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segunda-feira, junho 27, 2005

O ESTADO NOVO E O ESTADO 

O termo Estado é empregue em muitos sentidos, de entre os quais três são de assinalar com destaque:
1) Estado enquanto sinónimo de comunidade autónoma, organizada politicamente, isto é, sob a égide de um Poder soberano;
2) Estado enquanto sinónimo, precisamente, do Poder soberano existente em tal comunidade;
3) Estado enquanto sinónimo de mera aparelhagem burocrática (acentuemos que é com esse significado que o Nacional-Socialismo, ou, pelo menos, a tendência dominante entre os autores nacionais-socialistas alude ao Estado — Der Staat ist ein Apparat).
Que não se concebe comunidade ou sociedade (prescindindo, aqui, da distinção célebre formulada por Tonnies) sem um Poder supremo parece-nos um axioma indiscutível. As pessoas e os grupos não se integram, espontaneamente, numa unidade, antes tendem para a divergência e a dissociação (conforme dizia Maurras «ce qui m`étonne ce n`est pas le désordre, c`est l`ordre». As suas actividades têm de ser coordenadas, fiscalizadas, disciplinadas, para delas resultar uma totalidade harmónica. Essa a missão capital do Poder que, para o efeito, precisa de possuir ao seu dispor dos instrumentos adequados.
A força, o volume, o âmbito de aplicação de semelhantes instrumentos têm de ser encarados pragmaticamente, em relação com a conservação e o desenvolvimento da comunidade cuja sobrevivência o Poder deve assegurar. A denominarmos Estado a aparelhagem de que o Poder se serve, não vemos que o seu dimensionamento possa ser traçado a priori. As circunstâncias é que permitem decidir em cada caso concreto. Onde os perigos de dissolução e as ameaças de anarquia forem grandes, decerto que o Poder está na obrigação de estender o domínio de intervenção dos chamados órgãos estaduais, a fim de reprimir e dominar os factores de desagregação. Onde se verifique o inverso já o Poder dispõe da possibilidade de reduzir o número e a esfera de acção directa desses órgãos, diminuindo-a ou tornando-a muito mais flexível.
De certo, o ideal será que pessoas e grupos, por si, sem pressões exteriores, desempenhem na promoção do bem social as funções positivas que tenham capacidade para exercer utilmente — capacidade, não muito larga, é evidentemente, visto que o interesse geral só pode ser cometido a quem esteja na perspectiva do universal e não numa perspectiva de particularidade, conforme é o caso das pessoas e grupos, divergentes entre si. Mas como o universal não é nada de separado dos diversos elementos singulares (pois que, então, o universal seria, por seu turno, também um elemento singular) antes é aquilo que neles está presente, ligando-os, unindo-os, harmonizando-os, admitimos perfeitamente que, para a própria promoção do universal, a actividade não coagida das pessoas e grupos, em consonância com o Poder que, sobre eles, os integra num todo, seja preferível e mais eficiente do que uma actividade estruturada a partir de cima, impulsionada de modo imediato pelos organismo emanados do Poder. Simplesmente, que há-de este fazer, se as pessoas e grupos, em vez de desempenharem funções positivas, no plano em que as conseguem desempenhar, entram no cultivo dum egoísmo atomístico, num subsersivismo manifesto?
Claro que intervir ampla e acentuadamente. Talvez se perca em eficácia em comparação com a solução preferível? Sim, do mal o menos, porém.
Sirvamo-nos de uma comparação grosseira, porque abstrai de certas considerações de ordem sobrenatural. Considerada a família a célula social, é incontestável que os pais são quem a pode chefiar da melhor maneira. Eles são, em princípio e normalmente, os melhores funcionários da sociedade. No entanto, se os pais educarem os filhos para o crime, para a perversão, etc., há que retirar-lhes o pátrio poder e confiar a tutela daqueles a individualidades designadas pelos tribunais ou a determinadas instituições, oficiais ou particulares, reconhecidas como idóneas. Não sustentamos que isto seja uma situação esplêndida. É, todavia, uma situação preferível a deixar correr as coisas.
