segunda-feira, maio 30, 2005
O PENSAMENTO DE CAMUS
Na sua carta "Révolte et Romantisme", dirigida ao jornal "Libertaire" e inserta no volume "Actuelles II", Alberto Camus esclarece que não é um filósofo.
Isso, todavia, não o impediu de abordar, em várias obras, problemas de indiscutível carácter especulativo, discretear, abundantemente, acerca da fenomenologia, dar a sua opinião acerca de questões gnoseológicas e ontológicas, expor com suficiência certos pontos de vista de Heidegger, Kierkegard, Nietzsche, Husserl, etc., etc.
Julgamos, portanto, que não é possível considerar Camus tão-só um simples literato, mais ou menos talentoso, antes se impõe considerá-lo um escritor que é, igualmente, um pensador, e cujas ideias é lícito, assim, submeter à discussão e analisar.
O seu primeiro ensaio doutrinário — o tão celebrado "Mythe de Sisyphe" — Camus inicia-o com a seguinte frase: «existe apenas um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar que a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia».
Se nos apoiarmos nas asserções do autor de "L`Été", o absurdo, de que nos fala, é tornado qual pressuposto indemonstrado, que utiliza no início do seu estudo. «Nesse sentido pode dizer-se que há nele algo provisório. Nenhuma metafísica, nenhuma crença lhe aparecem ligadas nesse momento».
Simplesmente é-nos muito difícil acreditar na plena sinceridade de tais afirmações pois que Camus, embora proclamando o absurdo algo provisório, vai-lhe atribuindo um carácter de certeza, de evidência, que na realidade, o tornam, em vez de provisório, definitivo e firme. Ele escreve, com efeito: «O meu raciocínio tem que ser fiel à evidência que o acordou. Essa evidência é o absurdo. É o divórcio entre o espírito que deseja e o mundo que desilude, a minha nostalgia de unidade, este universo fragmentário e a contradição que liga o primeiro àquele... Agora o principal está feito. Possuo algumas evidências de que não posso separar-me. O que sei, o que é seguro, o que não posso negar, o que não posso rejeitar, eis o que conta. Posso negar tudo... excepto esse desejo de unidade, esse apetite de soluções, essa exigência de clareza e coesão. Posso refutar tudo no mundo que me rodeia excepto esse caos, esse acaso-rei, e essa divina equivalência que nasce da anarquia... E essas duas certezas, o meu apetite de absoluto e de unidade e a irredutibilidade deste mundo a um princípio racional, sei ainda que as não posso conciliar. Que outra verdade consigo reconhecer sem mentir?»
Significa isto que ao fim e ao cabo, para Camus, o absurdo é uma posição irredutível e insuperável, assente em alicerces inabaláveis. E aqui começam as dificuldades a aparecer. Porque o absurdo é a desarmonia, a existir ontologicamente não permitiria que dela tomássemos conhecimento. Se não fosse admissível reduzir, duma forma ou doutra (cognoscitivamente, v. g.) o universo a um princípio racional, nunca saberíamos que o universo se não reduz a um princípio racional, porquanto a razão através de nenhum princípio seu exprimiria o universo, e estaria, dessa forma, impossibilitada de saber alguma coisa acerca dele. Só se compara o que possui algo de comum. E pôr em paralelo as exigências unificadoras da inteligência e o espectáculo do cosmo, é admitir que a primeira está, de alguma maneira, presente no último e vice-versa, apenas variando os respectivos modos e graus de presença. Mas se a inteligência está no mundo e vice-versa, não é este irredutível à razão — pelo contrário.
O absurdo como evidência, o absurdo como verdade, é, ao formular-se, a negação em acto daquilo que proclama. O absurdo como evidência e verdade, é um princípio, um princípio idêntico aos outros princípios da razão. E sendo um princípio da razão que pretende que o cosmo se não reduz a nenhum princípio racional, em última análise, não passa dum novo princípio racional que pretende traduzir a natureza, a essência do cosmo, ou seja, não passa dum outro princípio racional a que se procura reduzir o mundo.
A proposição de Camus referente à impossível conciliação entre o logos e real: «que outra verdade posso reconhecer sem mentir» — merece ser totalmente invertida. «Não posso deixar de mentir a menos que reconheça outra verdade». Mentir significa aqui estar a sustentar uma coisa e ao mesmo tempo sustentar coisa diferente (consoante é o caso de quem dá a categoria de certeza lógica ao irredutível à certeza lógica e por tal modo o engloba na razão), significa nunca poder deixar de asseverar o que quer que se trate sem, simultaneamente, se estar às ocultas a não asseverar isso, significa, em suma, pôr o sim com um disfarçado não e o não com um disfarçado sim.
