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quarta-feira, junho 22, 2005

QUANDO ESCREVER ERA PERIGOSO... 

Tinha, precisamente, acabado de folhear o volume com este título (1) do sr. José de Magalhães Godinho — o volume que, à semelhança do seu autor, nada deve à inteligência — e, ao pousar distraidamente a vista num vespertino que alguém colocara a meu lado, os meus olhos esbarraram na notícia da prisão de Manuel Maria Múrias. Detido à saída de casa, fora conduzido à Cadeia Central de Linhó onde expiaria os seus terríficos e tremebundos crimes. Um justo castigo impendia sobre ele, que não é um terrorista, como Arafat, que, de pistola à cinta, foi recebido pelo Presidente Eanes, nem um assassino como Santiago Carrillo que o chamado rei de Espanha, o eminentíssimo Cardeal Tarancón e o ilustre Adolfo Suarez acolhem, de braços abertos, com ternas saudações.
Manuel Maria Múrias pensa mal e isso é muito mais grave do que fazer ir pelos ares ou abater a tiro burgueses e fascistas. Alguns epítetos enérgicos, dirigidos aos nossos novos amos, só, de facto, o cárcere os pode punir — enquanto não for restabelecida, para o efeito, a pena de morte.
Se, no tempo em que, segundo o sr. José Magalhães Godinho, escrever era perigoso, se tivesse passado facto análogo ao que a prisão de Manuel Maria Múrias consubstancia, quantas intermináveis tiradas de indignação se não teriam escutado, quantos infindáveis brados contra a tirania se não teriam ouvido. E, por certo, no trabalho daquele douto senhor, um capítulo especial seria consagrado ao episódio em questão, onde não faltariam os apodos ferozes e vingadores lançados contra o ditador e a sua justiça.
A democracia, no entanto, tem os seus privilégios. Aí tudo é diferente. O encarceramento de um jornalista, porque jornalista, pouca emoção despertou entre os plumitivos da nossa Imprensa, sempre prontos a erguer lanças pela livre expressão dos papúas ou pela dignidade humana dos Kamtchatka, mas assaz alheios, por vezes, ao que se passa portas adentro.
Àparte um ou outro protesto isolado e que dignifica que os subscreveu, um silêncio gélido foi a atmosfera que acolheu na Imprensa o enclausuramento de Manuel Maria Múrias.
Suponho que este se não admira e que, à semelhança do filósofo, quanto mais conhece os homens — muito particularmente os homens que se arvoram em defensores profissionais da liberdade — mais gosta dos cães.
Pode-se repelir a doutrina de um Estado autoritário, mas não há dúvida que ele está a ser coerente consigo próprio e que não engana ninguém ao tentar dirigir a opinião pública e procurar eliminar os ataques que ponham em causa a sua política. Que dizer, porém, do procedimento dos governantes de um Estado democrático que clamam as excelências das confrontações ideológicas, excelsam a formidável bondade da existência de oposições, e, depois disso, colocam, com naturalidade, detrás das grades quem os hostiliza com maior ou menor veemência?
Quando escrever era perigoso, havia censura, uma clara e franca censura, mas não se usavam os métodos tortuosos, disfarçados, vis, que hoje se empregam para silenciar, em nome da tolerância, os que discordam do regime e dos seus próceres. E o certo é que, nesses ominosos tempos, que o sr. José de Magalhães Godinho condena com virtuosa indignação, não se chegou nunca a passar o que actualmente sucedeu e sucede com Vera Lagoa e Manuel Múrias, para só referir os casos mais gritantes. Eles são autenticamente afogados, submergidos com processos, alguns de fundamento ultra-ridículo. E o dilema acaba por surgir-lhes à mente: ou calar-se ou caminhar para o cárcere.
Manuel Múrias decidiu, uma vez por todas, que só se o amordaçassem é que deixaria de erguer o seu protesto solene contra a clique sinistra que nos desgoverna, após ter reduzido Portugal a um insignificante rectângulo da Península. Nesta conturbada época, têm saído da sua pena algumas páginas mestras de polémica, desde os artigos do "Bandarra", aos fundos de "A Rua", passando pelos escritos que inseriu na "Resistência", mal se libertou das grilhetas gonçalvistas.
Ele paga, agora, nesta nossa democracia - que é sinónimo de hipocrisia — o preço da sua coragem e do seu desassombro.
Sim, todos somos livres de afirmar o que entendemos, só que — pequenos pormenores - nem podemos discordar dos dogmas reinantes (aí está a lei celerada para nos manter na ortodoxia), nem criticar a sério a classe política dominante (aí temos vigilante o sr. Procurador-Geral da República).
Claro que, no tocante a este último, há nuances. Que, no "Diário", se injurie o sr. Sá Carneiro não comove por aí além o sr. Procurador. Que se toque, todavia, com um adjectivo mais rude nos heróicos Conselheiros da Revolução, que travavam batalhas famosas debaixo das Berliets ou no Presidente da República, que condecora romancistas (2), não só inimigos de Portugal, (o que se compreende porque aos inimigos de Portugal nunca ele se recusou a abraçá-los e a acarinhá-los), mas até inimigos dos pobres e humildes portugueses que, perdidos os bens adquiridos em Angola à custa do suor do seu rosto, para evitar a morte, buscaram refúgio no Brasil, onde chegaram com a camisa no corpo — e já o sr. Procurador não tem mais mão em si e brande, com dureza, os fulminantes raios da sua cólera.
Quando escrever era perigoso... Bons tempos esses! Perigoso é, actualmente, empunhar uma caneta e ter a veleidade de ser independente e patriota. Que o diga Manuel Múrias, a gozar no Linhó as benesses do pluralismo democrático.
António José de Brito
Notas:
1 - O título exacto é «Quando falar e escrever era perigoso».
2 - Aludimos ao sr. Jorge Amado, por cujo talento literário temos, aliás, a maior admiração. Só que o sr. general Ramalho Eanes não tem nem a envergadura intelectual nem a função constitucional de crítico literário e, na qualidade de Chefe de Estado e até de simples homem, não deveria esquecer as frases odiosas que o sr. Jorge Amado publicou a propósito dos refugiados de Angola que, nas mais trágicas circunstâncias, buscaram abrigo no Brasil. Tais frases estão transcritas em "O Diabo" de 26 de Fevereiro, mas já o sr. Adriano Moreira a elas se referira num dos seus recentes livros.
(In «A Rua», n.º 196, pág. 3, 13.03.1980)

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