Um autor entusiasticamente adepto da descentralização — José Pequito Rebelo — em texto inserido na segunda edição de "Pela Dedução à Monarquia" admite (salvo erro, pois estou a citar de memória) que, provisoriamente e perante a perversão derivada de um século de demo-liberalismo, o Estado absorva a Nação, com a finalidade pedagógica de diminuir ou suprimir os ímpetos centrífugos e destruidores para que, depois, os vários corpos sociais possam exercitar sem peias as tarefas que lhe são próprias.
Prolongando e desenvolvendo por nossa conta, esse ponto de vista — e mantendo como meta final o equilíbrio das liberdades «em baixo» com o predomínio da Autoridade «no alto» — diremos que o dimensionamento dos instrumentos burocráticos do Poder é coisa relativa, que depende dos condicionalismos. O que numa certa conjuntura é desejável noutra é imprudência. O que numa é excessivo noutra é indispensável.
Estamos perante matéria contingente. É esta a primeira razão porque não é resolver o problema do Estado a tentativa de dosear o grau da intervenção dos seus instrumentos. Ela jamais pode ficar nada de definitivo. E por maioria de razão, a descoberta dos meios indicados para concretizar esse grau de intervenção representa, apenas, um problema técnico, de alcance limitado. Aumentar ou diminuir os ministérios, dividir os serviços burocráticos por vários centros ou concentrá-los predominantemente numa capital é questão a discutir, sem dúvida, contudo de interesse reduzido. Salvo o devido respeito pela opinião contrária, a tomada das capitais não corresponde a algo de decisivo. Com Paris conquistada, a França continuou a resistir até ao armistício e, se desse ouvidos a De Gaulle, prosseguiria na luta. Com Madrid nas mãos dos vermelhos, em Março de 1939, o governo republicano não passava já de simulacro. E se D. Manuel tivesse desembarcado no Porto a república não se poderia considerar ainda vitoriosa, apesar de Lisboa estar nas mãos dos republicanos.
De qualquer forma, centralização ou descentralização são inteiramente condicionadas, na sua validade política, pela estrutura e organização interna do Poder. Com um Poder fraco dividido, a descentralização é a antecâmara do caos e a centralização equivalente a impotência e paralisia. Já com um Poder forte e coeso a descentralização revela-se, acaso, em determinadas ocasiões oportuníssima e a centralização pode dar bons frutos, apesar dos seus inconvenientes.
E eis a segunda razão porque resolver o problema do Estado não é o mesmo que tentar circunscrever e delimitar a extensão do terreno em que devem actuar os instrumentos que o Poder utiliza. A forma assumida por este é que determina as possibilidades de actuação dos seus órgãos e agentes. Politique d`abord. Uma aparelhagem dúctil e ligeira em mãos ineptas não serve de nada. Um mecanismo, ainda que pesado e difícil, em mãos firmes é capaz de prestar bons serviços.
Pode-se andar com os pés apertados como a mulher chinesa, ou com os pés espalmados como os dos negros de certas tribos. Mas se o cérebro não comanda os movimentos, a deslocação é impossível e a paralisia é inevitável, por muito bem constituídos, anatomicamente, que estejam os membros inferiores. O primeiro passo, pois, para resolver o problema do Estado e o das instituições em que se corporize o Poder é a chamada questão do regime.
Para além dela, no entanto, há ainda algo de mais relevante, de mais proeminente e destacado: é a resposta à pergunta para que serve o vínculo social, para que serve a comunidade política. É ela um fim último, um fim em si mesmo? Está, axiologicamente, colocada abaixo da liberdade dos indivíduos e das pessoas, existindo, em última análise, para promover, assegurar, esta última? Ou sendo superior aos indivíduos e pessoas está ordenada a um fim mais alto, a um Absoluto transcendente, que também é o fim dos indivíduos e pessoas? Trata-se dos temas decisivos, que dizem respeito ao destino do homem, aos direitos, aos deveres, ao sentido a imprimir à sociedade no seu conjunto.
O tipo de organização interna do Poder depende da solução dada a estas dúvidas. Se as pessoas e indivíduos são o valor máximo, evidentemente que têm de intervir decisivamente no Poder, dispor dele, numa palavra. É uma exigência intrínseca da dignidade que lhes pertence o auto-governar-se e não serem hetero-governadas. Em contrapartida, pode entender-se que um Poder organizado assim — às ordens do somatório das vontades das pessoas — tem legitimidade para estender ao máximo a sua esfera de intervenção. Isso só significaria um esforço de protecção e segurança do maior número de indivíduos. E também se poderá pensar o contrário e sustentar que os órgãos do Poder se devem restringir ao mínimo sendo isso a melhor garantia de respeito pelas pessoas. Numa palavra, estamos perante uma simples discussão de meio e unanimidade quanto aos fins. Centralização e descentralização são ambas, em princípio, compatíveis com uma axiologia personalista ou individualista.