Dessas inextricáveis contradições e dilacerações internas nunca se consegue evadir Camus, na medida em que teoriza o absurdo. A sua atitude postula, com igual necessidade, o conhecimento e o fracasso do conhecimento.
E diga-se que, sem grandes subtilezas, o dramaturgo de "Calígula", numa mesma página, quase numa mesma frase, se agarra a estas duas incompatíveis exigências. E ei-lo a bradar, sem hesitações: «Isto é verdadeiro para todo o conhecimento. Excepção feita dos racionalistas de profissão, desespera-se hoje do verdadeiro conhecimento. Se fosse preciso escrever a única história significativa do pensamento humano, seria necessário fazer a dos seus arrependimentos sucessivos e das suas impotências».
De que maneira se consiga descobrir algo de verdadeiro acerca do conhecimento, duvidando do conhecimento verdadeiro, é maravilha que nos deslumbra.
Dentro duma idêntica perspectiva mental Camus assevera-nos que «há verdades mas não a verdade».
Coisa que igualmente nos deslumbra, porquanto, nesse caso, as várias verdades não podem ter relação com a verdade e por que milagre são, então, verdades? Haverá, acaso, verdades sem verdade?
(Note-se que Camus, a determinada altura, nos explica, benignamente: «o raciocínio que este ensaio prossegue deixa inteiramente de lado a atitude espiritual mais divulgada no nosso esclarecido século: a que se apoia no princípio que tudo é razão e que visa dar uma explicação do mundo. É natural apresentar-se uma visão clara deste último desde que se admite que ele em si é clareza». Contudo Camus ensina, também, com insistência: «se eu fosse árvore entre árvores, gato entre animais, esta vida teria um sentido... Eu seria este mundo ao qual me oponho por toda a minha consciência... esta razão tão irrisória é ela que me opõe a toda a criação... o que me parece tão evidente devo mantê-lo»; e noutro passo continua: «o absurdo é a razão lúcida que conhece os seus limites». Em face destes textos, nós ficamos na dúvida, sem saber se Camus achando evidente a oposição entre o mundo e a razão e proclamando lúcida essa atitude, julga a valer estar a deixar de lado — e não a atacar — o racionalismo, ou se limita a divertir-se à custa dos leitores mais ingénuos, quando sustenta estar a deixar de lado a posição racionalista que não faz outra coisa senão atacar).
Não insistamos, porém, no absurdo do conceito que Alberto Camus pretende alçapremar à posição de evidência. Passemos, antes a indagar qual a resposta que dá ao problema do suicídio, a partir do referido conceito.
Semelhante resposta aparece, formulada a meio do "Mythe de Sisyphe": «Posso abordar agora a noção de suicídio. Sente-se já que solução é possível dar-lhe. Tratava-se precedentemente de saber se a vida devia ter um sentido para ser vivida. Torna-se claro agora ao contrário que ela será ainda melhor vivida se não tiver sentido algum. Viver uma experiência, um destino é aceitá-lo plenamente ora não se vive um destino sabendo-o diante de si esse absurdo».
Uma argumentação deste género, não hesitamos em dizer que corresponde a um verdadeiro passe de vermelhinha, sem valor lógico ou ontológico. Se a questão era saber se a vida devia ter um sentido para ser vivida, nada adianta explicar que será, ainda, melhor vivida se não tiver sentido. Talvez uma vida sem sentido seja melhor vivida, mas o problema todo está em saber se a vida merece ou não ser vivida e se para ser vivida necessita ou não possuir um sentido. Uma vida melhor ou pior vivida nestas ou naquelas condições, assenta sempre no pressuposto que está em causa, na sua relação com o sentido que o viver tenha ou não tenha. Vive-se estupendamente no absurdo? Aceitemo-lo. Mas porventura importa viver? E absurdo não representará apenas um estímulo para se viver a vida depois de lhe ter retirado o carácter de valor, ou seja, para viver uma vida que alguém, arbitrariamente, em qualquer momento, possa licitamente transformar em morte?
Não olvidemos que Camus, no início do seu livro, traçava com toda a clareza, e sem equívocos, a interrogação: «a vida vale a pena ser vivida?»
Quando ele escreve «tratava-se precedentemente de saber se a vida devia ter um sentido para ser vivida», ele alude — até o advérbio precedentemente o prova — a essa inequívoca interrogação. Está, pois, a pôr um problema de direito, de legitimidade. E a resposta que lhe dá é uma grosseira resposta de facto.
Às perguntas: «vale a pena viver?», «o absurdo não anula a validade da vida?», Camus responde, numa impressionante confusão: quem viver, vive ainda melhor aceitando o absurdo. E depois disto, prossegue, impante de satisfação, julgando resolvida a dificuldade e trata de extrair uma série de consequências da nova posição que pensa imbatível.
