sexta-feira, agosto 26, 2005
O DISCURSO DA IMPOTÊNCIA
A comunicação televisiva do Primeiro-Ministro na passada segunda-feira foi verdadeiramente dramática. Chegados às últimas frases da longa palinódia do prof. Mota Pinto, os estimados telespectadores devem ter-se virado uns para os outros e resmungado:
— Estamos de tanga... O país está perdido por muitos anos e bons...
Não se escusou o Chefe do Governo de nos explicar porquê. Durante os últimos quatro anos os vários ministérios que se apossaram do Terreiro do Paço delapidaram alegremente o tesouro público; desde Vasco Vieira de Almeida a Medina Carreira, passando por Silva Lopes e por Salgado Zenha, não houve um financeiro em qualquer dos elencos ministeriais; em vez de se fazer administração, fez-se demagogia; em vez de se satisfazerem as necessidades mínimas da comunidade nacional, satisfizeram-se apenas os interesses sectários dos ajuntamentos partidários.
O IV Governo Constitucional encontrou uma situação económica e financeira muito degradada — disse o Primeiro-Ministro. E exemplificou: — o défice do sector público em 1978, incluindo as empresas do Estado, não será inferior a 95 milhões de contos: — os portugueses de hoje exploram miseravelmente os portugueses de amanhã.
Disse mais:
Na vida administrativa do Estado (...) deparamos com excesso manifesto e generalizado de pessoal (...) — por vezes sem outra explicação aparente que não seja a satisfação de compadrios e clientelas ou a cedência perante reivindicações irrealistas.
Acrescentou:
A dívida externa portuguesa, onde se espelham desvarios, inconsequêncis e demagogia de todos os conhecidos, e a insuficiência das providências mais recentes, aproximou-se no fim de 1978 dos 250 milhões de contos, que naturalmente exigem pagamento anual de juros correspondentes.
Outrossim afirmou:
A grande maioria das empresas públicas apresenta uma situação altamente deficitária em grande medida por falta de eficiência.
Desmentindo recentes declarações de Mário Soares, mentiroso relapso e contumaz, Mota Pinto continuou:
O atraso encontrado nas múltiplas tarefas preparatórias de adesão ao Mercado Comum Europeu excedeu todas as previsões.
(...) o aparelho administrativo em geral funciona de forma insatisfatória e, relativamente a alguns serviços, só com boa vontade se pode dizer que funcionam. A administração pública sofreu em cheio o embate da demagogia, algumas vezes insensata, quase sempre malévola, sofreu os malefícios dos poderes paralelos, das comissões do tipo anarquizante, tudo rematando na lassidão hierárquica, na disciplina precária, na responsabilidade individual dissolvida na irresponsabilidade dos grupos - vícios que permanecem.
***
No sector prisional...
No campo da saúde...
No Ministério da Educação e Ensino...
Na Comunicação Social...
As palavras do Primeiro-Ministro foram um longo rol dos latrocínios provocados no aparelho e no organismo da Nação pelo revolucionarismo que desabou sobre nós. Ao fim duma hora de desgraças, as pessoas, entreolhando-se atarantadas, perguntavam-se:
— Como é que isto foi possível? Quem é que é responsável? É este o destino livremente escolhido pela maioria dos portugueses? Isto é que é a democracia?
Isto foi possível, ante de mais nada, porque as Forças Armadas o consentiram e, na maioria dos casos, o perpetraram. Durante todo o processo revolucionário que nos conduziu até ao pego, poucas foram as vozes militares que, a tempo, protestaram. Enganados uns pelos outros (o testemunho de António de Spínola é insuspeito, os militares, no seu conjunto, negam-se a defender a Pátria, entregaram-se eufóricos à paixão carnavalesca do bota-abaixo — e destruíram-nos. Vitoriosos uns, vencidos outros — todos são responsáveis. Os civis devem ser acusados de ainda estarem vivos.
Os responsáveis são, portanto, antes de todos, os soldados que aí estão — e, depois, os políticos que os apaparicaram, e defraudaram, e exploraram a sua boa e má-fé, e os incitaram à tolice.
O que Mota Pinto alinhou na sua comunicação não é apenas a consequência da inépcia, da estupidez e da irresponsabilidade duns tantos — foi também causado pela desonestidade consciente da maioria.
Quando é que se justiciam os responsáveis? No preciso momento em que Vasco Gonçalves e Rosa Coutinho são absolvidos do crime de abuso da autoridade, dissolvida a sua responsabilidade individual na irresponsabilidade dos grupos — que autoridade moral tem o chefe do executivo para fazer as suas tão graves acusações? No preciso momento em que o Partido Comunista, soerguendo a cabeça, procura ensaiar novas formas de luta para destruir de vez o aparelho do Estado — como pode o Primeiro-Ministro, que tem a faca e o queijo na mão, protestar contra a agitação larvar que lhe ilaqueia a governação?
