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sábado, maio 28, 2005

OS RUMOS DA HISTÓRIA 

É um espectáculo comovedor ver um grande número de pessoas, que se declaram e são conservadoras, reprovar, com energia, quaisquer ataques às ideologias reinantes no mundo, em nome das exigências do equilíbrio e da prudência. Dizem elas que é totalmente inútil opor-se às correntes dominantes e, além de inútil, perigoso, porque uma tentativa de modificar ou deter os rumos da história pode causar perturbações graves e comoções sociais tremendas. E, assim, ei-las a atacar, com o rancor e a força que a sua congénita falta de coragem lhes permite, todos os esforços dos que, pela acção, ou até apenas pela palavra escrita, ou falada, procuram, além de pôr um dique à desorientação reinante, aplicar os remédios necessários para um retorno aos caminhos perdidos da dignidade e da inteligência. Sem grande convicção interior, sequer, lá seguem essas pessoas atrás do cortejo revolucionário, marchando, com um falso entusiasmo, aos vivas à auto-determinação, aos direitos da pessoa humana, à democracia e sobretudo à Liberdade com um enorme L maiúsculo.
Simplesmente o que é muito escandaloso e estranho é que tão dignos conservadores se esqueçam que a liberdade consiste precisamente na faculdade de criticar autonomamente, de escolher por nós mesmos, de recusar pressões exteriores, de combater o que pretende impor-se só por possuir existência e força. Se exigem que aceitemos a liberdade em nome da irresistibilidade das correntes ideológicas da nossa época, convém logo recordar-lhes que, se as correntes ideológicas da nossa época se concretizam na ideia de liberdade, proíbem-nos precisamente que aceitemos algo pelo simples facto de existir, pela sua mera irresistibilidade, passivamente, sem lhe analisarmos o valor.
Os senhores conservadores não compreendem que acatar o espírito da revolução por conservantismo é tão contraditório e absurdo como pretender desenhar um círculo quadrado. Aliás, os senhores avançados, por seu turno, também não entendem que o ideal de Liberdade, que proclamam valor em si, envolve, necessariamente, o direito de repudiar e negar esse ideal, fazendo nascer uma contradição, um absurdo em nada inferiores ao que acabamos de denunciar.
De qualquer maneira, o irrecusável é que somos nós, os que repudiamos as mitologias hoje reinantes, quem está de acordo com o rumo da história na nossa época, tal qual os conservadores julgam que ele está traçado. Pois se imaginam que a hora é da crítica e da autonomia, parece que nós, formulando até autonomamente a crítica, estamos a dar o mais radical cumprimento aos mais fundos imperativos do ethos da idade contemporânea.
No entanto, acontece que o verdadeiro índice da mentalidade do nosso tempo não é a valer, o gosto da crítica pela crítica, levado ao paroxismo, ou o culto da autonomia mental projectado à sua máxima dimensão. A grande característica do nosso tempo é o fanatismo na inconsequência traduzido num entusiasmo tão furioso pela democracia e pela liberdade que não permite que ninguém, que a não venere e não divinize, possa ser respeitável e normal. Estamos, em suma, perante o mais dogmático dos amores à crítica e da mais imposta e heterónoma exaltação da autonomia. E este paralogismo é o que encontramos já, sob uma outra variante, nos meios conservadores, que pretendem fazer-nos respeitar a revolução por imperativos de imobilismo, de tranquilidade e de paz.
De resto, conservadores e não conservadores, todos unidos na exaltação do respeito pela pessoa humana, e dos direitos do homem, precipitam-se sobre as pobres pessoas humanas, que não se acham dignas de respeito só por serem pessoas, e sobre os pobres homens que pensam modestamente que só por serem homens não têm direitos alguns, e proclamam-nos monstros temerosos, satânicos, fulminando-os com terríveis excomunhões e aconselhando (ainda que adversários fervorosos da Inquisição) a rápida entrega dos mesmos ao braço secular. Os entusiastas da pessoa e do homem para as pessoas e os homens que não experimentam idêntico entusiasmo reclamam severas sanções. E se as vítimas se agitam um pouco e não vão de boa vontade para o sacrifício os não conservadores personalistas solicitam o terror e obtêm-no. Foi assim depois de 1789, a seguir à tomada da Bastilha, foi assim depois de 1917 na U.R.S.S., foi assim depois de 1945 por essa Europa fora, benemeritamente adornada de forcas pelos vencedores, nos escombros das cidades bombardeadas e incendiadas. E a apoiar todos os excessos, a aconselhar que não se lhes tente pôr cobro deparamos com os personalistas conservadores que para evitar a guerra civil recomendam a calma e serenidade face a todos os eventos até os mais revoltantes. À guerra civil preferem sempre o massacre civil.
Pode-se perante tudo isto deixar de classificar a nossa época como a época da inconsciência lógica e do paradoxo?
Não é este diagnóstico confirmado por tantos outros aspectos da vida contemporânea? Não deparamos, por exemplo nos nossos dias com uns tantos que, deliberadamente, intencionalmente, tendo semeado ventos, aparecem, com ar de vestais, muito admirados por as tempestades surgirem?