A fragilidade dessa posição veio mais tarde a ser reconhecida, disfarçadamente, pelo ensaísta de "L`envers et l`endroit" na sua outra obra filosófica: "L`Homme Revolté".
Camus, com efeito, reporta-se, expressamente, aos pontos de vista expostos no Mito mantendo que «a conclusão última do raciocínio do absurdo é a rejeição do suicídio». Contudo, duas páginas adiante, após essa satisfação dada ao seu amor-próprio, afirma qualquer coisa de inteiramente diverso e que, implicitamente, destrói essa primeira asserção. E ei-lo que diz: «o absurdo considerado como regra de vida é, pois contraditório... é-o no seu conteúdo, pois que exclui os juízos de valo querendo manter a vida, quando viver é, em si, um juízo de valor. Será extraordinário pois que não nos forneça os valores que decidiram para nós da legitimidade do acto de matar?... O absurdo, como a dúvida metódica, faz tábua rasa. Deixa-nos num impasse».
Em todo o caso, repelido o absurdo enquanto conceito que nos permitia dar uma solução ao problema da vida e da morte, há outro conceito donde tal solução consiga emergir? No entender de Camus, há. Claro que tal conceito apresentado agora, não significa para o novelista de "La Chute" um repúdio dos seus anteriores princípios, uma negação das ideias passadas que implique um mea culpa. Nada disso. Alberto Camus mantém-se fidelíssimo às suas primeiras teses acerca da radical insuperabilidade do absurdo, com todo o notável cortejo de paralogismos que envolvem. O que ele pretende, é que, a partir do absurdo, é possível ir mais além e de certo modo corrigir a ideologia exposta no "Mythe de Sisyphe", através duma noção que desse mesmo absurdo se deduz e extrai com clareza: a noção de revolta. Assim ele assevera: «O absurdo deixa-nos no impasse. Mas como a dúvida, ele pode, volvendo sobre si mesmo, orientar uma nova pesquisa... Eu grito que não acredito em nada e tudo é absurdo, mas não posso duvidar do meu grito e é necessário ao menos crer no meu protesto. A primeira e única experiência absurda é a revolta. A revolta nasce diante do espectáculo da sem-razão, diante duma condição injusta e incompreensível. Porém, o seu ímpeto cego reivindica a ordem no meio do caos e a unidade no meio do que foge e desaparece... A sua preocupação é transformar. Transformar no entanto é agir e agir amanhã é legítimo. Ela engendra justamente as acções que pretendemos que legitime. É preciso pois que a revolta tire as suas razões de si mesma pois que de nada mais as pode tirar».
Que dizer deste novo cogito que Camus nos apresenta? Muito simplesmente o seguinte: em primeiro lugar, considerar que a revolta reivindica a ordem no meio do caos é tudo quanto há de menos exacto. A revolta contra isto ou aquilo, sem dúvida pressupõe a afirmação de certos valores, duma determinada hierarquia que importa restabelecer. Mas a mera noção de revolta? Porque não pode ser esta um protesto total, absoluto? Mais. Não será exactamente um tipo semelhante de revolta a que é possível extrair da noção de absurdo? Pois se o absurdo é consciência duma dilaceração entre as exigências de ordem e unidade do nosso espírito e o caos e desordem do real, a revolta que dela deriva não pode reivindicar uma ordem e uma unidade que sabe sem sentido e existência, e tão só pode constituir uma pura atitude de protesto cósmico, a expressão duma indignação sem limites contra a desarmonia universal, cuja invencibilidade se conhece e contra a qual nada se pretende erguer em concreto, porque nada de ordenado e racional é concebível que tome a ser.
Acresce ainda que o facto da revolta, conforme diz Camus, engendrar, precisamente, as acções que se lhe impõe legitimar, contradiz, em aberto, a pretensão de que possa tirar de si mesma as suas próprias razões. Na verdade, se se lhe impõe legitimar o que engendra, é porque, em si e por si, a revolta não é critério de legitimidade. Se o fosse, o que engendrasse estaria ipso facto legitimado, e não teria sentido a imposição de legitimar o que na sua substância já era legítimo.
Mas se a revolta não é, em si e por si, critério de legitimidade, evidentemente que tem de procurar fora de si um tal critério. E se tem de procurar fora de si um tal critério, não pode tirar de si as suas próprias razões, pois, se assim sucedesse, tudo quanto engendrasse, tudo quanto de si proviesse.
Ora consoante o próprio Camus confessa «é preciso que consinta (a revolta) em examinar-se para que aprenda a conduzir-se». Pois bem! Quando alguém se examina está a submeter-se a uma norma, está implícita ou explicitamente a pressupor uma escala de valores exterior. Por conseguinte, a revolta envolve a submissão a algo de externo e não passa por isso dum falso cogito do qual nada de decisivo se consegue extrair.
