domingo, junho 26, 2005
NACIONALISMO E DESCENTRALIZAÇÃO
Há quem sustente que os esforços (improfícuos, aliás, até aqui) do sistema para descentralizar representam uma indiscutível vitória da doutrina nacionalista pela homenagem que expressam a uma das suas mais sérias reivindicações.
Quanto a nós, semelhante ponto de vista parece-nos amplamente equivocado. A descentralização aconselhada pelo nacionalismo apenas se compreende no conjunto das suas soluções. Ela postula, por isso, antes de mais nada, uma chefia suprema forte e pessoal que se imponha a valer. Uma vez vitoriosa a tendência concentradora no plano político, aceita-se como útil uma tendência desconcentradora no plano administrativo, de acordo com a fórmula tão repetida de Gama e Castro «o rei governa mas não administra».
Sem a condição prévia da existência de um chefe autêntico, a descentralização administrativa reduz-se a mais uma etapa no caminho da anarquia.
A descentralização preconizada pelo nacionalismo integra-se numa visão orgânica e hierárquica da sociedade. Julga-se conveniente que os orgãos soberanos se confinem a missões específicas e não procurem desempenhar, igualmente, funções que outras entidades poderão exercer com mais eficiência e proveito. A concentração excessiva, julga-a, por exemplo, António Sardinha, conducente ao enfraquecimento do Poder, sendo esse um dos motivos porque a repele (1). O Poder, para verdadeiramente ser Poder, não deve procurar realizar tudo, hipertrofiando-se, tornando-se apoplético, desmesurado, arrastado e tardo. Servidor do bem supremo que é a unidade, tem de aceitar a condição da vida da unidade — a variedade, a multiplicidade, que ela reúne, liga, disciplina e sem as quais não há actos de união possíveis.
Simplesmente, o que se não deve esquecer é que a variedade e a multiplicidade, para não serem factores de atomização e dispersão, têm de estar enquadradas na e pela unidade.
Por isso, a descentralização implica, previamente, uma direcção superior e una, uma força centrípeta que faça convergir as diferentes energias.
A autoridade ao alto, as liberdades «restritas e concretas» (2) — de novo, no dizer de Sardinha — em baixo (3), eis a fórmula nacionalista. A concentração no plano político e distensão no administrativo significam, porém, obviamente que as autarquias locais não são outras tantas pátrias independentes, mas, ao invés, pertencem à Pátria e têm de estar articuladas na totalidade que esta forma e de que é guardião e garante o Estado (no sentido mais usual da expressão Estado).
Quando, no entanto, tal totalidade não possui instrumento algum que a defenda e promova, quando a divisão e a discórdia estão instaladas na própria esfera do que deveria ser um núcleo central unificador, a descentralização perde todas as suas vantagens e torna-se uma das muitas fontes do caos reinante. Em democracia — e, em especial, em democracia partidocrática —, a descentralização (isto sem discutirmos a possibilidade ou a impossibilidade de uma democracia conseguir, estável e duradoiramente, descentralizar), se levada a cabo, constitui uma catástrofe. Os municípios ainda mais partidarizados, províncias opondo-se a províncias conforme a cor, enfim, a descida do espírito de seita e desobediência dos organismos de comando até aos confins das aldeias remotas — e aí temos a descentralização demo-partidocrática. Num regime de desordem ela só conseguirá repercutir e difundir a desordem. Unicamente num regime de ordem poderá ser um factor de revigoramento e pujança desta última, ao imprimir-lhe vitalidade e articulação.
Numa leitura ocasional deparamos, em revista francesa, com a afirmação de que Maurras, tendo sido entusiasta do regionalismo, perfilhara uma tese de esquerda. Como se houvesse algo de comum (além do nome) entre o regionalismo que certa esquerda apregoa e as concepções maurrasistas.
