparecerá reproduzido, por completo, numa das suas partes — o conhecimento — que com ele não coincide e que o não recobre originariamene? Jean-Paul-Sarte repudia a habitual atitude dos comentadores e sequazes de Marx que reduzem o saber a mero facto conhecido, descrevendo a sua génese e estrutura, tal qual estivessem a tratar duma coisa, dum objecto, entre as restantes coisas e objectos. Nessa altura, observa com justeza, a conhecer esse saber que se pressupõe, sem provas, verdadeiro e completamente aderente ao conjunto do real. Cai-se assim em pleno dogmatismo. E em pleno idealismo, igualmente, visto que se fez desaparecer a desproporção e o desnível entre o ser e o saber.
Impõe-se, em consequência, que se mantenha o primado (e a distinção estrutural) do real sobre o conhecimento e, ainda, que se não tente reduzir o conhecimento ao real objectivo (sem olvidar que ambos se integram no ser material).
Pois bem! Dentro destes limites, a prova da dialéctica material tem de consistir num certo número da própria dialéctica material, num aparecer, no domínio cognoscitivo, da dialéctica, da certeza mesma da dialéctica.
Ou seja, de acordo com Sartre: «A única possibilidade de que uma dialéctica exista é ela mesma dialéctica... A dialéctica como racionalidade devia redescobrir-se na experiência directa e quotidiana, a um tempo como ligação objectiva dos factos e método para conhecer e fixar essa ligação». Todavia não basta qualquer experiência. É preciso encontrar «uma experiência apodíctica no mundo concreto da história... Se a razão dialéctica deve ser possível, se devemos fundamentá-la enquanto racionalidade da praxis, se devemos criticá-la, a seguir, é preciso realizar por nós mesmos a experiência situada da sua apodicticidade».
E por que experimentação esperamos manifestar e provar a realidade do processo dialéctico? Quais serão os nossos instrumentos? Qual o ponto de aplicação destes? Qual será a validade da prova?
Para responder a semelhantes perguntas dispomos dum fio condutor o qual não é senão a exigência intrínseca do objecto... Não se trata de constatar a presença da razão dialéctica mas a de «experimentar através dela a sua inteligibilidade, sem descoberta empírica».
Numa palavra: ficaremos perante certa experiência, uma experiência do evidente, do que é indiscutível logicamente, experiência que deriva da realidade da dialéctica material («a experiência da dialéctica é em si dialéctica», ensina Sartre) e que, por isso, só aparece em determinada altura do desenrolar duma tal dialéctica, não sendo admissível e concebível senão excepto numa época precisa (pág. 141).
Antes de tudo o mais urge, portanto, sentir, apreender essa experiência decisiva. E não há dúvida que Sartre, esforçadamente, em centenas de páginas da sua obra não faz outra coisa senão procurar introduzir-nos e desvendar-nos o âmago da transcendente facticidade que nos daria a certeza da razão dialéctica, antecedente necessário da sua crítica (aliás ausente por completo deste tomo I de que nos ocupamos).
Pensamos ser inútil sublinhar que a possibilidade da experiência apodictícia da razão dialéctica é o ponto crucial do livro de Sartre. Tudo o resto depende da sua forçosa inexistência ou da sua presumível existência.
Pela nossa parte não hesitamos em sustentar que tal experiência não passa duma imaginação sem base sólida, dum mito absurdo.
Note-se, para começar, que, aceitando-se o princípio da irredutibilidade do real ao saber, quanto este último exibir como descrição exacta e segura daquele não pode merecer confiança e tem de passar por ilusão subjectiva.
Depois, acontece que a experiência apodíctica mencionada por Sartre, a experiência da dialéctica material surgida na história e fruto da mesma dialéctica material, pressupõe já que o conhecimento é uma resultante dessa dialéctica material e histórica, quer dizer, pressupõe, já, a verdade da dialéctica materialista. E no entanto não é a referida verdade que depende da experiência da dialéctica material, que é um fruto dela?
