terça-feira, junho 28, 2005
JOSÉ MARINHO OU A CLARIDADE EM FILOSOFIA
Uma das acusações que mais vulgarmente são dirigidas ao autor de "Elementos para uma Antropologia Situada" é a da sua falta de clareza. A esse propósito, nunca deixo de recordar o estudo de Francisco Romero inserido, salvo erro, no volume de "Filosofia de la Persona" acerca da claridade em filosofia. Aí se acentua que ideias claras podem ser em extremo falsas, como é o caso, por exemplo, da ideia «o homem é eterno», e que, em contrapartida, há ideias ditas nebulosas, que se apreendem com dificuldade, e que, no entanto, são em extremo exactas e fecundas.
É óbvio, todavia, que, se, no plano do filosofar, é impossível aceitar-se aquilo a que vulgarmente se chama falta de clareza, já não é lícito admitir-se o confusionismo mental, a obscuridade intencional e deliberadamente cultivada. Conta-se que Eugénio d`Ors (aliás um notável pensador), depois de escrever cada um dos seus artigos, lia-os à sua secretária, perguntando-lhe se os tinha entendido; no caso de resposta afirmativa, o mestre de "Glossário" exclamava logo, preocupado: «obscureçamo-lo um pouco». Trata-se de uma anedota, é evidente, mas que a traduzir uma realidade exprimiria a mais artificial e anti-filosófica das atitudes.
Inútil acrescentar que, se José Marinho não foi um cultor da clareza fácil, de nenhum modo se entregou ao barroquismo de uma impenetrabilidade vazia, criada exclusivamente com a mira de «épater le bourgeois».
A penetração e esforço com que temos de empenhar-nos na decifração dos seus trabalhos fundamentais não corresponde a nenhum malabarismo estesíaco de quem as elaborou, antes ao espontâneo e quase natural empenhamento num porfiado trabalho de aprofundamento ontológico e gnoseológico. De resto em nenhuma filosofia a sério se consegue penetrar sem um duro labor hermenêutico. Só Madame Stäel julgava que Fichte tinha possibilidade de lhe expor o seu sistema em dez minutos, sem que ela se desse ao incómodo de o ler e meditar.
Mesmo Descartes, que tanto teorizou a clareza, quantas e quantas vezes, à medida que lentamente procura ir ao fundo dos problemas, deixa de ser claro (apesar da aparência ilusória de uma compreensibilidade imediata) para nos obrigar a um trabalho árduo de reflexão e de reconstrução, só no fim do qual descobrimos a solução ou o argumento ou a dificuldade que ele nos queria apresentar.
José Marinho não se preocupou muito — honra lhe seja — com o tornar-se ou não acessível ao leitor desatento ou impaciente. Ele não sacrificou, jamais, nas aras da superficialidade, para obter aplausos e uma maior divulgação junto do público.
Ao invés, fixou-se num rumo especulativo pessoalíssimo, afastando-se, até dos trilhos habitualmente traçados nas escolas, para nos apresentar a visão e a revelação que o Ser trouxe até ele.
Depois de quanto expusemos cremos que todos perceberão intuitivamente que uma exposição crítica — ainda que assaz rápida — das concepções de José Marinho excederia de tão longe os limites desta simples nota que nem vale sequer tentá-la.
O que já me parece que vale a pena é dizer àqueles que, entre nós, ainda têm amor e interesse pela filosofia (que não se confunde com a série de lugares comuns bebidos em Marx hoje consagrados oficialmente nos estabelecimentos ditos de ensino e papagueados por uma multidão de snobs ou tontos) que na obra de José Marinho encontrarão sugestões originais, pontos de vista curiosos, e, sobretudo, um estímulo generoso e incessante que jamais deixará de os acompanhar de futuro na rota dolorosa e persistente da busca da verdade.
António José de Brito
(In «A Rua», n.º 21, pág. 20, 26.08.1976)
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É óbvio, todavia, que, se, no plano do filosofar, é impossível aceitar-se aquilo a que vulgarmente se chama falta de clareza, já não é lícito admitir-se o confusionismo mental, a obscuridade intencional e deliberadamente cultivada. Conta-se que Eugénio d`Ors (aliás um notável pensador), depois de escrever cada um dos seus artigos, lia-os à sua secretária, perguntando-lhe se os tinha entendido; no caso de resposta afirmativa, o mestre de "Glossário" exclamava logo, preocupado: «obscureçamo-lo um pouco». Trata-se de uma anedota, é evidente, mas que a traduzir uma realidade exprimiria a mais artificial e anti-filosófica das atitudes.
Inútil acrescentar que, se José Marinho não foi um cultor da clareza fácil, de nenhum modo se entregou ao barroquismo de uma impenetrabilidade vazia, criada exclusivamente com a mira de «épater le bourgeois».
A penetração e esforço com que temos de empenhar-nos na decifração dos seus trabalhos fundamentais não corresponde a nenhum malabarismo estesíaco de quem as elaborou, antes ao espontâneo e quase natural empenhamento num porfiado trabalho de aprofundamento ontológico e gnoseológico. De resto em nenhuma filosofia a sério se consegue penetrar sem um duro labor hermenêutico. Só Madame Stäel julgava que Fichte tinha possibilidade de lhe expor o seu sistema em dez minutos, sem que ela se desse ao incómodo de o ler e meditar.
Mesmo Descartes, que tanto teorizou a clareza, quantas e quantas vezes, à medida que lentamente procura ir ao fundo dos problemas, deixa de ser claro (apesar da aparência ilusória de uma compreensibilidade imediata) para nos obrigar a um trabalho árduo de reflexão e de reconstrução, só no fim do qual descobrimos a solução ou o argumento ou a dificuldade que ele nos queria apresentar.
José Marinho não se preocupou muito — honra lhe seja — com o tornar-se ou não acessível ao leitor desatento ou impaciente. Ele não sacrificou, jamais, nas aras da superficialidade, para obter aplausos e uma maior divulgação junto do público.
Ao invés, fixou-se num rumo especulativo pessoalíssimo, afastando-se, até dos trilhos habitualmente traçados nas escolas, para nos apresentar a visão e a revelação que o Ser trouxe até ele.
Depois de quanto expusemos cremos que todos perceberão intuitivamente que uma exposição crítica — ainda que assaz rápida — das concepções de José Marinho excederia de tão longe os limites desta simples nota que nem vale sequer tentá-la.
O que já me parece que vale a pena é dizer àqueles que, entre nós, ainda têm amor e interesse pela filosofia (que não se confunde com a série de lugares comuns bebidos em Marx hoje consagrados oficialmente nos estabelecimentos ditos de ensino e papagueados por uma multidão de snobs ou tontos) que na obra de José Marinho encontrarão sugestões originais, pontos de vista curiosos, e, sobretudo, um estímulo generoso e incessante que jamais deixará de os acompanhar de futuro na rota dolorosa e persistente da busca da verdade.
António José de Brito
(In «A Rua», n.º 21, pág. 20, 26.08.1976)
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