Aquele é o chamado protesto contra a pretensa opressão que do ordenamento nacional resulta, é o direito de grupos de homens, de acordo com as afinidades que sentem, se autodeterminarem e viverem exclusivamente por e para si, repudiando todas as regras imperativas e permanentes e aceitando exclusivamente o que é produto dos seus quereres arbitrários e ocasionais. O maurrasismo, por seu turno, é a defesa da nação pelo robustecimento das partes que a estruturam, as quais nunca podem esquecer o serviço do interesse comum. Entre o regionalismo das esquerdas e o regionalismo de Maurras há o abismo que medeia entre os que queiram desenvolver mãos, braços, pernas, coração, pulmões, nos limites que tornam um corpo cada vez mais firme e harmonioso, e os que pretendam fazer crescer mãos, pernas, braços, etc., cada um de per si até ao máximo, produzindo um corpo monstruoso que acaba por estoirar pela pressão do aumento autónomo e desproporcionado dos seus elementos constituintes. Em Maurras deparamos com o culto da unidade orgânica, no regionalismo da esquerda a aversão a toda a espécie de unidade, o amor extremado ao particularismo que dissolve e desagrega.
Nada mais é preciso acrescentar. Fujamos às confusões e ilusões e saibamos ver claramente que em democracia partidocrática não há descentralizações ou regionalizações que valham.
António José de Brito
Notas:
1 - «Tudo o que seja um abuso de centralização administrativa... resulta inevitavelmente num enfraquecimento da concentração política» (António Sardinha, Purgatório das Ideias, p. 273); «Se por exemplo se fala no municipalismo pensa-se em voltar aos forais tal como a Idade Média os concebe... O que se pretende é conservar esse apreciável instinto localista que assegura de per si a realização das mais saudáveis medidas descentralizadoras no interesse do Estado» (António Sardinha, Na Feira dos Mitos, p. 15.
2 - «É pelas liberdades de sentido restrito e concreto que dedicadamente nos inscrevemos» (António Sardinha, Na Feira dos Mitos, p. 30).
3 – Les Libertés en bas, l`Autorité en haut (Charles Maurras, Enquête sur la Monarchie, ed. Définitive, p. 449.
A. J. B.
(In «A Rua», n.º 163, pág. 16, 26.07.1979)
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Quanto a nós, semelhante ponto de vista parece-nos amplamente equivocado. A descentralização aconselhada pelo nacionalismo apenas se compreende no conjunto das suas soluções. Ela postula, por isso, antes de mais nada, uma chefia suprema forte e pessoal que se imponha a valer. Uma vez vitoriosa a tendência concentradora no plano político, aceita-se como útil uma tendência desconcentradora no plano administrativo, de acordo com a fórmula tão repetida de Gama e Castro «o rei governa mas não administra».
Sem a condição prévia da existência de um chefe autêntico, a descentralização administrativa reduz-se a mais uma etapa no caminho da anarquia.
A descentralização preconizada pelo nacionalismo integra-se numa visão orgânica e hierárquica da sociedade. Julga-se conveniente que os orgãos soberanos se confinem a missões específicas e não procurem desempenhar, igualmente, funções que outras entidades poderão exercer com mais eficiência e proveito. A concentração excessiva, julga-a, por exemplo, António Sardinha, conducente ao enfraquecimento do Poder, sendo esse um dos motivos porque a repele (1). O Poder, para verdadeiramente ser Poder, não deve procurar realizar tudo, hipertrofiando-se, tornando-se apoplético, desmesurado, arrastado e tardo. Servidor do bem supremo que é a unidade, tem de aceitar a condição da vida da unidade — a variedade, a multiplicidade, que ela reúne, liga, disciplina e sem as quais não há actos de união possíveis.
Simplesmente, o que se não deve esquecer é que a variedade e a multiplicidade, para não serem factores de atomização e dispersão, têm de estar enquadradas na e pela unidade.
Por isso, a descentralização implica, previamente, uma direcção superior e una, uma força centrípeta que faça convergir as diferentes energias.
