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domingo, julho 31, 2005

A PROPÓSITO DE UMA PEÇA DE PIRANDELLO 

Em 1922, Giovanni Gentile era nomeado, por Mussolini, Ministro da Instrução Pública de Itália. Gentile tinha sido, com Benedetto Croce, director da revista "La Critica", ambos eles renovadores da Filosofia idealista no mundo. Mas a principal tarefa de Gentile foi, daí em diante, além da sua gigantesca obra filosófica, a reforma da educação, a formação das gerações novas. Como diz Ugo Spirito, «na reforma, Giovanni Gentile concretizou o fruto da sua experiência de educador e da sua concepção filosófica, percorrida pela revolução política». O autor da "Pedagogia Generale" estabeleceu um plano e uma organização primorosa e toda a actividade espiritual italiana passou a integrar-se nesse formidável desígnio.
Em 1929, o Pacto de Latrão, entre o governo italiano e a Igreja Católica, intensifica as vias da nova mentalidade.
É numa Itália assim que a peça "O Homem, o Animal e a Virtude", de Pirandello, obtém justo aplauso. Aliás, uma semelhante preocupação de justeza espiritual distingue o genial Pirandello. Entrou para o Partido Fascista, logo desde início; em 1924, quando Matteoti foi assassinado, Pirandello publica uma carta em defesa de Mussolini; quando se empreende a conquista da Abíssinia, o mesmo patriótico escritor oferece, para ajudar a campanha, a medalha que recebera do Prémio Nobel. Pirandello sabe o que convém à salvação da Itália e do mundo.
Profundamente moralista, exigente de autenticidade, ataca a hipocrisia, as máscaras, a deformação. Requer que cada homem, por um acto de vontade marcada na justeza e na verdade do universal, construa a sua própria libertação e harmonia. Corrado Alvaro escreve estas palavras elucidativas: «As peças pirandelleanas são os dramas da angústia da burguesia, da própria civilização com o seu mundo de convenções a dissolverem-se, e com o renascimento da natureza e do instinto, isto é, da moral natural onde tenha falhado a social. Se quisermos procurar um fundo filosófico em as concepções pirandelleanas do mundo, descobriremos nele o poeta do viver, enquanto criação de nós próprios, o inimigo dos lugares comuns e do convencionalismo, o defensor da superioridade da inteligência sobre o instinto, o poeta do homem elaborado pela consciência civil. O mundo, para ele, é uma contínua invenção pessoal.» Esta atitude que poderíamos aproximar de frases de Gentile e Mussolini é, afinal a procura de um reajustamento, de uma claridade para além da angústia e da amargura. A sua austeridade (tem-se falado muito no estoicismo de Pirandello) não toma, porém, a fórmula dum didactismo pedante e fastidioso, mas dum debate vivo, de figuras aliciantes, de situações dramáticas e de sátiras regorgigantes de riso.
Pirandello escreveu um livro que se intitula "O Humorismo" e a sua obra foi reunida sob o título de "Máscaras Nuas". A demanda da verdade sob as aparências, o desmascaramento dos vícios e da hipocrisia, o desejo de construção ideal, a gargalhada implacável, a pungente caricatura cómica, eis os traços dominantes na obra de Pirandello. Uma das suas peças que dá isso mesmo um vigoroso testemunho é a extraordinária farsa "O Homem, o Animal e a Virtude".
Obra moralista e não simples arte pela arte, é como um açoite no clássico triângulo amoroso. O processo é, em vez da lágrima, o riso; em vez do discurso, a caricatura; em vez do ar sério, o escárnio; em vez do sentimentalismo, a sátira. No entanto, lá dentro e não nas atitudes exteriores, existe uma enorme gravidade, pungente reflexão.
Sátira... claramente. Sátira do abandono do lar, não apenas temporário e físico, mas total e definitivo, abandono de estima, de presença espiritual, de dever conjugal. Sátira do conquistador adúltero, preferindo todas — até o rebutalho! — à sua mulher legítima. Sátira do adultério romântico, do sentimentalismo. Sátira da falsa virtude, da pudícia em gestos, falas e posturas, apenas. Contra a mascarada e a deformação, Pirandello ergue-se, desnudando a desumanização, o erro, as marionetas.
Goulart Nogueira
(In Agora, n.º 285, pág. 8, 19.11.1966)

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