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terça-feira, julho 26, 2005

UM HOMEM DE DEUS 

Salazar é, para os homens da minha geração, a primeira figura deste tempo. A sua geração — a de 1915 —, é a de Fernando Pessoa que nasceu em 1888, é a do Sardinha nascido na mesma altura, é a do Pimenta, vindo ao mundo em 1882. Em 83 nasceu António Sérgio; em 84 Jaime Cortesão; Sousa Cardoso nasceu em 1887, o Sá-Carneiro em 1890 como o Luís de Freitas Branco; o Almada nasceu em S. Tomé em 1893; o Prof. Cerejeira viu a luz em Lousada em 1888; Salazar nasceu no Vimieiro em 1889. Foram homens, todos eles, que receberam na face, adolescentes, como um estigma, o assassínio d`El-Rei D. Carlos, e se escaparam, por aí, da influência romântica e anárquica do mais extremo demagogismo republicano, e aceitaram o 5 de Outubro como o princípio do fim, e assistiram, pávidos, à guerra de 14; e se fizeram o que foram entre 1910 e 1915. Os anos 20 seriam os da sua integral determinação. São a geração do sacrifício e do resgate. A nossa visão do mundo foram eles que a enformaram. Sem a sua presença, o Portugal de hoje seria uma sombra de si mesmo. Constituem a mais rica e mais forte geração de quantas, depois de quinhentos, deram espírito e independência a Portugal. Para lá do que os dividia. No que nos une a todos. Agora.
Num momento histórico, Salazar catalizou, em pleno conteúdo, o revolucionarismo pronunciado ou latente dos seus contemporâneos — e, pedra sobre pedra, com evangélica paciência, inamovível vontade, ordenou o caos: — deu forma e vida às ousadas esperanças, nacionalidade e baptismo aos loucos desejos. E, pelo deserto, durante quarenta anos, encaminhou o povo desencaminhado. Foi o Homem de Deus. Verdadeiramente foi Portugal tornado corpo e alma, na sucessão do tempo indefinido.
Havíamos de beber o cálix até às fezes, para regressarmos ao nosso destino. A Nação envolta em nevoeiro, dispersava-se, incerta e derradeira. Salazar instila-lhe de novo o desejo de querer — e a seu lado, oito lustros, recomeçamo-nos trabalhosamente, reimaginámo-nos como sonhámos ser, reencontrámo-nos pelos caminhos do deserto. E vencemos — já nada nem ninguém nos levará a glória — tragada foi a morte na vitória... Salazar permanece vivo na gente portuguesa, consumida pelos séculos e pelas lágrimas, o imperecível vencedor. Para além da Vida. Para além da Morte — pois certificou-nos do que fomos, somos e devemos ser, e uniu-nos com facho ardente de acção e vitalidade. Ressuscitou-nos, incorruptos, tal qual fomos, tempos idos. Onde está ó morte, o teu aguilhão? Louvado seja Deus!
A transcender a obra concreta, palpável, quase mesquinha, de possibilitar fazer este ou aquele prédio, lançar esta ou aquela ponte, mandar mais meninos à escola, há no fundo do seu pensamento político a prefiguração de um novo Portugal remoçado, renovado, ordenado, bem caiado e bem limpinho como um monte alentejano; sim, de Portugal estruturalmente novo que, embora subjacente em oito séculos de história, faltava teorizar, e começar do princípio, como se nunca tivesse havido. Somos constitucionalmente o que somos porque Salazar o descobriu em 33: — Pátria una nas cinco partes do mundo, impossível de vencer, ou desintegrar, ou dominar só aqui ou só além, unidade moral e política, país do futuro, formidável avanço sobre o tempo. A ideia latejou informe no espírito dos Reis: — em D. Manuel olhando a Índia, em D. João III, pensando o Brasil, em D. João IV, aconselhado a ir para lá para melhor resistir a Castela, em D. João VI que para lá foi com os instrumentos do Estado a continuar Portugal, Salazar, porém, constitucionalizou-a, figurou-a juridicamente — e agora obriga-nos a recomeçar, resacrificando tudo aos que vêm vindo. Que inquietação do fundo nos soergue? Esta: a de recomeçar a fazer Portugal aquém e além-mar, com o amor profundo de quem faz um filho, e frutifica a Terra, e a humedece em lágrimas, e a fortalece, regando-a com o próprio sangue.
Profundamente europeizados no nosso pensamento político pelas consequências diplomáticas da usurpação dos Áustrias, perdemos, a partir do século XVII, o sentimento da nossa originalidade. Tivemos de subir o Calvário e descer da Cruz para ressuscitar. A partir de Pombal, como servos, macaqueámos a Europa, transplantando para aqui os seus problemas sem Mar. Degradámo-nos indo contra a natureza geo-política, sempre na iminência de voltarmos a ser reabsorvidos por Castela, integrados e dissolvidos no grande espaço, tão bem definido topograficamente, que é a Península Ibérica.
Fomos como uma Nação inconsciente, condenada à sobrevivência, vegetando pobre na órbita dos interesses das grandes potências.