Alberto Camus brada que a questão «consiste em saber se toda a revolta deve concluir na justificação do universal morticínio ou pode descobrir o princípio duma culpabilidade razoável»! Não significa este dilema que um morticínio universal não é razoável? E não significa, também, estar já a enquadrar sub-repticiamente o resultado da análise da revolta num certo prisma axiológico? Ao fim e ao cabo, Camus vai, apenas, extrair da revolta o que julga razoável. E em função de quê estabelece o que julga razoável? Expressamente, em função desse mesmo estudo da revolta, e ocultamente (pois que o estudo da revolta é já previamente orientado só para o razoável) em função do que o seu espírito aceita ou repudia, a seu bel-prazer, do que lhe agrada ou desagrada (pois se estuda a revolta com parti pris, não possui, ainda uma regra logicamente estabelecida). O círculo vicioso e a arbitrariedade que este, inevitavelmente, acarreta no desenvolvimento duma tese, são o cerne das considerações de Camus. Arbitrariedade nítida e bem visível. O autor do "Mythe de Sisyphe" proclama revoltados — e nessa qualidade deles se ocupa — a determinados escritores que perfilharam atitudes impossíveis de harmonizar, de englobar, no conceito de revolta que defende, e, por outro lado, em nome do seu conceito de revolta chama à ordem os escritores que começara por considerar lídimos exemplares da dita revolta. Enfim, uma prodigiosa e fabulosa confusão.
De qualquer forma, debaixo do incoerente manto do absurdo e da revolta, apetrechos duma dialéctica que pretende moderna, o que Camus deseja inserir e justificar é a sua ideologia pessoal, a ideologia que professa e ama sem argumentos, por impulsos incontrolados. O absurdo e a revolta são o disfarce e, sob eles, a dirigi-los sem nenhuma lógica, mas com um forte pathos (aliás inimigo da primeira e arrastando a flagrantes paralogismos) situa-se, pura e simplesmente, o ethos dum «quarent`huitard», com o seu humanitarismo, o seu culto fanático pelo Homem (com maiúscula) e os seus direitos individuais imprescritíveis e improrrogáveis.
Camus, à laia dum Michelet, dum Quinet e tantos outros, adora a Humanidade (com maiúscula). Respeita, de chapéu na mão, e em posição de sentido, todo e qualquer homem, desde o banto ao dr. Petiot, excepção feita aos abomináveis totalitários que não professam idêntica religião e que, por isso, amaldiçoa, com furor, pouco lhe importando que sejam também homens. Nada odeia, salvo, claro, o ódio, cuja corporização, já se sabe, está nas experiências nacional-socialista e fascista. As suas "Lettres a un ami Allemand" são extremamente típicas e significativas. Aí ele proclama ignorar o que é a verdade e o que é o espírito, mas quando se trata do homem grita logo para o interlocutor: «nesta altura, detenho-vos porque isso nós sabemo-lo». Sabe o que é o homem, embora desconheça o que é a verdade. Admirável saber esse, um saber sem verdade. E com base em saber de tal ordem acerca do homem, Camus proclama este último, de forma mais admirável ainda, «razão única deste mundo», esquecendo-se, no seu entusiasmo, que essa razão única do mundo foi a criadora do Nacional-Socialismo execrado (execrado em nome do mesmo homem, é óbvio). Sim, porque o nazi e até um denominado Alberto Camus lhe chama «o homem da injustiça».
Estas as linhas fundamentais do pensamento do celebrado prosador de "La Peste". Fragilíssimas e terrivelmente débeis. Não admira, por isso, que um intelecto que assenta satisfeito em tão desequilibradas premissas, não seja altamente feliz no desenvolvimento e elaboração dos seus trabalhos. Assim, ao falar-nos de Nietzsche e Husserl, Camus oferece-nos uma visão assaz simplista e deformada das concepções desses filósofos e, no que respeita a Hegel, expõe-lhe a dialéctica dando-lhe como termo supremo o Estado e deixando no tinteiro o Espírito Absoluto.
Fossem sólidos os pontos de partida adoptados e estes factos (e outros análogos), conquanto lastimáveis, não possuiriam uma importância de maior. Não é isso o que se passa, no entanto.
O Camus literato será, acaso, um grande génio, merecedor de quantas consagrações haja. O seu valor estilístico e estético é assunto que não discutimos sequer, embora, pessoalmente, julguemos que um Malraux, um Céline, um Drieu, um Montherlant, um Morand, possuem, como escritores, outra envergadura e outro nível e categoria, bem superiores. Pouco importa, porém. O Camus literato será um talento sem par. Mas o que temos por certo e seguro é que o Camus pensador não passa dum minúsculo vermezinho, um M. Homais da filosofia.
