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domingo, junho 05, 2005

ANTÓNIO SARDINHA SEM DISFARCES 

Seria um grande equívoco reduzir as ideias do ensaísta de "Ao Princípio era o Verbo" às concepções expressas nas suas primeiras obras doutrinárias, como "O Valor da Raça" ou a conferência "O Território e a Raça", publicada no volume colectivo "A Questão Ibérica".
Nessas obras está presente, sem dúvida, uma forte influência do Positivismo vulgar, o Positivismo que procura extrair da experiência fenoménica o dever ser e as normas de conduta. Em "O Valor da Raça" deparamos por exemplo com esta frase significativa: «é o facto que nos inspira, unicamente o facto... não a pretensa excelência dos princípios» (1).
Claro que se Sardinha jamais tivesse deixado de perfilhar um ponto de vista semelhante, seria certo então que o seu pensamento não ultrapassaria as estreitas balizas de um factualismo, de uma política do empírico, onde seria visível a falácia naturalista de que falava Moore (2).

A Evolução de Sardinha
Simplesmente, António Sardinha foi evoluindo, no plano intelectual, e no final da sua vida - tão curta aliás e encerrada aos trinta e sete anos, em Janeiro de 1925 — (3) aproximou-se amplamente da metafísica neotomista, especialmente por influência de Maritain, na época com vários trabalhos publicados pela «Nouvelle Librairie Nationale», a editora da «Action Française» (4), vulto dominante da maurrasiana "Revue Universelle" dirigida por Jacques Bainville (5) e sobretudo autor de um livro bem explícito e bem reaccionário "Anti-Moderne" (6). Do Maritain de tão distante período, Sardinha multiplica as citações (7), ao lado das do Gonzague de Truc do "Retour à la scolastique" e do Massis de "Jugements", o intímo amigo do Maritain monárquico e contra-revolucionário (8).
Por essa altura, António Sardinha passa a criticar o factualismo filosófico-jurídico de um Duguit, escrevendo: «de harmonia com M. Duguit só existem factos e o direito sai do facto» (9) e classificando, com firmeza, essa tese de «barbárie do pensamento», «demissão total da inteligência» (10). E não deixa, também, de aludir ao «limitado e grosseiro positivismo» das «fórmulas doutrinárias de um Duguit» (11).
Dentro já desta nova atmosfera mental, repele Sardinha o Relativismo de Comte e Spencer e assevera que «é na noção de Absoluto que o direito, como tudo o resto, precisa de se firmar» (12), sublinhando: «é ao império do Espírito que carecemos de regressar» (13). E, num dos seus derradeiros artigos — o célebre, «Adiante por sobre os cadáveres» — lá deparamos com a aberta referência a S. Tomás, «a cujo patrocínio nos confiamos» (14).
Supomos que isto basta para testemunhar quão longe, de 1922 a 25, Sardinha se encontrava das perspectivas filosóficas puramente experimentalistas do começo do seu itinerário e como é erróneo valorar o conjunto do seu ideário em função de atitudes iniciais, em breve ultrapassadas.
Firmado no espiritualismo tomista, António Sardinha apropriou-se do conceito de pessoa para buscar um alicerce firme para as suas doutrinas acerca do Estado e da Sociedade.
Ouçamos as suas próprias palavras: «O conceito de pessoa tão querido do Tomismo e tão essencial à justa posse da objectividade no campo do Direito, ei-lo de regresso, sepultadas como se acham já no limbo das larvas sem glória as torpes ideologias dum falso e depressivo racionalismo... Por ele o Estado se restaurará. Por ele a sociedade será salva - e, com a sociedade, a civilização ocidental» (15).

