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quinta-feira, junho 30, 2005

DA POLÍTICA E DO PENSAMENTO 

Não há acção coerente e estável que não seja iluminada por uma doutrina, como não há teoria, por mais neutra que pretenda ser, que não tenha uma projecção (ainda que meramente negativa) na prática.
Por isso mesmo, é que qualquer política tem, na sua base, uma concepção do mundo e sobretudo, do homem. Se a esquerda, como muito bem sublinhou Vasco Pulido Valente, se caracteriza pela paixão da liberdade e da igualdade, é porque assenta numa ideia de homem optimista, directamente bebida em Pangloss. É claro que o homem deve ser livre, se for naturalmente bom, se o mal não lhe puder ser imputado, se tudo o que fizer se encontrar alheio às catástrofes e malfeitorias de que o universo está repleto (os culpados sendo a sociedade, o fascismo, a reacção, etc). Pois como se compreenderia que fossem colocados obstáculos, peias, limites a um ente que é a bondade em pessoa? Como seria legítimo que o submetessem ao que quer que fosse, que o governassem, que sobre ele impendesse uma autoridade?
A anarquia é, assim, a meta lógica da ideologia da liberdade. E se o homem é naturalmente bom e o mal não lhe pode ser imputado, todos os actos humanos serão louváveis, sem discriminação. Nessa altura, serão também equivalentes entre si, isto é, por outras palavras, serão iguais. Mas, se todos os actos humanos são iguais, os sujeitos que os praticam sê-lo-ão da mesma forma, uma vez que se não pode distinguir entre os que agem com equilíbrio e seriedade e os que agem dispatarada ou torpemente. Em suma, não há padrão valorativo que permita destrinçar os vários homens e submetê-los a um juízo axiológico. Não existe, portanto, coisa alguma que esteja acima deles e, da igualdade, exactamente como da liberdade, se deduz, sem hesitação, o anarquismo. Este é o cerne, a conclusão básica dos princípios da esquerda.
Em contrapartida, uma concepção do homem que veja nele um ser imperfeito, imagem de Deus, sim, muito afastada, porém, do seu infinito modelo, dotado de um querer livre e falível, capaz de tanto realizar o bem como o mal, já não implica a idolatria da liberdade e da igualdade, antes conduz a ver nas tendências anarquistas um enorme absurdo. Se há ente que precisa de ser governado é o homem, muito mais do que as forças da natureza e os animais.
À liberdade do homem há que pôr todas as barreiras para que só se exerça no sentido que é valioso, para que não ofenda os seus semelhantes e, em especial, não atente contra as normas superiores que do Absoluto derivam.
Autoridade é, portanto, um dogma fundamental, a condição necessária de toda a civilização, ainda que não seja condição suficiente. E quem diz autoridade diz submissão da liberdade ao que a controle e guie.
Por outro lado, se os homens não são o bem personificado, haverá sempre que distingui-los em função do seu comportamento e, até, das suas capacidades para, com maior ou menor eficiência, servirem os valores (o que não implica já uma apreciação moral e tão só uma apreciação exclusivamente técnica). De qualquer modo, no lugar da igualdade aparece-nos uma outra exigência — a da hierarquia: hierarquia de méritos e hierarquia de competências. E quem diz hierarquia, diz sobreposição de poderes de grau em grau até ao poder mais alto. Em vez da anarquia, de novo nos surge o requisito da autoridade.
Simplesmente, um problema se levanta aqui. Autoridade, sim, dir-se-á, autoridade que tenha por finalidade o estabelecimento e a garantia do que seja objectivamente válido, com plena independência do arbítrio dos homens; autoridade, enfim, guardiã dos interesses da Pátria concebida como um ser que engloba e ultrapassa os indivíduos e estes têm por obrigação categórica de respeitar. Tudo isso estaria óptimo e seria esplêndido. Só acontece que a autoridade unicamente pode ser exercida por homens e que se os homens são imperfeitos e capazes de praticar o mal, como é que a autoridade lhes será confiada? Se no entanto não lhes for confiada não há afinal quem a exerça.
Mais ainda: como é que a autoridade, exercida por homens, conseguirá obviar aos defeitos deles, se são eles que a manejam?
A dificuldade, se é de monta, não a consideramos insuperável. Repare-se que, se os homens exercem a autoridade, não são a autoridade. As instituições podem enquadrá-los de tal maneira que eles, exclusivamente, ponham em acto um poder impessoal que não se identifique com os seus quereres subjectivos. Por certo que as instituições são criadas pelos homens, mas estes criam-nas superando-se a si próprios, vencendo a sua particularidade e as suas limitações. Já Maurras afirmava que «par l`institution l`homme s`éternise». Com efeito, as instituições ficam, os homens passam. As instituições boas são, assim, a eternização do que o homem tem de bom. Nessa medida, e dada a sua perenidade, é-lhes possível transformar e objectivar as transitórias vontades dos homens que corporizem a soberania. A questão institucional é, assim, das decisivas. Impõe-se fomentar as instituições em que a autoridade se aproprie dos homens que a executem e não estes se apropriem da autoridade para os seus projectos privados.
É óbvio que esta solução assenta na tese que aos homens é possível superar-se e erguer algo para além das suas individualidades passageiras. Para quem negue semelhante possibilidade, instituições não passam de palavras, de meros nomes a que não corresponde nenhuma espécie de realidade.
Há aqui uma divergência ontológica acerca das potencialidades humanas com repercussões políticas patentes, tal como têm repercussões políticas as divergências axiológicas acerca das relações entre o homem e o bem.
Resumindo: não há noção do Estado e da comunidade, que não assente numa Weltanschauung, uma visão do mundo e da vida. E como uma Weltanschauung, quando racionalmente justificada e estruturada, é uma filosofia, supomos lícito sustentar que não há conceitos sólidos de governação e de sociedade que não necessitem de uma filosofia.
António José de Brito
(In «A Rua», n.º 200, pág. 7, 10.04.1980)

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