Numa palavra: o instrumento probatório da dialéctica (a experiência dialéctica) é concebido em função da dialéctica que pretende provar. Se não aceitarmos, previamente, a última nunca aceitaremos que é possível aparecer uma experiência fundamental, derivada de condições histórico-materiais.
Mais ainda. Sartre reconhece que «quaisquer que sejam as ligações constatadas na experiência não serão nunca em número suficiente para fundar um materialismo dialéctico — uma extrapolação de tal grandeza, isto é, infinitamente infinita — é radicalmente distinta da indução científica... os êxitos práticos não bastam: embora as afirmações da dialéctica fossem indefinidamente confirmadas pelos resultados da pesquisa, tal confirmação permanente não permitiria sair da contingência empírica».
Com que direito, então, alicerça a certeza da razão dialéctica numa experiência? É indiscutível que Sartre repudia a semelhança entre a experiência de que fala e as intuições empíricas e algumas experiências científicas. «A experiência dialéctica, afirma, é... dialéctica, quer dizer, prossegue-se e organiza-se em todos os planos... é regressiva porque parte do vivido para encontrar pouco a pouco as estruturas completas da praxis».
Partir do vivido para as estruturas completas da praxis é, ao que parece, uma indução científica e nós já vimos que Sartre acha a indução científica incapaz de nos confirmar a dialéctica. Mas admitamos que não seja indução, admitamos que seja experimentação. Continua a não se compreender porque misterioso processo esse regresso a partir do vivido nos pode dar a universalidade da dialéctica. Pois Sartre não sustenta que uma confirmação experimental indefinida da dialéctica não a validava?
Aliás, frise-se que, em "Question de Méthode", ele defende o que denomina o método progressivo-regressivo, isto é, arrancar dos condicionamentos gerais para o individual e, depois, através deste, iluminar, corrigir, compreender os citados condicionamentos (é um belo círculo vicioso; adiante, porém). Simplesmente sucede que, na determinação da experiência apodíctica, Sartre invoca o conjunto do condicionalismo histórico que a localiza numa época, e, ao mesmo tempo, sustenta a necessidade de se remontar regressivamente do início da experiência dialéctica à totalidade das suas condições. Resumindo: para situar a experiência dialéctica aplica o método progressivo-regressivo. Contudo, tal método, segundo Sartre proclama (a "Critique de la Raison Dialectique" é logicamente o fundamento de "Question de Méthode") só se justifica se a dialéctica for verdadeira. O dialelo é, assim, bem nítido.
Finalmente, note-se que Jean-Paul Sartre pretende fazer a crítica da experiência dialéctica e, simultaneamente, considera-a uma experiência apodíctica, com intrínseca inteligibilidade. E dois comentário se impõem. Se a experiência dialéctica é dotada de intrínseca inteligibilidade para que é preciso criticá-la? E como criticá-la, à experiência dialéctica, se nos mostra apodicticamente o cerne, a essência do real? Onde encontrar um ponto de vista superior que alicerce a crítica?
Kant criticou a razão pura pondo-a qual questão a resolver (investigação da possibilidade dos juízos sintéticos, a priori). Se, porém, um problema se der por bem resolvido, criticá-lo ou significa aceitar-lhe a formulação e a solução e integrá-la num plano superior e diverso, ou não tem sentido. Criticar a razão dialéctica seria, portanto, passar a um plano superior a esta. Ora a experiência apodíctica mostra-nos que tal razão representa o todo, que é insuperável. Logo, criticar a razão dialéctica ou envolve a negação da experiência que se aceita e donde se parte, o que é absurdo, ou nada é, nada tem de crítico e sério, e é outro absurdo.