O Conceito de Pessoa
Aqui porém, impõe-se o maior cuidado, para não nos extraviarmos em interpretações falaciosas. É indispensável encarar com a devida cautela a concepção de pessoa em António Sardinha.
Não deparamos nele com a clássica definição de Boécio: «individua substantia rationalis naturae» (16) que S. Tomás adoptou e que é habitual na escolástica e neo-escolástica contemporânea.
Onde Sardinha, segundo todas as probalidades, terá ido beber a sua ideia de pessoa foi em Garrigou Lagrange, em "Le Sens Commun, la Philosophie de l`Être et les Formules Dogmatiques", que é referida, com certo desenvolvimento, em "À Lareira de Castela", no estudo, de 1924, «Madre-Hispânia» (17).
Quanto a Maritain nota-se que até 1925 - ano do falecimento de Sardinha - o seu silêncio sobre a pessoa é quase total. O personalismo maritanesco só começa a expandir-se em "Trois Réformateurs". Aí segue, em parte, Garrigou Lagrange mas já vemos aparecer uma definição próxima da tradicional, apresentada por Boécio (18); ora os "Trois Réformateurs" já Sardinha não pôde ler.
Mas o que é a Pessoa em Garrigou-Lagrange? Algo de muito sui generis. A Pessoa é como que identificada com a subsistência da alma independente do corpo. E, em determinada medida, é contraposta a Indivíduo, pois Garrigou Lagrange acha que o desenvolvimento da individualidade corresponde ao viver da vida egoista da paixão, ao passo que a personalidade aumenta na medida em que se elevar acima do mundo sensível, prendendo-se, pela inteligência e pela vontade, ao que constitui a vida do espírito.
Não é interpretação extravagante destes ensinamentos entender que a individualidade e personalidade se dirigem em direcções divergentes - uma para a espiritualidade outra para a instintualidade. Pessoa e Indivíduo tornam-se, deste modo, quase que duas directrizes éticas bipolares. Sardinha inspira-se nesta perspectiva, imprimindo-lhe evidentemente uma tonalidade própria.
Assim, ele proclama que o nacionalismo hispânico, baseado na pessoa, «é centrípeto, acumulativo, universalista», ao passo que o nacionalismo anglo-saxónico, porque assenta no indivíduo, é «centrífugo, atómico, substractivo» (19). E insiste na mesma tónica, por exemplo, na "Aliança Peninsular", onde assevera que «o hispano não tendo do homem uma ideia de indivíduo mas de pessoa, determina-se por um irreprimível instinto universalizador» (20). Centrípeto, acumulativo, universalista, dum lado, centrífugo, substractivo, atómico do outro, eis pares de contrários que patenteiam que António Sardinha, quando fala na distinção entre Indivíduo e Pessoa está a aludir a uma distinção entre opostos (21).
Isto, contudo, se é um primeiro passo para fixarmos a noção de pessoa em António Sardinha, não nos dá ainda elementos suficientes.
Reparemos que o «indivíduo», porque «centrífugo e errático tenta sobrepor-se à colectividade» (22). E a Pessoa? Obviamente ela, representa ao invés «parcela aditiva, fecundo elemento activo dentro da continuidade das gerações» (23).
Nessa circunstância, «a Pessoa é sinónima, no seu valor transitório, de género humano, de humanidade» (24) ou, por outras palavras, a pessoa «manifesta-se em inteira coincidência com a humanidade» (25).
Exaltar a Pessoa será, deste modo, exaltar a integração do homem no género humano, na colectividade humana, ao passo que, em contrapartida, exaltar o indivíduo é fazer a apologia «da revolta do ser contra a espécie na frase epigráfica de Comte» (26).
Por conseguinte, o homem que é Pessoa e, voltado para o Absoluto, vive segundo a lei do Espírito, é o homem que se insere como elo aditivo na sucessão da imensa cadeia de mortos e dos vivos, que forma a sociedade, e só assim se universaliza e ultrapassa o seu particularismo, aproximando-se da espiritualidade e da absolutidade.

Pessoa e Sociedade
Numa palavra: a pessoa, em António Sardinha, ocupa posição radicalmente diferente à que lhe é atribuída pelo personalismo dos nossos dias. Em Sardinha, a personalidade atinge-se pelo serviço em prol do comum. Se no Personalismo contemporâneo, a pessoa é um fim para a sociedade, que se reduz a simples meio em relação àquela, Sardinha entende que a perfeição do homem, como ser moral, se realiza socialmente (27), estando o plano social bem longe de se reduzir a um mero domínio utilitário para a conservação da vida (28). O Personalismo actual acha que, moralmente, a pessoa situa-se para além da sociedade que pouco ou nada tem a interferir no campo ético. Daí que o que o Personalismo acentue sejam os direitos de cada pessoa ut singuli face à comunidade (29); bem diferente era a atitude de António Sardinha que exaltava um «direito natural baseado na comunidade» (30) e protestava contra a emancipação da «razão pessoal» face «à razão geral» (31).
Para ele, o valor do homem está, pois, em assumir-se como sociedade, em saber submeter-se à totalidade em que se insira. É dessa maneira que se torna pessoa e deixa de ser o indivíduo, como se disse, «errático e centrífugo», por natureza.
Chegados aqui, no entanto, duas observações são de formular. Não se deve esquecer que, na opinião de Sardinha, a sociedade, a comunidade, é uma comunidade ou sociedade de pessoas. Ela existe na medida em que os homens se elevam de indivíduos a pessoas e se tornam como artífices disciplinados da colectividade. Esta não é, portanto, ontologicamente, um ente autónomo e pré-existente que os absorve, um monstro que engole e devora os seus membros.
Segundo Sardinha a colectividade depende da maneira como os homens se comportam em relação a ela (32). Rebelando-se, podem conduzi-la à destruição; universalizando-se dão-lhe subsistência e realidade (33). Ela não constitui uma «coisa», é antes e principalmente um fruto, um resultado da actividade humana.
Por outro lado, é patente que se António Sardinha não considera a pessoa algo de superior à comunidade, também não atribui à comunidade uma valia incondicional, a posição de valor último.
O valor último é apenas o Absoluto, o Espírito; e a universalização social do homem se é, incontestavelmente, um passo na senda do Absoluto ou do Espírito, não é, para Sardinha, o próprio Absoluto, o próprio Espírito.
Sardinha metaforicamente, para apontar o maior valor da sociedade face à pessoa individual, considerava a primeira feita à imagem e semelhança de Deus (34); jamais, porém, a confundiu com o próprio Deus, que para ele, «acolhido à concepção católica da vida» (35), estava inequívoca e autonomamente acima de tudo.

