<$BlogRSDURL$>

segunda-feira, maio 30, 2005

PENSAMENTO, VALOR, DIALÉCTICA 

Uma das objecções correntes contra o idealismo é a seguinte: se o pensamento é a realidade, a inteira realidade, o pensamento é, também e simultaneamente, o erro, a loucura, etc.; e se o erro, a loucura, etc, são pensamento tanto quanto o são a verdade e o bom-senso, nesse caso são a mesma coisa e como distinguir então a verdade do erro e a loucura do bom senso? Todo o racional é real e todo o real é racional, ensina Hegel. Logo é racional o próprio irracional e se é racional o irracional, tudo é racional; e se tudo é racional nada é irracional e ao fim e ao cabo nada é racional porque nenhuma diferença surge a separar o irracional do racional. Assim o racional identificado com o Todo destrói-se a si mesmo. O idealismo conduz à equiparação do idealismo e do seu oposto. Para o idealista o anti-idealismo tem de ser pensamento tal qual o é o idealismo. Ora sucedendo que ele tem por único critério de certeza o pensamento, cuja validade não pode ser aferida por algo de extrínseco, eis ipso facto que idealismo e anti-idealismo se equivalem. E se se equivalem então o idealismo encerra em si a auto-destruição das suas pretensões a atitude filosófica verdadeira.
Numa palavra: o pensamento contém no seu seio o não-valor e por consequência jamais poderá representar o valor máximo que decida da validade das posições filosóficas a adoptar. Se procurarmos identificar valor e pensamento que, no caso do idealismo, é sinónimo de realidade, chegamos à identificação do valor com o não valor — pois que são igualmente realidade — o que é absurdo, impossível. Valor e realidade, por mais que se pretenda, não se podem confundir, antes em certa medida tem sempre de se separar — separação indispensável para que não haja confusão e aniquilamento de ambos os termos.
Esta argumentação anti-idealista firma-se, essencialmente, nas premissas que passamos a indicar: 1) que realidade e pensamento ambos são sinónimos de unidade geral compacta e indistinta onde tudo se equivale (assim, considerar pensamento o erro e a verdade será não os distinguir, e considerar real o racional e o irracional será confundi-los); 2) que o valor só se concebe na oposição ao não-valor; 3) que sem o critério fixo do que é ou não valioso se cai, forçosamente, no absurdo e na confusão.
Procuremos analisar brevemente tais premissas. Comecemos por notar que na base das duas últimas se encontra implícita a imprescindibilidade da oposição. Se nada se opõe a nada, se não há aquilo que tem valor e aquilo que o não tem, estamos em plena auto-contradição, no caos mental. E, realmente, a destrinça entre o que vale e o que não vale é algo de insuperável e imprescindível. Negá-la é afirmá-la, porque negá-la é considerá-la não válida e, assim, no acto em que é negada, reaparece a destrinça. E fazer abstracção dela? É ainda negar — negar o interesse da destrinça, e ei-la, de novo, a renascer nessa negação, visto que sustentar que não interessa é o mesmo que dizer que não tem valor. Mas se pura e simplesmente se duvidar, se se hesitar acerca da referida destrinça? Equivale isso a uma recusa a afirmá-la, negá-la ou pô-la de lado, uma recusa, enfim, a tomar toda e qualquer atitude definida acerca do problema. Essa recusa enquanto recusa, é uma negação — negação disfarçada e subreptícia — da validez das restantes posições, renascendo, assim, uma vez mais, a oposição entre o que vale e o que não vale, acerca da qual se pretendia uma abstenção plena.
Se o hesitante, o dubitativo, o céptico acerca de certa questão, perfilhasse também, por um só instante, uma posição definida a respeito dela, nesse instante mesmo a hesitação, a dúvida, desapareciam, porque teria desaparecido aquilo que as distingue das restantes atitudes. A hesitação, a dúvida, só o são se forem impermeabilidade às certezas positivas ou negativas, mas nesse esforço transformam-se em afirmações ou negações: a afirmação ou negação de quem julga ou garante nada afirmar ou negar.
Aceitemos, em consequência, a inultrapassabilidade da destrinça entre o válido e o não válido. Chegados aqui, reparemos, contudo, que tal insuperabilidade implica a fortiori que válido e não válido são realidades. E começa-se desde já a notar que a realidade de ambos não é uma equiparação, uma identidade estática, é, antes, a realidade de um termo positivo contraposto a um termo negativo, ou seja a realidade de uma oposição, de um contraste. De certo, se os termos são ambos reais isso implica que entre eles haja algo que os ligue, um elemento comum. Não estaremos perante uma diversidade abissal. De facto, dado que houvesse tal separação, como poderia chegar a haver oposição e antagonismo se estes envolvem contacto e relação?
Há, pois, unidade — unidade no sentido de vínculo religador — unidade na oposição. Que espécie de unidade, todavia? Se o valioso e o desvalioso estão unidos na oposição e, ao mesmo tempo, é a oposição que exige a unidade, não se torna concebível que esta última constitua algo per se, anterior à oposição. Por outro lado, não se concebe que o negativo e o não válido gerem a unidade, visto que a unidade é pressuposta pela negação que, por essência, depende daquilo que nega, estando-lhe, assim, ligada e unida. Donde se segue que a negação tem de ser uma negação interna à própria positividade, posta pelo próprio valor para existir como valor (que só é tal face ao desvalor). E nessa medida é o valor o mesmo que a unidade requerida pela oposição e que requer a oposição, a qual, encarada em si, nada representa, não passando de momento de um processo a que podemos chamar dialéctico (processo da oposição na unidade e da unidade de opostos).