Não nos parece legítimo que uma personalidade na posição do prof. Mota Pinto, fazendo diagnóstico duma situação e podendo agir — não tenha agido. Não nos parece legítimo que, impedido de o fazer, se não demita.
As coisas são como são. Sabe o prof. Mota Pinto exactamente quem são os responsáveis — porque é que em nome do povo, os não processa, ou prende preventivamente? Porque a lei não lho permite? Pois então, não se queixe — e cumpra a lei. Se a irresponsabilidade política está, neste desgraçado país, coberta pela lei, não tem o ilustre jurista o direito de vir queixar-se desta maneira diante da Nação estarrecida.
Muito mais do que um acto de coragem a comunicação de Mota Pinto pareceu-nos um grito de impotência, o princípio do seu fim, o começo da guerra de guerrilha que, derrotando-o inevitavelmente, os partidos vão conduzir contra o seu governo.
Como poderão aceitar o P.C. e o P.S., principais beneficiários da corrupção e do nepotismo que paralisa, diminui a máquina estatal, que Mota Pinto comece o saneamento inevitável, desempregando a massa imensa dos clientes, enconchada na administração e nas empresas públicas? Como vai Mota Pinto passar este cabo das tormentas quando a lei cobre os partidos — e o Presidente da República se confessa simplesmente um maquinal cumpridor da lei?
É isto a democracia? A democracia é o regime que permite isto? Pois se é — nós somos contra. Não é possível continuarmos em nome desta falsa democracia. Não é possível continuarmos impassíveis e ver a Pátria destruída em nome desta falsa democracia. Não é possível escutar o Primeiro-Ministro descrever inconsequentemente a nossa desgraça. Caminhamos rapidamente para o abismo — e nem sequer podemos chamar a polícia. O mais pequeno gesto, o mais pequeno protesto contra a lei iníqua — pode levar-nos à prisão. Agora mesmo, quando o leitor pega neste jornal — estamos nós sentados no banco dos réus por termos dito muito menos do que disse na segunda-feira passada o Primeiro-Ministro.
Num país onde a lei não concorda com a Justiça — democracia acabou. A jeremíada do prof. Mota Pinto, não é pura demagogia — como pretende o Partido Comunista — tem que ser o princípio duro duma acção renovada. Permite-lho a lei? A ver vamos. Já agora, ajuntam-se os partidos para condenarem Mota Pinto. A sua vitória seria a derrota deles. Partindo em guerra perdida contra o sistema que o sustenta, o Primeiro-Ministro limitou-se a proclamar a sua própria e a nossa impotência.
Manuel Maria Múrias
(In A Rua, n.º 137, pág. 3, 25.01.1979)
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— Estamos de tanga... O país está perdido por muitos anos e bons...
Não se escusou o Chefe do Governo de nos explicar porquê. Durante os últimos quatro anos os vários ministérios que se apossaram do Terreiro do Paço delapidaram alegremente o tesouro público; desde Vasco Vieira de Almeida a Medina Carreira, passando por Silva Lopes e por Salgado Zenha, não houve um financeiro em qualquer dos elencos ministeriais; em vez de se fazer administração, fez-se demagogia; em vez de se satisfazerem as necessidades mínimas da comunidade nacional, satisfizeram-se apenas os interesses sectários dos ajuntamentos partidários.
O IV Governo Constitucional encontrou uma situação económica e financeira muito degradada — disse o Primeiro-Ministro. E exemplificou: — o défice do sector público em 1978, incluindo as empresas do Estado, não será inferior a 95 milhões de contos: — os portugueses de hoje exploram miseravelmente os portugueses de amanhã.
Disse mais:
Na vida administrativa do Estado (...) deparamos com excesso manifesto e generalizado de pessoal (...) — por vezes sem outra explicação aparente que não seja a satisfação de compadrios e clientelas ou a cedência perante reivindicações irrealistas.
Acrescentou:
A dívida externa portuguesa, onde se espelham desvarios, inconsequêncis e demagogia de todos os conhecidos, e a insuficiência das providências mais recentes, aproximou-se no fim de 1978 dos 250 milhões de contos, que naturalmente exigem pagamento anual de juros correspondentes.
Outrossim afirmou:
A grande maioria das empresas públicas apresenta uma situação altamente deficitária em grande medida por falta de eficiência.
Desmentindo recentes declarações de Mário Soares, mentiroso relapso e contumaz, Mota Pinto continuou:
O atraso encontrado nas múltiplas tarefas preparatórias de adesão ao Mercado Comum Europeu excedeu todas as previsões.