A autoridade ao alto, as liberdades «restritas e concretas» (2) — de novo, no dizer de Sardinha — em baixo (3), eis a fórmula nacionalista. A concentração no plano político e distensão no administrativo significam, porém, obviamente que as autarquias locais não são outras tantas pátrias independentes, mas, ao invés, pertencem à Pátria e têm de estar articuladas na totalidade que esta forma e de que é guardião e garante o Estado (no sentido mais usual da expressão Estado).
Quando, no entanto, tal totalidade não possui instrumento algum que a defenda e promova, quando a divisão e a discórdia estão instaladas na própria esfera do que deveria ser um núcleo central unificador, a descentralização perde todas as suas vantagens e torna-se uma das muitas fontes do caos reinante. Em democracia — e, em especial, em democracia partidocrática —, a descentralização (isto sem discutirmos a possibilidade ou a impossibilidade de uma democracia conseguir, estável e duradoiramente, descentralizar), se levada a cabo, constitui uma catástrofe. Os municípios ainda mais partidarizados, províncias opondo-se a províncias conforme a cor, enfim, a descida do espírito de seita e desobediência dos organismos de comando até aos confins das aldeias remotas — e aí temos a descentralização demo-partidocrática. Num regime de desordem ela só conseguirá repercutir e difundir a desordem. Unicamente num regime de ordem poderá ser um factor de revigoramento e pujança desta última, ao imprimir-lhe vitalidade e articulação.
Numa leitura ocasional deparamos, em revista francesa, com a afirmação de que Maurras, tendo sido entusiasta do regionalismo, perfilhara uma tese de esquerda. Como se houvesse algo de comum (além do nome) entre o regionalismo que certa esquerda apregoa e as concepções maurrasistas.
Aquele é o chamado protesto contra a pretensa opressão que do ordenamento nacional resulta, é o direito de grupos de homens, de acordo com as afinidades que sentem, se autodeterminarem e viverem exclusivamente por e para si, repudiando todas as regras imperativas e permanentes e aceitando exclusivamente o que é produto dos seus quereres arbitrários e ocasionais. O maurrasismo, por seu turno, é a defesa da nação pelo robustecimento das partes que a estruturam, as quais nunca podem esquecer o serviço do interesse comum. Entre o regionalismo das esquerdas e o regionalismo de Maurras há o abismo que medeia entre os que queiram desenvolver mãos, braços, pernas, coração, pulmões, nos limites que tornam um corpo cada vez mais firme e harmonioso, e os que pretendam fazer crescer mãos, pernas, braços, etc., cada um de per si até ao máximo, produzindo um corpo monstruoso que acaba por estoirar pela pressão do aumento autónomo e desproporcionado dos seus elementos constituintes. Em Maurras deparamos com o culto da unidade orgânica, no regionalismo da esquerda a aversão a toda a espécie de unidade, o amor extremado ao particularismo que dissolve e desagrega.
Nada mais é preciso acrescentar. Fujamos às confusões e ilusões e saibamos ver claramente que em democracia partidocrática não há descentralizações ou regionalizações que valham.
António José de Brito
Notas:
1 - «Tudo o que seja um abuso de centralização administrativa... resulta inevitavelmente num enfraquecimento da concentração política» (António Sardinha, Purgatório das Ideias, p. 273); «Se por exemplo se fala no municipalismo pensa-se em voltar aos forais tal como a Idade Média os concebe... O que se pretende é conservar esse apreciável instinto localista que assegura de per si a realização das mais saudáveis medidas descentralizadoras no interesse do Estado» (António Sardinha, Na Feira dos Mitos, p. 15.
2 - «É pelas liberdades de sentido restrito e concreto que dedicadamente nos inscrevemos» (António Sardinha, Na Feira dos Mitos, p. 30).
3 – Les Libertés en bas, l`Autorité en haut (Charles Maurras, Enquête sur la Monarchie, ed. Définitive, p. 449.
A. J. B.
(In «A Rua», n.º 163, pág. 16, 26.07.1979)
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