A Concepção da Sociedade
Uma pergunta surge agora, depois de termos falado em pessoa e sociedade. Como se estrutura a sociedade de que as pessoas são os elementos, a sociedade orientada para o Absoluto e pelo Espírito?
Antes de mais nada, Sardinha vê-a como a Ordem, não uma Ordem formal e extrínseca, uma ordem meramente material, mas a Ordem que é harmonia, coesão no máximo grau e extensão, posto que a fragmentação e a dispersão não passam de sinónimos de caos e desordem (36).
Essa ordem autêntica, «realidade moral intrínseca ao ser como a beleza» (37), nada tem de análogo com a concepção de ordem dos conservadores de toda a índole. Para estes, a ordem é a garantia dos seus interesses: ao passo que a Ordem genuína é apenas expressão do interesse geral.
É óbvio que, enquanto harmonia e coesão, a Ordem é unidade e não pode deixar de ser unidade, unidade total omnicompreensiva.
Simplesmente, não é uma unidade mecânica, uma unidade morta que nada unifique. Porque a unidade, é apenas, unidade de algo que não é ela e implica em si uma certa diversidade que é inserida no uno (38).
Dentro desta perspectiva é que Sardinha não deixa de colocar a variedade ao pé da unidade.
Uma comunidade ordenada é uma unidade, porque só na unidade se encontra o universal, o aditivo, e uma unidade da multiplicidade porque sem esta última nada há de unido, de universalizado, de adicionado, antes tudo se dissolve numa massa amorfa e indiferenciada, que de unidade só terá o nome. Com a unidade da multiplicidade é que se consegue formar uma Ordem plástica, originária e global em que o todo e a parte se completam reciprocamente.
Não julguemos, todavia, que para Sardinha unidade e variedade constituem dois pólos separados e equidistantes (39). Nada disso. A unidade engloba a diversidade, de maneira a que esta não caia na dispersão e na anarquia. A diversidade só dentro da unidade representa factor positivo e fecundo.
Por isso é que, no entender de Sardinha, o homem só se eleva do atomismo individual à personalidade através da sua inserção em grupos diversos, por meio dos quais vai realizando o que tem de melhor a sua natureza, até atingir o grupo dos grupos que os religa a todos e com que a pessoa coincide, no seu valor transitório - a comunidade máxima ou perfeita (40).
Os grupos têm assim, evidentemente, funções mais do que louváveis como meios da pluralidade individual se ir socializando e, nessa medida, universalizando, espiritualizando, mas eles próprios podem conflituar entre si, cair no egoísmo e na particularidade se não houver uma força que os coordene e os integre numa vinculação totalizadora.