António José de Brito
(In Praça Nova, n.º 1, pág. 4/7, Julho de 1960)
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Isso, todavia, não o impediu de abordar, em várias obras, problemas de indiscutível carácter especulativo, discretear, abundantemente, acerca da fenomenologia, dar a sua opinião acerca de questões gnoseológicas e ontológicas, expor com suficiência certos pontos de vista de Heidegger, Kierkegard, Nietzsche, Husserl, etc., etc.
Julgamos, portanto, que não é possível considerar Camus tão-só um simples literato, mais ou menos talentoso, antes se impõe considerá-lo um escritor que é, igualmente, um pensador, e cujas ideias é lícito, assim, submeter à discussão e analisar.
O seu primeiro ensaio doutrinário — o tão celebrado "Mythe de Sisyphe" — Camus inicia-o com a seguinte frase: «existe apenas um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar que a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia».
Se nos apoiarmos nas asserções do autor de "L`Été", o absurdo, de que nos fala, é tornado qual pressuposto indemonstrado, que utiliza no início do seu estudo. «Nesse sentido pode dizer-se que há nele algo provisório. Nenhuma metafísica, nenhuma crença lhe aparecem ligadas nesse momento».
Simplesmente é-nos muito difícil acreditar na plena sinceridade de tais afirmações pois que Camus, embora proclamando o absurdo algo provisório, vai-lhe atribuindo um carácter de certeza, de evidência, que na realidade, o tornam, em vez de provisório, definitivo e firme. Ele escreve, com efeito: «O meu raciocínio tem que ser fiel à evidência que o acordou. Essa evidência é o absurdo. É o divórcio entre o espírito que deseja e o mundo que desilude, a minha nostalgia de unidade, este universo fragmentário e a contradição que liga o primeiro àquele... Agora o principal está feito. Possuo algumas evidências de que não posso separar-me. O que sei, o que é seguro, o que não posso negar, o que não posso rejeitar, eis o que conta. Posso negar tudo... excepto esse desejo de unidade, esse apetite de soluções, essa exigência de clareza e coesão. Posso refutar tudo no mundo que me rodeia excepto esse caos, esse acaso-rei, e essa divina equivalência que nasce da anarquia... E essas duas certezas, o meu apetite de absoluto e de unidade e a irredutibilidade deste mundo a um princípio racional, sei ainda que as não posso conciliar. Que outra verdade consigo reconhecer sem mentir?»
Significa isto que ao fim e ao cabo, para Camus, o absurdo é uma posição irredutível e insuperável, assente em alicerces inabaláveis. E aqui começam as dificuldades a aparecer. Porque o absurdo é a desarmonia, a existir ontologicamente não permitiria que dela tomássemos conhecimento. Se não fosse admissível reduzir, duma forma ou doutra (cognoscitivamente, v. g.) o universo a um princípio racional, nunca saberíamos que o universo se não reduz a um princípio racional, porquanto a razão através de nenhum princípio seu exprimiria o universo, e estaria, dessa forma, impossibilitada de saber alguma coisa acerca dele. Só se compara o que possui algo de comum. E pôr em paralelo as exigências unificadoras da inteligência e o espectáculo do cosmo, é admitir que a primeira está, de alguma maneira, presente no último e vice-versa, apenas variando os respectivos modos e graus de presença. Mas se a inteligência está no mundo e vice-versa, não é este irredutível à razão — pelo contrário.
O absurdo como evidência, o absurdo como verdade, é, ao formular-se, a negação em acto daquilo que proclama. O absurdo como evidência e verdade, é um princípio, um princípio idêntico aos outros princípios da razão. E sendo um princípio da razão que pretende que o cosmo se não reduz a nenhum princípio racional, em última análise, não passa dum novo princípio racional que pretende traduzir a natureza, a essência do cosmo, ou seja, não passa dum outro princípio racional a que se procura reduzir o mundo.
A proposição de Camus referente à impossível conciliação entre o logos e real: «que outra verdade posso reconhecer sem mentir» — merece ser totalmente invertida. «Não posso deixar de mentir a menos que reconheça outra verdade». Mentir significa aqui estar a sustentar uma coisa e ao mesmo tempo sustentar coisa diferente (consoante é o caso de quem dá a categoria de certeza lógica ao irredutível à certeza lógica e por tal modo o engloba na razão), significa nunca poder deixar de asseverar o que quer que se trate sem, simultaneamente, se estar às ocultas a não asseverar isso, significa, em suma, pôr o sim com um disfarçado não e o não com um disfarçado sim.
Dessas inextricáveis contradições e dilacerações internas nunca se consegue evadir Camus, na medida em que teoriza o absurdo. A sua atitude postula, com igual necessidade, o conhecimento e o fracasso do conhecimento.