Conduz-nos isto à primeira das premissas da argumentação anti-idealista, na parte respeitante à concepção da realidade. Sustentar que a realidade é algo de indistinto, onde tudo se equivale, não só é uma tese dogmática, estabelecida sem provas, mas também um pressuposto incompatível com o princípio da imprescindibilidade da destrinça entre o válido e o não válido (destrinça aliás insuperável), princípio que obriga a conceber a realidade — pelo menos parcialmente — não como indiferenciação, antes como oposição na unidade, luta e combate de distintos.
Por conseguinte, o real, por essência, não pode ser um fundo indiferenciado em que ocupam situações idênticas o racional e o irracional, o valioso e o desvalioso, etc... Pelo contrário!
E afirmando-se que o pensamento coincide com a realidade não se está, portanto, a afirmar que no pensamento tudo se confunde e nada se distingue, antes que nele tem de haver necessariamente, a distinção e batalha dos opostos.
Evidentemente que se realidade não é sinónimo de indiferenciação, e se, a fortiori, tem de haver ao menos um sector da realidade (ainda que seja muito reduzido) em que se verifica o inverso, não prova isto que a realidade, no seu conjunto, é dialéctica. Acontece assim que a substituir a indiferenciação, no caso de a realidade se cindir em dois planos — dialéctico e não dialéctico — surge ainda, nova indiferenciação pois aparecem outra vez coisas radicalmente diversas, subsistindo por igual no seu seio.
Reparemos, no entanto, que se a realidade for, mesmo só em parte, dialéctica, ipso facto a não dialéctica é dialectizada. Porque se perante ela estiver qualquer coisa que recusa a dialectização, logo que se oponha a esta, eis que um oposto surge. E ou a realidade dialéctica entra em relação dialéctica com o que se lhe opõe ou deixa de ser o que é. Se há unidade de opostos impõe-se, necessariamente, que abranja o seu próprio oposto.
Simplesmente, se nós vimos que a fortiori a realidade tem de admitir no seu seio a dialéctica do valor-desvalor e, nessa medida, se transforma, toda ela, em tal dialéctica, no que toca à questão da coincidência do pensamento com o real não a formulamos senão enquanto hipótese contra a qual certos argumentos eram apresentados. Ora cremos que nos é possível, agora, ir um pouco além do domínio do hipotético. Se a realidade é dialéctica de valor e desvalor e se se demonstrar que o pensamento é o substractum, o ser, de uma semelhante dialéctica, então o pensamento coincide com a realidade. E que o pensamento é o valor que só se concebe na oposição e na unidade com o desvalor parece-nos que talvez o possamos provar.
O valor é aquilo que vale em si e por si. E vale em si e por si o que não se puder ultrapassar e superar e representar, portanto, um ponto fixo, a partir do qual tudo se tenha de julga e avaliar. Nestas condições se encontra o pensamento, visto que por mais que duvidemos dele, ou dele façamos abstracção ou o neguemos, se encontra, necessariamente, presente em todas essas atitudes, mostrando, por isso, que não é possível superá-lo ou ultrapassá-lo; a sua validade é o pressuposto de todas as valorações que são outros tantos juízos, isto é, actos do pensamento.
Mas se este surge como fundamento de tudo quanto é valorado, como algo que é impossível ultrapassar e superar, então está em oposição ao que é ultrapassável e superável. Ora o que é inultrapassável e insuperável é o que não pode basear-se em si. O insuperável e o inultrapassável é independente, por definição, o superável e ultrapassável dependente. E do que dependerá o dependente senão do independente? Donde se segue que aquilo que está em oposição ao pensamento tem de ser dependente do pensamento, logo posto pelo pensamento. E sendo posto é ainda uma asserção do pensamento, um momento deste.
Cremos que indicamos assim, embora de maneira superficial e rápida, como é que o pensamento é a dialéctica e coincide, deste modo, com o real.
De certo, se o pensamento é a dialéctica, ou seja, constante diferenciação interna entre o que vale e o que não vale, radicada na sua qualidade de valor insuperável, então não é acerca de qualquer objecto pensado, isolado e afastado da crítica do pensar, que se pode dizer que é algo subsistente, que tem valor, que não é um erro ou ilusão.
Indiscutivelmente o erro e a ilusão também são pensamento que é auto-superado pelo pensamento, pois na medida em que o erro e a ilusão são pensados como tais, imediatamente são destruídos e ultrapassados.
Só um idealismo não dialéctico poderia significar equiparação do certo e do errado porque só um idealismo não dialéctico faz abstracção das oposições. Contudo um semelhante idealismo constitui, necessariamente, um pseudo-idealismo, visto que o pensamento, consoante vimos, é por essência dialéctico. O idealismo em vez de ser uma equiparação, no seio de uma totalidade indiferenciada, do racional e do irracional, do bem e do mal, é a afirmação da sua luta perene, da sua recíproca presença e da eterna superioridade do positivo sobre o negativo, numa vitória sempre discutida e sempre renovada.
António José de Brito
(In Praça Nova, n.º 15, pág. 10, Março de 1964)

0 Comentários
Comments: Enviar um comentário
Divulgue o seu blog! Blog search directory

This page is powered by Blogger. Isn't yours?