Poder e Grupos
Essa a tarefa do Poder, indispensável para que qualquer comunidade exista como Ordem. Ele não tem por missão absorver e aniquilar os grupos, que vão mergulhando os átomos individuais no geral e no comum; ao contrário é sua tarefa específica elevá-los, afastá-los das tentativas divisionistas, agregá-los, numa palavra, fazer a síntese da sua variedade na unidade do tecido social que eles enriquecem pela policromia (42).
Claro que está longíssimo do pensamento de Sardinha arvorar os grupos em outros tantos indivíduos ou mónadas com uma espécie de direitos intangíveis, actuem como actuarem.
Em primeiro lugar, para ele, há grupos e grupos, só se pronunciando a favor dos grupos que são factores de aproveitamento das qualidades sociais do homem - a família, o município, o sindicato, a corporação (e essa corporação especial do bem servir que é a nobreza) - repudiando os grupos que sejam associações parasitárias e dissociadoras (43); em segundo lugar, Sardinha entende que acima dos grupos úteis e legítimos está sempre um interesse geral que implica a sinergia dos mesmos no serviço superior do bem comum (44).
Numa sociedade que seja a Ordem genuína há sem dúvida uma determinada desconcentração, ao lado da tendência concentradora personificada no Poder (45).
Contudo seria interpretar falsamente António Sardinha supor que ele considerava essas duas tendências de valor e peso equivalentes e que, em vez de as reunir num conjunto orgânico, as tomava como uma espécie de pratos equilibrados de uma balança (46).
Não esqueçamos que Sardinha proclamava que a Autoridade, com a sua tarefa concentradora, está «ao alto». Logo os diferentes grupos estão-lhe subordinados (47).
E acontece que a tendência desconcentradora corporiza-se na descentralização de índole administrativa, ao passo que a concentração é política e governativa (48). Ora não há dúvida que política e governação estão acima da administração.
É natural que, para exercerem as suas funções, os diferentes agrupamentos necessitem de certos poderes, ou seja, de uma certa liberdade; que afinal, não é mais do que uma determinada soma de autoridade, tal como o chamado Poder soberano, para cumprir a sua tarefa de sinergia e síntese, também precisa de liberdade para isso, liberdade que é o conjunto das suas capacidades, ou a sua autoridade.

A Ideia das Liberdades
Sardinha, que se erguia veementemente contra a Liberdade com maiúscula (49), a Liberdade para tudo e para todos, oposta a toda a espécie de autoridade, chamava a atenção para o erro de tal oposição, acentuando que não há liberdade que não seja autoridade, «poder para», de um sujeito, como não há autoridade que não seja liberdade, liberdade de dirigir e comandar (50).
Assim não interessa exalçar a Liberdade em geral, a Liberdade em abstracto, mas sim determinar quais as liberdades socialmente úteis, quais os direitos que são factores de ordem e quais os que o não são.
Eis o motivo porque Sardinha se, repetidamente, se proclamava defensor das liberdades, esclarecia sempre que estava a aludir às liberdades antigas, às liberdades orgânicas, às liberdades dos grupos que eram escola de sentido comunitário, às liberdades práticas que revigoravam a colectividade, liberdades para superação do atomismo de tipo individualista (51).
Arvorar Sardinha, porque falava em liberdades, num defensor das concepções actuais sobre os direitos do homem apresentados como uma espécie de dogma de fé, é adulterar gravemente o seu pensamento. Contra a «Declaração dos Direitos do Homem», (protótipo das muitas outras que, hoje em dia, são exibidas, apologeticamente, ao pasmo das gentes) são frequentes os doestos do autor de «Na Feira dos Mitos» (52).
E, de resto, quem pode esquecer que as liberdades antigas eram liberdades existentes em época onde havia Censura e Inquisição (que Sardinha defendeu energicamente) (53) e discriminações religiosas e raciais (que Sardinha também justificava) (54). E não é verdade que, seguindo Maurras, considerava ele o «Syllabus», onde a liberdade de expressão é condenada, um «documento de cujo regimento e guarda depende a boa saúde da sociedade» (55)? E não considerava erro lastimável a chamada liberdade intelectual (56)? Não mostra isto quanto se encontrava afastado do espírito mesmo que anima as teorias contemporâneas sobre os denominados direitos humanos?

Poder Local e Monarquia
E nem se julgue, face ao seu entusiasmo pelo localismo, que ele era uma espécie de anarco-municipalista, como os que agora brotam e pontificam. É que não deixava de considerar com Garrett na "Teoria do Município", por exemplo, que, ao lado dos magistrados locais eleitos, deviam situar-se os representantes do Poder central, porque a unidade tinha de estar sempre presente a prevenir tendências dissociativas (57).
Mas se o Poder central possui uma missão unificadora e conglomerante do maior relevo e importância, percebe-se imediatamente o imenso e vital interesse que reveste a maneira como ele está organizado e estruturado.
Sardinha, pelo menos durante muitos anos, e provavelmente até ao fim, salientou constantemente que só a organização e estruturação monárquica do Poder (58) era capaz de assegurar a Ordem harmoniosa que preconizava. Isso em primeiro lugar, porque a monarquia continha em si a incomensurável virtude de as rédeas do Governo estarem em mãos de um só, sem partilha, o que lhe assegura a virtualidade de desempenhar eficazmente a sua tarefa unificadora (59), uma vez que só o que é uno por si pode produzir unidade (60); além disso, a Monarquia, mantendo assegurada, por meio da hereditariedade, a permanência do governo de um só, assegura a continuidade da sua função unificadora (61); finalmente, a Monarquia, dependendo apenas da subsistência da comunidade que rege, não se identifica com facções, correntes de opinião, confundindo-se o seu interesse tão só com o da sociedade - não precisa nessa medida de votos, sufrágios, apoios majoritários e consequentemente não lhe urge ter os cidadãos na mão através de benesses, favores locais, pressões, pelo que pode amplamente descentralizar (62).
Não assentando na vontade dos governados, a Monarquia não necessita para se aguentar no Poder de os controlar, directamente, através de uma rede burocrática, dispensadora de promessas, benefícios particulares, ou até intimidações privadas. Em contrapartida, situando-se exclusivamente no plano do bem da comunidade, encaminha a actividade própria dos indivíduos, no sentido da prosperidade comum.
O regime monárquico concede, pois, a justa iniciativa às pessoas e grupos sem deixar de encaminhar essa iniciativa em favor do todo social, que é assim enriquecido e potenciado pelo que brota em si espontaneamente.