A nossa cultura política — era a cultura política europeia. Os estrangeirados da direita e da esquerda, dominaram-nos por inteiro — e durante trezentos anos, até Salazar, vivemos torpemente a descer, caricatura da Europa, instrumento estratégico das várias políticas que, em alternâncias, imperaram no velho continente, o covil das toupeiras do pensamento alexandrino de Napoleão, Bluteau, Azevedo Fortes, o dr. Jacob Sarmento, Ribeiro Sanches, D. Luís da Cunha, Alexandre Gusmão, o Padre Verney, os oratorianos contra a companhia de Jesus — foram todos eles uns europeizantes de raiz a precederem a hecatombe cultural novecentista, tradutores do inglês e do francês, mestres dogmáticos da desnacionalização política da Pátria que haveria de culminar no baixo-liberalismo de 1910, patamar da desgraça do povo perdido de si, cadáver ambulante que procria.
Fomos Império quando os outros nos transmitiram a ideia. Regressámos às origens no limiar da catástrofe, em 61, afastando todos os esquemas que, não entroncando na antiga e natural tradição, matriz da originalidade portuguesa, poderiam afastar-nos do destino histórico. O processo de reaportuguesamento dos costumes políticos, inicia-se em jurisprudência, já ideologicamente evoluído, com a Constituição e o Acto Colonial de 1933 de que é autor Salazar, começando então o desfazamento do Império, para se recomeçar a fazer a Nação.
O Império define-se historicamente como a hegemonia de uma estirpe sobre outra. É a consagração da desigualdade dos grupos e das comunidades regionais ou linguísticas; é a aceitação da pluralidade das nações no seio de uma única soberania; é, acima de tudo, a aceitação implícita de um princípio de desunião real, desintegrador em si mesmo, naturalmente circunstancial, congregação de interesses inconfundíveis e que se separam ao deixarem de se interessar entre si. Desde antes de Alexandre, que os sabemos a perecer — e, diante dos nossos olhos, vimos o tombar o Império Britânico, e o Império Francês, e o da Espanha, e o Império Germânico, outra vez a Alemanha dividida como se Bismark não tivesse sido.
A Nação, ao contrário, é uma unidade espiritual indesintegrável. Cimenta-a, juridicamente, a unidade política, mas sobrevive sem ela: — Goa é Portugal; sobrevive sem território até — é o caso exemplar da nação judaica. É muito mais que só o hábito de viver em comum, como queria Jacques Bainville; é, essencialmente, o hábito de sentir em comum, acordando a memória colectiva para os trabalhos do futuro. Grupo natural, comunidade perfeita, a derradeira expressão da família.
Rezando, o génio de Salazar redescobriu-nos hiantes de nós próprios, famintos de desejar poder querer. E deixa-nos agora a refazer Portugal, aquém e além-mar em África, revolução integral da nossa antiga fisionomia geo-política, do nosso instante carácter sociológico. Somos os mesmos, mas preparamo-nos para a transfiguração. Em nenhum outro momento da sua história, Portugal teve melhor consciência de si. É como se nos fundássemos de novo, a Nação a fazer a Raça, tal qual os tempos de Afonso. O conceito salazariano de uma Pátria una, disseminada pelos quatros cantos do mundo, unidade espiritual e política, mentalmente ordenada pela língua e pelo costume — multiracial e multireligiosa — é um conceito inédito no direito público português. É revolucionário porque, para se realizar, impõe um homem novo numa sociedade nova. Etnicamente, fundamenta-se na prática amorosa que gerou o Brasil; politicamente, firma-se na experiência de D. João VI, rei de Portugal na América; sentimentalmente ressalta das profundezas do nosso ser biológico, amantes das mais belas e melhores mulheres do mundo, dando-nos e recebendo-as em frutificador abraço.
Nação mestiça somos. Realização do puro amor do próximo. Encarnando-nos, só e sem família, foi este beirão adusto que nos reencaminhou pelos caminhos do deserto. Deixa-nos purificados, com a sua herança no sangue, senhores do destino.
Viveu enquanto quis. Viverá para sempre na alma da gente portuguesa enquanto permanecermos fiéis ao seu genial pensamento político. Os médicos sustentaram-no dois anos; havemos nós de o sustentar séculos fora, não cedendo um milímetro, os dentes bem cerrados, os pés bem fincados na nossa Terra, os olhos bem fixos no nosso Céu, Portugal nas mãos. Roemos-lhe a carne e os ossos — devemos-lhe o Futuro.
Dai-lhe Senhor, o eterno descanso e brilhe para ele o esplendor da luz eterna. O justo será de eterna memória, e não terá a temer o mau renome.
Mas permiti, Senhor, que sejamos firmes, e fiéis, e fortes de ânimo, e continentes de espírito. Para vos servir! E sermos dignos dele! E continuarmos Portugal!
Manuel Maria Múrias
(In Política, n.º 14/15, 15/30.07.1971, pág. 6)

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