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quarta-feira, agosto 31, 2005

ACABEMOS COM ISTO! 

Isto é a cobardia democrática. Isto é o preconceito democrático. Isto é a vermina democrática.
A Democracia afoga-nos, subverte-nos, arruina-nos, envenena-nos. Diante dela, a sociedade portuguesa está tolhida, vencida, sucumbida e morta — para toda a energia sã, para toda a acção salvadora. A República? Não. Não é bem a República que nos mata: é a Democracia. A Monarquia? Não será a Monarquia que nos salvará, se vier aliada à Democracia. Porque a Democracia é a antecâmara da Anarquia. A Democracia é a legalização da Desordem, é a organização do Tumulto. A Democracia é a lógica, às avessas; é o regime da Multidão, do ninguém se entende, do tudo doido. A Democracia é contra a Pátria, depois de ser contra a Família, depois de ter sido contra Deus. A Democracia é o caos.
A sociedade portuguesa sofre do uso e do abuso da Democracia. Deixaram-se corromper por ela todas as classes, todos os partidos, todas as categorias. A onda democrática bate o seu pleno — desde as mais altas esferas intelectuais até às mais baixas camadas populares. Por isso, a sociedade portuguesa se encontra na fase mais crítica da sua existência, fugindo do poço da lama para que a Democracia a arrasta para ir cair no lago de sangue para que a Democracia a atrai.
Todos os aspectos singularmente doentios que a sociedade portuguesa apresenta ao observador, têm uma origem: a corrupção democrática, a tendência democrática, o preconceito democrático, a sugestão democrática.
As castas aristocráticas finam-se por esterilidade. As massas democráticas diluem-se em grosseria e sangue.
A Democracia é a mistura, a mestiçagem, a confusão, o tumulto.
Não se confunda Democracia e Povo, não se confunda Aristocracia e Brasão. Porque no Povo, há aristocratas — os espíritos de eleição que olham o Céu e as Estrelas; entre os brasonados, há democratas — os que descem os olhos para as sarjetas sociais e se comprazem com os contactos lamacentos e repugnantes.
Aquele homem do povo que se lava e procura distinguir-se da arraia em que viveu, pelas maneiras e pelas acções, buscando, na cultura dos seus sentimentos, compensação para a humildade e anonimato da sua origem — esse é um aristocrata.
Aquele filho d`algo que esquece os feitos de heroicidade física ou moral dos seus maiores, para se deliciar no convívio dos mais lastimáveis tipos da baixa fauna social, e se degrada, e se arrasta até se confundir com eles — esse é um democrata. Entre um parvenu de salão e um parvenu de taberna — ah! Senhores, não hesitemos. O primeiro pode dar-nos a impertinência que irrita. Mas o segundo dá-nos a degradação que arrepia. E dos dois, só o segundo é produto da Democracia.
Não há dúvida nenhuma que nós estamos sofrendo uma profunda crise de inteligência — crise de origem democrática. Não há reflexão; não há raciocínio; não há cultura; não há respeito pela inteligência. Há mais alguma coisa, que é muito pior: há um ódio, oculto, por ora, à inteligência. Que processo adoptou a Democracia para conseguir triunfar no seu assalto à inteligência? O mais infame: fingindo-se defensora da inteligência. Ora se há inimiga da inteligência, por natureza, pela sua própria substância, — é a Democracia, o nivelamento, o repúdio de todos os Heróis, de todas as Personalidades, de todos os Eus.
O sintoma mais típico do domínio da Democracia, e por outro lado, a revelação mais clara do seu carácter — temo-la aí nesse culto do Soldado Desconhecido, do Anónimo, do Ninguém, em detrimento do culto devido aos generais responsáveis, sobre quem cairiam todas as afrontas e todos os vexames, todos os insultos e todos os castigos, no caso de uma derrota, e a quem negam todas as homenagens, na hipótese realizada do menor mal possível. E toda a gente se acobardou diante da vaga anárquica, e consagrou a mais demolidora das orientações!
Às vezes, mesmo antevendo a catástrofe para que nos encaminhamos com aquela fúria singular de quem tem medo de não chegar a tempo, sorrimos de desdém, ouvindo a gritaria, a choramingaria, os protestos, os discursos, as ameaças, as reclamações, que surgem nos jornais, nas representações, nos parlamentos, nas salas, nas ruas, em toda a parte. Porque tudo isso, gritos, choradeiras, protestos, discursos, ameaças, reclamações, — é poeira vazia, é linguagem de papagaio, e tolice... Gritam, protestam, contra o assassinato e o roubo, contra a injúria e a calúnia, mas fazem muralha, quando alguém, audaz, se ergue contra a origem do assassinato que os aflige, do roubo que os amedronta, da injúria que os vexa e da calúnia que os irrita.
Acabo de percorrer a maior parte dos comentários que se fizeram ao acontecimento trágico de quarta-feira passada, em que um agente da ordem pública e social sucumbiu às mãos de um inimigo da mesma ordem, — acontecimento que se deu no mesmo dia em que pela terceira vez se adiou o julgamento de outro inimigo da ordem social. Palavras, palavras, palavras — e nem um conselho positivo, e nem uma solução positiva! Tocar na arca santa da instituição do júri criminal? Pedir a instituição dos processos sumários militares? Esquecer tudo, tudo e obrigar o Governo a defender a Ordem, e impôr a Ordem, com a Constituição ou contra a Constituição, com o Parlamento ou contra o Parlamento, com a Lei ou contra a Lei? Credo! Seria magoar a Democracia. Seria ofender a Democracia.
Diante de uma casa a arder, não se discutem teorias: apaga-se o fogo, a bem ou a mal. A sociedade portuguesa está a arder. Acudam-lhe enquanto é tempo. Arrumem para o lado os incendiários ou os coniventes, encontrem-se eles onde se encontrarem, — no Parlamento, nos jornais, nas Secretarias, nas ruas e nas alfurjas — e salvem isto da derrocada!
Alfredo Pimenta
(In Acabemos com Isto, «A Época», n.º 1749, 01.06.1924, pág. 1)

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