Pensar a Monarquia
A Monarquia representa, deste modo, uma peça essencial da boa ordem da sociedade, tal como António Sardinha a concebia. Note-se, porém, que a Monarquia de que falava era a monarquia autêntica, a monarquia genuína, a monarquia do poder pessoal do Rei, exercendo uma soberania política plena, assessorado sem dúvida pela representação orgânica dos corpos sociais em Cortes, mas decidindo com plena autonomia (63).
As Cortes, segundo António Sardinha, apenas deveriam ter funções consultivas, salvo em casos bastantes especiais. Governar pertencia ao Rei que, assistido pelos seus conselhos, dirigia sem partilhas a vida do Estado (64).
No tocante às chamadas monarquias constitucionais ou liberais ou democráticas, Sardinha repelia-as da maneira mais aberta e enérgica. Meras antecâmaras da República, contrafacções da verdadeira Realeza, perseguia-as com sarcasmos implacáveis (65).
Mesmo a Carta, um pouco mais moderada que as Constituições de 20 e de 38, só lhe merecia repúdio pelo abastardamento a que sujeitava o regime monárquico. E a própria Restauração (dos Bourbons) de 1814, tão acusada de reaccionarismo, lhe parecia de criticar por não ter rompido em absoluto com os dogmas de 1789 (66).
Quanto à chamada Monarquia de Julho, a pena de Sardinha não lhe poupava os doestos, tal como ao sistema deposto em Portugal em 1910 (67).
Sentia-se mais próximo de uma República de sentido nacional, autoritário e contra-revolucionário, que do statu quo manuelista. E com a maior das razões porque aquela estava menos afastada da Monarquia autêntica do que o parlamentarismo cartista, imposto pela força ao país pelo português renegado Sr. D. Pedro IV (68).
Não deixemos de acentuar, todavia, que em Sardinha a Monarquia, se era fundamental, capital, não era tudo. A sociedade bem ordenada possuia uma constituição essencial, de que a Monarquia era a base principal, mas não a única. A constituição essencial é a combinação da unidade e da diversidade que sumariamente descrevemos, e que está inscrita na natureza mesma das coisas, quando estas espelham a universalidade do espírito (69). Semelhante constituição não é um documento escrito, elaborado pela vontade dos indivíduos, ou dos grupos no seu somatório. Estes últimos têm tanto ou tão pouco direito de fazer constituições como as pessoas individuais. É que a constituição pré existe-lhes. Eles só possuem direitos e franquias dentro da constituição e, portanto, como é que a hão-de fazer (70)?
Considerações semelhantes são de aplicar ao Poder real, cuja obediência à constituição essencial, donde retira a sua autoridade, é indeclinável e dentro dela à instituição monárquica mesma, parte basilar dessa constituição (71).
Dos Reis au rabais, os reis au bon marché, que adulteram a Monarquia, fala Sardinha com desdém encolerizado. Para ele, já não são mais reis por atraiçoarem os princípios que os justifica como tais (72).