O Sr. Maritain, que é o capitão-mor espiritual dessa atitude nos ambientes católicos, dá-nos o gostoso espectáculo das suas tentativas no sentido de abrandar e acalmar quantos, na nova geração, seguindo o seu rumo, acabaram por passar-lhe à frente só porque mais ligeiros e velozes. Não descobre ou não quer descobrir, no entanto, que os males, contra os quais se insurge, têm causas precisas e objectivas, dentre elas destacando-se a actuação dele próprio, Maritain, e também o aplauso e a audiência que lhe dispensaram em determinados meios. E é reiterando, solenemente, os paralogismos e os mitos que estão na raiz dos erros que o preocupam, que o sr. Maritain procura combater estes últimos. Continuamos a ouvir-lhe com insistência os mesmos rançosos brados em prol da dignidade intrínseca da pessoa humana, da emancipação do homem, os mesmos ataques às concepções ditas constantinianas do Estado, às doutrinas da não separação entre o poder temporal e o espiritual, etc.
S. Exa. não se apercebeu, ainda, que se a pessoa humana possui um valor intrínseco, vale independentemente da posição que assumir em relação à transcendência divina. E, nessa altura, só restam dois caminhos: ou suprimir a obrigatoriedade da ordenação ao Deus transcendente ou identificar pessoa humana e divindade e reduzir o reino de Deus à busca e satisfação das exigências da pessoa humana. Sua Excelência não se apercebeu, igualmente, que, se não se ensinar que os únicos direitos que o homem tem derivam dos deveres para com Deus, o grande número julgará, com bastante aparência de razão, que entre Deus e os direitos do homem há uma identidade fundamental, que é obra religiosa a luta política em que se reclame direitos, e que a O.N.U., onde elaborou uma das últimas e ultra asmáticas Cartas de Direitos, é templo de uma fé fora da qual não há salvação.
O Sr. Maritain e os que o seguem — e que por vezes o citam mais do que ao Evangelho — sustenta a tese da despolitização da Igreja. É pena que se esqueça que foi ele quem se arvorou em profeta de uma nova Cristandade em que cabiam os não cristãos e em que o traço de união entre crentes e não crentes seria a realização de determinadas tarefas temporais. Que admira que daí se concluísse que a ortodoxia é o menos e que o verdadeiro espírito cristão está nas formas democráticas e personalistas de conceber a vida, com a consequente politização da acção religiosa?
Alguns sequazes de Maritain, apoiando-o nos seus votos despolitizadores, garantem que, na esfera local das suas competências, a Igreja se não politizou. Acredito-o firmemente. Perante regimes autoritários em que o Estado se dispunha a ser um corpo de que a Igreja fosse a alma, não há dúvida que esta marcou sempre as suas distâncias e se colocou em sábia reserva.
Que dizer, porém, da intoxicação política nas esferas eclesiásticas quando se trata dos dogmas das potências que triunfaram em 1945?
Um dos admiradores de Maritain pôde escrever, em 1946, ou 47, com inteira tranquilidade e julgo que boa fé, «todos se reclamam da democracia». Quer dizer: para ele os outros, os mordidos da peste fascista não existiam. Todos, no seu entender, eram evidentemente os vencedores, os que no momento tripudiavam, falavam, piruetizavam. Os restantes, os que padeciam nas enxovias, os que nos cárceres aguardavam o fuzilamento, os que no nosso país eram escarnecidos e afastados por não desejarem renegar as suas ideias e os seus camaradas, esses nada eram ou nada importavam. Siete tutti democratici... quer queirais quer não.
E sobre as origens da guerra, a pretensa exterminação dos judeus, os excessos do Fascismo e do Nazismo, não foram e são perfilhados na Igreja, com impressionante generalidade e difundidos entre os fiéis, os pontos de vista divulgados pela propaganda dos que venceram, pontos de vista de um claro e inexcedível facciosismo? Não nos consta que o sr. Maritain protestasse contra tal politização. Ao invés foi um dos seus mais ardentes artífices. Em lugar de pregar discrição e objectividade face à história actual, escrita sob o signo do mais forte e em que os vencidos mal podem fazer escutar a sua voz, enfileirou entre os fautores da calúnia e da difamação. E não temos conhecimento que a sua voz, ou vozes autorizadas se erguessem, com ressonância, na Igreja, a condenar as inúmeras e incontestadas (porque, sem coacção, confessadas pelos próprios) atrocidades e barbaridades democráticas cometidas de 1939 até aos nossos dias. Tanto se protesta contra pseudo-crimes dos totalitários quando se faz discreto silêncio sobre inequívocas monstruosidades dos que venceram. Não é isto sinal claro de politização? Bem gostaríamos nós de a ver banida, de semelhante ao que foi descrito por Michel de Saint-Pierre, em Sainte-Colére, no tocante ao acolhimento dado aos franceses da Argélia pela quase totalidade do clero. Pelos vistos, porque não acredita no absurdo princípio da autodeterminação, essa população abandonada, traída, arrancada pela força aos seus lares, não possuía direitos, já não era composta de pessoas humanas com uma infinita dignidade. Dignidade só a tinham os terroristas do F.L.N., ou os que, perjurando, procuravam mutilar o território da pátria. E sobre os militares que, por fidelidade à palavra dada, à Constituição, à nação, se revoltaram contra um poder tirânico e ilegítimo, choveram imprecações e maldições. Também não eram pessoas humanas nem mereciam ao menos caridade cristã.
O diálogo tão citado tem, apenas, um interlocutor — o progressista, o homem das esquerdas. Dessa manifesta politização não falam, infelizmente, os adversários da politização da Igreja, os que desdenham dos carneiros de Panúrgio e enfileiram no triste rebanho dos que ao fascista e ao colonialista nem sequer querem reconhecer um resto humano.
António José de Brito
(In «Agora», n.º 334, pág. 12, ano VIII, 09.12.1967)

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