E diga-se que, sem grandes subtilezas, o dramaturgo de "Calígula", numa mesma página, quase numa mesma frase, se agarra a estas duas incompatíveis exigências. E ei-lo a bradar, sem hesitações: «Isto é verdadeiro para todo o conhecimento. Excepção feita dos racionalistas de profissão, desespera-se hoje do verdadeiro conhecimento. Se fosse preciso escrever a única história significativa do pensamento humano, seria necessário fazer a dos seus arrependimentos sucessivos e das suas impotências».
De que maneira se consiga descobrir algo de verdadeiro acerca do conhecimento, duvidando do conhecimento verdadeiro, é maravilha que nos deslumbra.
Dentro duma idêntica perspectiva mental Camus assevera-nos que «há verdades mas não a verdade».
Coisa que igualmente nos deslumbra, porquanto, nesse caso, as várias verdades não podem ter relação com a verdade e por que milagre são, então, verdades? Haverá, acaso, verdades sem verdade?
(Note-se que Camus, a determinada altura, nos explica, benignamente: «o raciocínio que este ensaio prossegue deixa inteiramente de lado a atitude espiritual mais divulgada no nosso esclarecido século: a que se apoia no princípio que tudo é razão e que visa dar uma explicação do mundo. É natural apresentar-se uma visão clara deste último desde que se admite que ele em si é clareza». Contudo Camus ensina, também, com insistência: «se eu fosse árvore entre árvores, gato entre animais, esta vida teria um sentido... Eu seria este mundo ao qual me oponho por toda a minha consciência... esta razão tão irrisória é ela que me opõe a toda a criação... o que me parece tão evidente devo mantê-lo»; e noutro passo continua: «o absurdo é a razão lúcida que conhece os seus limites». Em face destes textos, nós ficamos na dúvida, sem saber se Camus achando evidente a oposição entre o mundo e a razão e proclamando lúcida essa atitude, julga a valer estar a deixar de lado — e não a atacar — o racionalismo, ou se limita a divertir-se à custa dos leitores mais ingénuos, quando sustenta estar a deixar de lado a posição racionalista que não faz outra coisa senão atacar).
Não insistamos, porém, no absurdo do conceito que Alberto Camus pretende alçapremar à posição de evidência. Passemos, antes a indagar qual a resposta que dá ao problema do suicídio, a partir do referido conceito.
Semelhante resposta aparece, formulada a meio do "Mythe de Sisyphe": «Posso abordar agora a noção de suicídio. Sente-se já que solução é possível dar-lhe. Tratava-se precedentemente de saber se a vida devia ter um sentido para ser vivida. Torna-se claro agora ao contrário que ela será ainda melhor vivida se não tiver sentido algum. Viver uma experiência, um destino é aceitá-lo plenamente ora não se vive um destino sabendo-o diante de si esse absurdo».
Uma argumentação deste género, não hesitamos em dizer que corresponde a um verdadeiro passe de vermelhinha, sem valor lógico ou ontológico. Se a questão era saber se a vida devia ter um sentido para ser vivida, nada adianta explicar que será, ainda, melhor vivida se não tiver sentido. Talvez uma vida sem sentido seja melhor vivida, mas o problema todo está em saber se a vida merece ou não ser vivida e se para ser vivida necessita ou não possuir um sentido. Uma vida melhor ou pior vivida nestas ou naquelas condições, assenta sempre no pressuposto que está em causa, na sua relação com o sentido que o viver tenha ou não tenha. Vive-se estupendamente no absurdo? Aceitemo-lo. Mas porventura importa viver? E absurdo não representará apenas um estímulo para se viver a vida depois de lhe ter retirado o carácter de valor, ou seja, para viver uma vida que alguém, arbitrariamente, em qualquer momento, possa licitamente transformar em morte?
Não olvidemos que Camus, no início do seu livro, traçava com toda a clareza, e sem equívocos, a interrogação: «a vida vale a pena ser vivida?»
Quando ele escreve «tratava-se precedentemente de saber se a vida devia ter um sentido para ser vivida», ele alude — até o advérbio precedentemente o prova — a essa inequívoca interrogação. Está, pois, a pôr um problema de direito, de legitimidade. E a resposta que lhe dá é uma grosseira resposta de facto.
Às perguntas: «vale a pena viver?», «o absurdo não anula a validade da vida?», Camus responde, numa impressionante confusão: quem viver, vive ainda melhor aceitando o absurdo. E depois disto, prossegue, impante de satisfação, julgando resolvida a dificuldade e trata de extrair uma série de consequências da nova posição que pensa imbatível.
A fragilidade dessa posição veio mais tarde a ser reconhecida, disfarçadamente, pelo ensaísta de "L`envers et l`endroit" na sua outra obra filosófica: "L`Homme Revolté".