A Nação
Até aqui temo-nos referido sempre à sociedade, comunidade e colectividade, usando esses termos mais ou menos como sinónimos.
Convém sublinhar, contudo, que para António Sardinha a sociedade, a comunidade, a colectividade, em concreto, era a nação. A nação representava o ser social conformado historicamente, e definido por um certo dinamismo interno que é a tradição (73). A tradição, que nada tem a ver com o passado inerte tomado na sua matéria, é antes uma permanência que se vai renovando, uma continuidade no desenvolvimento (74). No fundo é o aparecer temporal daquela unidade na variedade, que é próprio da ordem social fundada nos imperativos universalizadores do Espírito.
Não admira que, em consequência, António Sardinha se proclamasse, sem hesitações, tradicionalista e nacionalista (75), asseverando que punha a nação como princípio e fim de si (76), uma vez que a nação não era um mero agregado de indivíduos ou pessoas ocasionalmente conglomeradas mas sim constituía o esforço efectivo de realização, no tempo, da Ordem integral a que se referia.
Nessa medida, a nação representava um princípio espiritual, um génio (77), de que nenhuma explicação meramente materialista consegue desvendar a substância. E perante ela, além dos estrangeiros propriamente ditos, existiam os estrangeiros do interior que se erguiam contra a regra que os confornou socialmente, pondo em prática a tremenda «rebelião do ser contra a espécie» e em relação à qual é legítimo o uso da força (78).
As nações no entanto formam uma multiplicidade: há diversas nações. Ora não poderá acontecer que o nacionalismo conduza ao conflito das nações entre si ou, ao menos, ao isolamento de cada nação? Ao fim e ao cabo, do individualismo dos indivíduos não se estará a transitar para o individualismo das nações?
Sardinha era suficientemente anti-individualista para não vislumbrar o perigo que um puro nacionalismo viesse acaso a oferecer (79). Daí que sustentasse a necessidade da harmonia entre as nações, fundamentada no património cultural comum que todas abrange e em todas enraizam. Nos seus últimos escritos ele aponta, com insistência, como modelo - embora sem excessiva precisão - a Respublica Christiana, a Cristandade tal como a concebeu a Idade Média (80).
É óbvio que, tendo assumido esta série de posições, António Sardinha não podia deixar de tomar uma atitude aberta de hostilidade às ideias modernas situadas em franca oposição a tudo quanto ele perfilhava e exalçava.

Sardinha e a Democracia
Assim, com perfeita coerência ele repelia in limine a Democracia (81). A Democracia cuja expressão lógica eram as doutrinas da soberania do povo e do sufrágio popular (82) era radicalmente incompatível com a soberania do Rei, exercendo um poder pessoal, mesmo que por povo se entendam os corpos sociais reunidos em Cortes.
É preciso ter sempre que estas não são a Nação, porque a Nação é o todo de que faz parte, em primeiro lugar, o Rei (83) e não se confunde com o mero agregado de agrupamentos, por muito úteis que sejam, se circunscritos às suas funções próprias. A Democracia orgânica para Sardinha não passava de um absurdo pedante (84). E por isso é que, como dissemos, as Cortes, na sua opinião, não tinham que estabelecer a constituição da Monarquia, uma vez que esta constituição lhes era anterior e a ela deviam acatamento (85). Foi essa a tese defendida por ele (e restantes companheiros) quando do repúdio do célebre Pacto de Paris entre os liberais e a Infanta D. Aldegundes, em que se convencionou que às Cortes competiria deliberar sobre a constituição da Monarquia a restaurar (86).
Tem-se por certo tentado atenuar a constante hostilidade de Sardinha à Democracia, comprovada por os mais variados e numerosos textos, invocando-se uma ou outra passagem em que atribui um carácter democrático à Monarquia (87). Sardinha admitiria assim que havia também uma outra democracia diferente da que combatia. Ele não seria, pois, inimigo da Democracia, de toda a Democracia.
Observemos a este propósito:
1.º - Sardinha, nas passagens em que afirma o carácter democrático da Monarquia, está a invocar uma opinião de Fustel de Coulanges. Ora, que entende Fustel de Coulanges por Monarquia? Elucida-nos a propósito o próprio Sardinha: «Diga-se para inteira clareza que Monarquia em Fustel de Coulanges toma-se como sinónimo de Cesarismo» (88). Mas o que é o Cesarismo? «O Cesarismo é sempre - se me explico bem - a organização da democracia» (89). Por consequência o carácter democrático da monarquia, onde é asseverado, equivale a patentear o carácter democrático da organização da Democracia. Asserção tautológica que não serve para estabelecer que haja outra democracia - a monárquica - ao lado da que Sardinha hostilizava.
2.º - Quanto ao próprio uso da palavra democracia, Sardinha não deixa de ter hesitações pois que diz, a certa altura, «se à falta de melhor termo é lícito empregar a palavra democracia (...)» (90).
Mas no "Glossário dos Tempos", Sardinha esclarece: «Garrett equivocado com a palavra democracia não cessava nunca de proclamar, ao longo dos seus discursos, que Democracia e Monarquia são ambas necessárias» (91). Se essa posição é um equívoco, não se vê que possa existir autenticamente o carácter democrático da Realeza.
3.º - Sardinha declara pensar, como Maurras, que a palavra «democracia deve ser riscada, banida e esquecida como puro sinónimo de degenerescência» (92).
De tudo isto se pode concluir que a afirmação do carácter democrático da monarquia não só não possui importância de maior mas que o próprio Sardinha igualmente a combate em passos inequívocos.
Estamos, assim, perante qualquer coisa que não merece ser tomada em consideração e que não invalida a quase permanente identificação entre Democracia e o ideário da Revolução, presente em António Sardinha.