E, agora, salientemos o seguinte, de maior importância ainda. Sartre fala-nos numa experiência apodíctica, numa experiência, fundada por si, da razão dialéctica. Nós não vislumbramos, no entanto, que formule sequer o problema da legitimidade, da razoabilidade de semelhante experiência. E se a crítica possui um significado útil é esse mesmo. O pensador de "Situations" pretende que Kant buscou, apenas, as condições da experiência, partindo já da existência inequívoca desta. Puro equívoco. Kant procurou averiguar como era admissível a experiência, o que a justificava, o que nela havia de universal. Se alguém aceita, em bloco, a presença duma experiência — embora duma experiência de certo tipo especial — e daí parte para o que denomina crítica, esse alguém é Sartre. Ele não discute a validade da experiência que nos propõe, não indaga se se concebe que exista, não a enquadra numa análise do valor da experiência em geral, etc. Nada disso. Unicamente procura situá-la, indicá-la. O tema da sua intrínseca admissibilidade não chega sequer a abordá-lo. No fundo, a sua crítica é uma dogmática, uma aceitação do fáctico, sem discussões.
Não o estranhemos. Já em "L`Être et le Néant" Sartre descobria o «en soi», esfera brutal, opaca, do ser baseando-se no «pour soi», na consciência, que era a negação do primeiro, sem explicar como, logicamente, um e outro podiam entrar em contacto e subsistir na sua recíproca exclusão. O «pour soi» declarava-o facticidade e com isso julgava tudo dito. Traçava bastantes análises subtis do «en soi» e do «pour soi» em que o seu temperamento de homem de letras dava largas às suas tendências. Mas reflexões sobre a relação do «pour soi» como o «en soi», qual problema originário, ninguém lhas via. A consciência parecia-lhe um dado e nenhum esforço fazia para se elevar à raiz desse dado, ao ser dado, ao que se situe, radicalmente, no plano do inultrapassável, do que é, em todo o sentido, princípio.
De resto, não é só o culto do fáctico, do dado, que nós vemos passar de "L`Être et le Néant" para a "Critique de la Raison Dialectique". O materialismo actualmente arvorado por Sartre fora já argutamente denunciado por Gabriel Marcel na análise ao primeiro destes volumes, inserta em "Homo Viator". É que o «en soi», na sua espessura e opacidade irracional, aparecia como algo de seguro e firme perante a consciência, o «pour soi», reduzido a pura negatividade daquele, a uma espécie de parasitismo. Sem dúvida, Sartre tomava o «pour soi» para ponto de partida e a sua inteligência ainda o invoca hoje em dia (cf. pág. 142). O primado que, presentemente, atribui ao «en soi», à matéria (com algumas hesitações perfidamente insinuadas, cf. pág. 166, em nota) é menos fruto das suas preferências mentais do que da fascinação sentimental que o comunismo e o seu profeta Marx exercem sobre os pequenos burgueses da esquerda: snobs, desconhecedores de outros ideários excepto o da revolução e cheios de veneração religiosa pelo poderio das massas e da eficácia prática do partido (de cuja disciplina, aliás, se mantêm sempre prudentemente afastados).
Não é possível negar a Jean-Paul Sartre conhecimento das questões filosóficas e vigor especulativo superior ao de alguns profissionais da filosofia, conquanto o demónio da sua prodigiosa fecundidade literária o possua com frequência e leve a infindáveis digressões e dissertações em torno a problemas de fundo que não chega a abordar directamente.
Seja como for, Sartre, talvez abraçando, ainda, no íntimo, as ideias de Husserl e Heidegger que absorveu (nem sempre fielmente) na sua juventude, pretende, agora, com o seu novo livro, alinhar e enfileirar nas correntes marxistas, imaginando, por certo, estar a desferir golpes tremendos no Fascismo e na reacção.
Tudo quanto conseguiu, porém, foi escrever uma obra grande, não uma grande obra.
António José de Brito
(In Praça Nova, n.º 3, págs. 1/5, Setembro de 1960)

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