Camus, com efeito, reporta-se, expressamente, aos pontos de vista expostos no Mito mantendo que «a conclusão última do raciocínio do absurdo é a rejeição do suicídio». Contudo, duas páginas adiante, após essa satisfação dada ao seu amor-próprio, afirma qualquer coisa de inteiramente diverso e que, implicitamente, destrói essa primeira asserção. E ei-lo que diz: «o absurdo considerado como regra de vida é, pois contraditório... é-o no seu conteúdo, pois que exclui os juízos de valo querendo manter a vida, quando viver é, em si, um juízo de valor. Será extraordinário pois que não nos forneça os valores que decidiram para nós da legitimidade do acto de matar?... O absurdo, como a dúvida metódica, faz tábua rasa. Deixa-nos num impasse».
Em todo o caso, repelido o absurdo enquanto conceito que nos permitia dar uma solução ao problema da vida e da morte, há outro conceito donde tal solução consiga emergir? No entender de Camus, há. Claro que tal conceito apresentado agora, não significa para o novelista de "La Chute" um repúdio dos seus anteriores princípios, uma negação das ideias passadas que implique um mea culpa. Nada disso. Alberto Camus mantém-se fidelíssimo às suas primeiras teses acerca da radical insuperabilidade do absurdo, com todo o notável cortejo de paralogismos que envolvem. O que ele pretende, é que, a partir do absurdo, é possível ir mais além e de certo modo corrigir a ideologia exposta no "Mythe de Sisyphe", através duma noção que desse mesmo absurdo se deduz e extrai com clareza: a noção de revolta. Assim ele assevera: «O absurdo deixa-nos no impasse. Mas como a dúvida, ele pode, volvendo sobre si mesmo, orientar uma nova pesquisa... Eu grito que não acredito em nada e tudo é absurdo, mas não posso duvidar do meu grito e é necessário ao menos crer no meu protesto. A primeira e única experiência absurda é a revolta. A revolta nasce diante do espectáculo da sem-razão, diante duma condição injusta e incompreensível. Porém, o seu ímpeto cego reivindica a ordem no meio do caos e a unidade no meio do que foge e desaparece... A sua preocupação é transformar. Transformar no entanto é agir e agir amanhã é legítimo. Ela engendra justamente as acções que pretendemos que legitime. É preciso pois que a revolta tire as suas razões de si mesma pois que de nada mais as pode tirar».
Que dizer deste novo cogito que Camus nos apresenta? Muito simplesmente o seguinte: em primeiro lugar, considerar que a revolta reivindica a ordem no meio do caos é tudo quanto há de menos exacto. A revolta contra isto ou aquilo, sem dúvida pressupõe a afirmação de certos valores, duma determinada hierarquia que importa restabelecer. Mas a mera noção de revolta? Porque não pode ser esta um protesto total, absoluto? Mais. Não será exactamente um tipo semelhante de revolta a que é possível extrair da noção de absurdo? Pois se o absurdo é consciência duma dilaceração entre as exigências de ordem e unidade do nosso espírito e o caos e desordem do real, a revolta que dela deriva não pode reivindicar uma ordem e uma unidade que sabe sem sentido e existência, e tão só pode constituir uma pura atitude de protesto cósmico, a expressão duma indignação sem limites contra a desarmonia universal, cuja invencibilidade se conhece e contra a qual nada se pretende erguer em concreto, porque nada de ordenado e racional é concebível que tome a ser.
Acresce ainda que o facto da revolta, conforme diz Camus, engendrar, precisamente, as acções que se lhe impõe legitimar, contradiz, em aberto, a pretensão de que possa tirar de si mesma as suas próprias razões. Na verdade, se se lhe impõe legitimar o que engendra, é porque, em si e por si, a revolta não é critério de legitimidade. Se o fosse, o que engendrasse estaria ipso facto legitimado, e não teria sentido a imposição de legitimar o que na sua substância já era legítimo.
Mas se a revolta não é, em si e por si, critério de legitimidade, evidentemente que tem de procurar fora de si um tal critério. E se tem de procurar fora de si um tal critério, não pode tirar de si as suas próprias razões, pois, se assim sucedesse, tudo quanto engendrasse, tudo quanto de si proviesse.
Ora consoante o próprio Camus confessa «é preciso que consinta (a revolta) em examinar-se para que aprenda a conduzir-se». Pois bem! Quando alguém se examina está a submeter-se a uma norma, está implícita ou explicitamente a pressupor uma escala de valores exterior. Por conseguinte, a revolta envolve a submissão a algo de externo e não passa por isso dum falso cogito do qual nada de decisivo se consegue extrair.