Os Partidos
Ao lado da Democracia, também a existência de partidos era considerada por Sardinha perniciosa e de afastar. A seu ver, os partidos, eram agrupamentos maléficos e parasitários (93), instrumentos de divisão da Pátria, factores de discórdia e lactrocínio que urgia fazer desaparecer. Os partidos compreendiam-se só na pseudo monarquia, na Monarquia da Carta ou na Monarquia de Julho, descaradas falsificações do que representa a essência mesma da Realeza.
Não deixemos de resto de acentuar, a fim de se evidenciarem bem as mais fortes linhas directrizes do pensamento de Sardinha, que este saudou com entusiasmo os primórdios do Fascismo e o golpe de Estado do general Primo de Rivera em Espanha, seguindo essas tentativas sempre com simpatia até à data do falecimento em 1925 (94).
Foi patente o seu «entusiasmo chamejante» pela ideia de um Chefe, Rei ou Ditador, que realizasse as aspirações anti-democráticas, anti-liberais e contra-revolucionárias da sua geração (95).
Também é indiscutível que António Sardinha evidenciava uma constante aversão ao judeu que, em certa ocasião, exageradamente, classificou, através das palavras de Renan, como um produto inferior da natureza humana (96) e esboçou mesmo uma interpretação racista da História de Portugal (97).
Não vale a pena cobrir a cabeça com cinzas perante estas indesmentíveis realidades, até porque não há motivos para isso. Se se diz que a apologia da traição, do incesto, da deserção, da desobediência civil são questões de opinião, porque não o há-de ser o anti-semitismo?
Porque só este há de ser etiquetado de crime nefando?
Aliás os que velam o rosto perante o anti-semitismo de Sardinha não se coibem de aplaudir Raul Proença, apesar do mesmo Proença proclamar que «não há como os israelitas para descerem às mais baixas degradações do impudor» (98) e entender que a mescla de sangues foi o grande factor que provocou a decadência de Portugal (99).
Claro que tais pontos de vista de Raul Proença são ocultados e sonegados. Trata-se, sem dúvida, de teses perfeitamente ilógicas para quem blasona de humanista, defende a igualdade das pessoas e a primazia destas face à sociedade. Mas não deixaram por isso de existir e ser abertamente expostas.
Em António Sardinha, nacionalista para quem não o homem, mas a comunidade, é o supremo valor terreno, já se compreende a sua preocupação face a elementos alógenos, dificilmente assimiláveis (100), preocupação que acaso o levou a um ou outro excesso. Seja como for, entende-se perfeitamente que procure examinar cuidadosamente as relações que existem entre as origens hereditárias e determinadas actividades anti-nacionais ou a-nacionais (101).
O que não se entende é que se proclame em Sardinha gravíssima monstruosidade, o que em Proença se desculpa por inteiro, não sendo obstáculo a calorosas homenagens. É um prémio à incoerência ou acontece que certas posições apenas são de combater consoante quem as perfilha? O anti-semitismo num democrata enragé não tem importância enquanto num monárquico integralista é a desolação da abominação?

Algumas considerações analíticas
Não vamos deter-nos nas teses históricas e literárias de Sardinha pois o que nos preocupa fundamentalmente é o seu perfil de doutrinador político.
É evidente que o seu nacionalismo o levou a reexaminar a história pátria e a recusar a interpretação daqueles que a liam exclusivamente à luz da liberdade e dos dogmas revolucionários. A sua vida, cedo interrompida, não lhe permitiu senão esboçar uma tarefa revisionista que merecia análises longas e eruditas, que no fervilhar dos combates não lhe foi possível levar a cabo a fundo.
Quanto à sua obra poética e às considerações sobre a arte, em especial sobre o romantismo e o ultra romantismo, não podemos senão deixá-las para os especialistas competentes.
Não pretendemos que tudo quanto Sardinha elaborou tenha a marca da perfeição.
A maior parte, senão a totalidade dos trabalhos que nos legou, foram escritos na lufa-lufa das controvérsias e campanhas jornalísticas numa idade ainda juvenil. Por isso, além de dispersos - o que não oferece grande mal - não testemunham nem podiam testemunhar um arrumamento reflexivo e uma coerência rigorosa, que normalmente só ao longo de uma existência prolongada se vai adquirindo.
Depois acontece que grande número dos livros de Sardinha são póstumos. Os estudos nele recolhidos não os pôde rever, aperfeiçoar, limar. Daí que não sejam de estranhar uma ou outra página de interpretação dúbia ou pequenos lapsos de menor importância.
Sardinha, com todo o seu anti-individualismo, uma ou outra vez como que insinua que os grupos sociais servem para protecção do indivíduo (102). Noutra altura, entre elogios justos a certas disposições sociais da Constituição de Weimar, lá se lhe escapam aplausos a um artigo que só testemunha um ethos liberal e parlamentarista (103).
A leitura que faz da doutrina da soberania popular alienável, apesar de um esforço restritivo, deixa aberto, apesar de tudo, o caminho a teses democráticas (104).
A sua concepção de Absolutismo é em extremo discutível (105) e bem assim a concepção de que houve alterações básicas na Monarquia portuguesa antes das datas fatídicas de 1820 e 1834. Quanto a nós isso não é perfeitamente exacto: a Monarquia portuguesa manteve perfeitamente inalterada a sua essência até essas datas, salvo pormenores secundários.
O facto de, desde D. João V até D. Miguel I, se não terem reunido as Cortes, não nos parece em extremo significativo, pois que as Cortes não eram imperativamente convocadas, por determinação constitucional, antes por vontade descricionária do monarca. Que não fossem consultadas durante três reinados, não alterou no fundamental a estrutura do regime.
Em certas ocasiões Sardinha como que considera que a Nação e o Rei são duas entidades diversas, contrariamente, aliás, à tónica geral da sua doutrina (106).