Mas se se considerar, ao invés, que a comunidade política é o valor máximo, o Poder terá de estar acima da vontade dos indivíduos e destinar-se a impor-lhes uma disciplina exclusivamente supra-pessoal. Terá de ser um Poder independente, que apenas expresse esse interesse colectivo, por hipótese auto-suficiente. Nada impede, todavia, que se entenda que a comunidade política, proclamada fim de si mesma, está mais bem articulada, e desenvolve-se e potencia-se de maneira superior, se nela imperar um bom nível de descentralização. Ou que se julgue que o oposto é que é verdade.
Quer dizer que, também, centralização ou descentralização são compatíveis, em princípio, com uma axiologia totalista e imanentista.
Análogas reflexões são concebíveis no tocante à tese do primado da sociedade sobre a pessoa, embora ordenada a primeira a um fim último que a ultrapassa e transcende.
Isto demonstra, segundo imaginamos, que encarada do ponto de vista da simples existência da sociedade a questão descentralização — centralização não passa de um ponto de mera decisão conjuntural, sempre dependente, aliás, da forma como o Poder está internamente estruturado. E, no que diz respeito às noções éticas decisivas, concernentes ao sentido da vida política, ela é adiáfora, isto é, alheia às mesmas, que não impõem, do ponto de vista axiológico, uma solução centralizadora ou descentralizadora.
Assim, o fundamental é, a nosso ver, o problema do fim derradeiro da comunidade e o da organização interna do Poder que se conexiona em relação recíproca com o primeiro e directamente com o da eficácia da acção dos chamados organismos estaduais, estejam desenvolvidos e estruturados como estiverem.
Examinemos o Estado Novo de Salazar à luz de quanto expusemos. Supomos perfeitamente lícito sustentar que ele se distingue do statu quo vigente no que mais importa: no tocante à axiologia e no tocante à organização interna do Poder. O statu quo vigente é inspirado pela ideologia demo-liberal e seus prolongamentos marxizantes. O Estado Novo era guiado por um nacionalismo não totalitário uma vez que admitia que a pessoa existia para Deus — e Deus concebido de acordo com o Catolicismo — mas autoritário, porque, no plano natural, sustentava que a pessoa, para atingir a sua finalidade suprema, devia submeter-se à comunidade posto que, de acordo com o ensinamento de Aristóteles e de S. Tomás, o bem da cidade é mais divino do que o bem de um só.
O statu quo vigente é partidocrático, divisionista, sufragístico, defendendo a tese curiosa de que os governados é que devem governar e ser governantes. O Estado Novo suprimiu o fragmentarismo partidário, exalçou as virtudes do governo de um só ainda que de maneira imperfeita e sem jamais chegar às devidas conclusões institucionais. Aqui, neste particular, é que me parecem merecidas as críticas.
Seja como for, as divergências no essencial são flagrantes. Que houvesse mais ministérios do que na I República (embora menos do que hoje) não imaginamos que nos importe muito se a direcção (nos dois sentidos da palavra direcção) que lhes foi imprimida era radicalmente diversa.
Acaso a centralização do Estado Novo, por vezes, resultou excessiva e, noutros casos, pouco hábil. Depois de cerca de cem anos de desordem democrática, que não se cura numa ou duas décadas, supomos impossível seguir outro rumo. Se alguém recebe uma «pesada herança» esse alguém foi Salazar.
Dadas as circunstâncias de orientação no que é básico entre o Estado Novo e o statu quo vigente julgamos profundamente equivocado apresentar este qual sucessor doutrinário daquele. Se há sucessão, é puramente cronológica, já que a relação entre um e outro, no que concerne ao essencial, é de antagonismo irreconciliável, um antagonismo do tipo que existe entre a verdade e o erro, o ser e o nada.
António José de Brito
(In «A Rua», n.º 73, pág. 18, 01.08.1977, e n.º 74, pág. 10, 04.04.1977)

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