Alberto Camus brada que a questão «consiste em saber se toda a revolta deve concluir na justificação do universal morticínio ou pode descobrir o princípio duma culpabilidade razoável»! Não significa este dilema que um morticínio universal não é razoável? E não significa, também, estar já a enquadrar sub-repticiamente o resultado da análise da revolta num certo prisma axiológico? Ao fim e ao cabo, Camus vai, apenas, extrair da revolta o que julga razoável. E em função de quê estabelece o que julga razoável? Expressamente, em função desse mesmo estudo da revolta, e ocultamente (pois que o estudo da revolta é já previamente orientado só para o razoável) em função do que o seu espírito aceita ou repudia, a seu bel-prazer, do que lhe agrada ou desagrada (pois se estuda a revolta com parti pris, não possui, ainda uma regra logicamente estabelecida). O círculo vicioso e a arbitrariedade que este, inevitavelmente, acarreta no desenvolvimento duma tese, são o cerne das considerações de Camus. Arbitrariedade nítida e bem visível. O autor do "Mythe de Sisyphe" proclama revoltados — e nessa qualidade deles se ocupa — a determinados escritores que perfilharam atitudes impossíveis de harmonizar, de englobar, no conceito de revolta que defende, e, por outro lado, em nome do seu conceito de revolta chama à ordem os escritores que começara por considerar lídimos exemplares da dita revolta. Enfim, uma prodigiosa e fabulosa confusão.
De qualquer forma, debaixo do incoerente manto do absurdo e da revolta, apetrechos duma dialéctica que pretende moderna, o que Camus deseja inserir e justificar é a sua ideologia pessoal, a ideologia que professa e ama sem argumentos, por impulsos incontrolados. O absurdo e a revolta são o disfarce e, sob eles, a dirigi-los sem nenhuma lógica, mas com um forte pathos (aliás inimigo da primeira e arrastando a flagrantes paralogismos) situa-se, pura e simplesmente, o ethos dum «quarent`huitard», com o seu humanitarismo, o seu culto fanático pelo Homem (com maiúscula) e os seus direitos individuais imprescritíveis e improrrogáveis.
Camus, à laia dum Michelet, dum Quinet e tantos outros, adora a Humanidade (com maiúscula). Respeita, de chapéu na mão, e em posição de sentido, todo e qualquer homem, desde o banto ao dr. Petiot, excepção feita aos abomináveis totalitários que não professam idêntica religião e que, por isso, amaldiçoa, com furor, pouco lhe importando que sejam também homens. Nada odeia, salvo, claro, o ódio, cuja corporização, já se sabe, está nas experiências nacional-socialista e fascista. As suas "Lettres a un ami Allemand" são extremamente típicas e significativas. Aí ele proclama ignorar o que é a verdade e o que é o espírito, mas quando se trata do homem grita logo para o interlocutor: «nesta altura, detenho-vos porque isso nós sabemo-lo». Sabe o que é o homem, embora desconheça o que é a verdade. Admirável saber esse, um saber sem verdade. E com base em saber de tal ordem acerca do homem, Camus proclama este último, de forma mais admirável ainda, «razão única deste mundo», esquecendo-se, no seu entusiasmo, que essa razão única do mundo foi a criadora do Nacional-Socialismo execrado (execrado em nome do mesmo homem, é óbvio). Sim, porque o nazi e até um denominado Alberto Camus lhe chama «o homem da injustiça».
Estas as linhas fundamentais do pensamento do celebrado prosador de "La Peste". Fragilíssimas e terrivelmente débeis. Não admira, por isso, que um intelecto que assenta satisfeito em tão desequilibradas premissas, não seja altamente feliz no desenvolvimento e elaboração dos seus trabalhos. Assim, ao falar-nos de Nietzsche e Husserl, Camus oferece-nos uma visão assaz simplista e deformada das concepções desses filósofos e, no que respeita a Hegel, expõe-lhe a dialéctica dando-lhe como termo supremo o Estado e deixando no tinteiro o Espírito Absoluto.
Fossem sólidos os pontos de partida adoptados e estes factos (e outros análogos), conquanto lastimáveis, não possuiriam uma importância de maior. Não é isso o que se passa, no entanto.
O Camus literato será, acaso, um grande génio, merecedor de quantas consagrações haja. O seu valor estilístico e estético é assunto que não discutimos sequer, embora, pessoalmente, julguemos que um Malraux, um Céline, um Drieu, um Montherlant, um Morand, possuem, como escritores, outra envergadura e outro nível e categoria, bem superiores. Pouco importa, porém. O Camus literato será um talento sem par. Mas o que temos por certo e seguro é que o Camus pensador não passa dum minúsculo vermezinho, um M. Homais da filosofia.
António José de Brito
(In Praça Nova, n.º 1, pág. 4/7, Julho de 1960)
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