Uma Perspectiva
Também convém não esquecer que o uso que Sardinha faz da palavra Estado não é dos mais esclarecedores. Sardinha ora toma o Estado como sinónimo de aparelhagem burocrática, ora exclusivamente como sinónimo do Poder central de índole política. Simplesmente acontece que, na língua usual, Estado também é considerado a comunidade soberana organizada. E, às vezes, o leitor mal informado ou desprevenido, quando vê Sardinha insurgir-se contra o estatismo, julgará que ele está a combater o primado do todo sobre a parte, da sociedade sobre o indivíduo ou pessoa, quando está unicamente a insurgir-se contra a excessiva centralização e a sustentar que os corpos sociais, devidamente controlados, são capazes de desempenhar melhor certas tarefas administrativas do que organismo ministeriais ou semelhantes.
Não importa, contudo, estar a salientar na obra de António Sardinha este ou aquele ponto menos seguro e rigoroso. Nada de humano é perfeito.
O que devemos é esforçar-nos por destacar as linhas gerais do seu pensamento, aquilo em que este forma uma tendência dominante.
Por muito que o queiram deturpar, adulterar, utilizar sem escrúpulos, António Sardinha não foi senão um contra-revolucionário enérgico e firme, um adversário sem tibiezas dos dogmas revolucionários, seja da Revolução de 89 seja da Revolução Soviética de 1917. Ele insere-se inequivocamente nas coordenadas de um nacionalismo intransigente, alheio a tibiezas, compromissos e oportunismos.
Para os adoradores do Sol Nascente, aqueles que no passado rastejavam, humildes, perante Salazar e o Estado Novo e, hoje, se prosternam perante os ídolos vazios do momento, Sardinha é, sem dúvida, um nome incómodo a esquecer e um ensinamento indesejável do qual não se pode tirar proveito - o proveito que é o critério por que pautam as suas evoluções.
Mas, para aqueles que julgam a verdade muito acima das conveniências de momento e que entendem que os erros agora triunfantes, nem por vitoriosos deixam de ser erros, António Sardinha, que tanto os combateu, oferece um exemplo a seguir e inúmeras lições aproveitar. Há que prolongar a curva da sua doutrina, corrigi-la nas pequenas falhas, depurá-la no que tiver de supérfluo, mas sobretudo aprofundá-la e ampliá-la na substância.
A fidelidade à memória de Sardinha consiste em mostrá-lo tal como é, ao pleno Sol, independentemente do desagrado que provoque a pseudo intelectuais que só conhecem os lugares comuns do momento, ou a multidões desvairadas por tristes slogans sem consistência, não em tentar falsa e subrepticiamente fazer inflectir o seu legado ideológico no sentido de o acomodar à nauseabunda realidade hodierna ou aos babélicos temporais de dislates que neste pobre globo sopram de todos os lados.
Por muito que pese aos que, proclamando-se herdeiros de António Sardinha, se adaptam ou até exalçam as ideias que ele combateu e repeliu, o autor de "Durante a Fogueira" nunca deixou de ser, com firmeza, anti-democrático, anti-liberal, anti-moderno, reaccionário, tradicionalista e nacionalista.
São esses os traços mais vivos e característicos da sua obra, que nenhuns disfarces podem ocultar, e que lhe garantem lugar bem alto e cimeiro, o lugar de quem permanece de pé no meio de um mundo em ruínas.

António José de Brito

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