(...) o aparelho administrativo em geral funciona de forma insatisfatória e, relativamente a alguns serviços, só com boa vontade se pode dizer que funcionam. A administração pública sofreu em cheio o embate da demagogia, algumas vezes insensata, quase sempre malévola, sofreu os malefícios dos poderes paralelos, das comissões do tipo anarquizante, tudo rematando na lassidão hierárquica, na disciplina precária, na responsabilidade individual dissolvida na irresponsabilidade dos grupos - vícios que permanecem.
***
No sector prisional...
No campo da saúde...
No Ministério da Educação e Ensino...
Na Comunicação Social...
As palavras do Primeiro-Ministro foram um longo rol dos latrocínios provocados no aparelho e no organismo da Nação pelo revolucionarismo que desabou sobre nós. Ao fim duma hora de desgraças, as pessoas, entreolhando-se atarantadas, perguntavam-se:
— Como é que isto foi possível? Quem é que é responsável? É este o destino livremente escolhido pela maioria dos portugueses? Isto é que é a democracia?
Isto foi possível, ante de mais nada, porque as Forças Armadas o consentiram e, na maioria dos casos, o perpetraram. Durante todo o processo revolucionário que nos conduziu até ao pego, poucas foram as vozes militares que, a tempo, protestaram. Enganados uns pelos outros (o testemunho de António de Spínola é insuspeito, os militares, no seu conjunto, negam-se a defender a Pátria, entregaram-se eufóricos à paixão carnavalesca do bota-abaixo — e destruíram-nos. Vitoriosos uns, vencidos outros — todos são responsáveis. Os civis devem ser acusados de ainda estarem vivos.
Os responsáveis são, portanto, antes de todos, os soldados que aí estão — e, depois, os políticos que os apaparicaram, e defraudaram, e exploraram a sua boa e má-fé, e os incitaram à tolice.
O que Mota Pinto alinhou na sua comunicação não é apenas a consequência da inépcia, da estupidez e da irresponsabilidade duns tantos — foi também causado pela desonestidade consciente da maioria.
Quando é que se justiciam os responsáveis? No preciso momento em que Vasco Gonçalves e Rosa Coutinho são absolvidos do crime de abuso da autoridade, dissolvida a sua responsabilidade individual na irresponsabilidade dos grupos — que autoridade moral tem o chefe do executivo para fazer as suas tão graves acusações? No preciso momento em que o Partido Comunista, soerguendo a cabeça, procura ensaiar novas formas de luta para destruir de vez o aparelho do Estado — como pode o Primeiro-Ministro, que tem a faca e o queijo na mão, protestar contra a agitação larvar que lhe ilaqueia a governação?
Não nos parece legítimo que uma personalidade na posição do prof. Mota Pinto, fazendo diagnóstico duma situação e podendo agir — não tenha agido. Não nos parece legítimo que, impedido de o fazer, se não demita.
As coisas são como são. Sabe o prof. Mota Pinto exactamente quem são os responsáveis — porque é que em nome do povo, os não processa, ou prende preventivamente? Porque a lei não lho permite? Pois então, não se queixe — e cumpra a lei. Se a irresponsabilidade política está, neste desgraçado país, coberta pela lei, não tem o ilustre jurista o direito de vir queixar-se desta maneira diante da Nação estarrecida.
Muito mais do que um acto de coragem a comunicação de Mota Pinto pareceu-nos um grito de impotência, o princípio do seu fim, o começo da guerra de guerrilha que, derrotando-o inevitavelmente, os partidos vão conduzir contra o seu governo.
Como poderão aceitar o P.C. e o P.S., principais beneficiários da corrupção e do nepotismo que paralisa, diminui a máquina estatal, que Mota Pinto comece o saneamento inevitável, desempregando a massa imensa dos clientes, enconchada na administração e nas empresas públicas? Como vai Mota Pinto passar este cabo das tormentas quando a lei cobre os partidos — e o Presidente da República se confessa simplesmente um maquinal cumpridor da lei?
É isto a democracia? A democracia é o regime que permite isto? Pois se é — nós somos contra. Não é possível continuarmos em nome desta falsa democracia. Não é possível continuarmos impassíveis e ver a Pátria destruída em nome desta falsa democracia. Não é possível escutar o Primeiro-Ministro descrever inconsequentemente a nossa desgraça. Caminhamos rapidamente para o abismo — e nem sequer podemos chamar a polícia. O mais pequeno gesto, o mais pequeno protesto contra a lei iníqua — pode levar-nos à prisão. Agora mesmo, quando o leitor pega neste jornal — estamos nós sentados no banco dos réus por termos dito muito menos do que disse na segunda-feira passada o Primeiro-Ministro.
Num país onde a lei não concorda com a Justiça — democracia acabou. A jeremíada do prof. Mota Pinto, não é pura demagogia — como pretende o Partido Comunista — tem que ser o princípio duro duma acção renovada. Permite-lho a lei? A ver vamos. Já agora, ajuntam-se os partidos para condenarem Mota Pinto. A sua vitória seria a derrota deles. Partindo em guerra perdida contra o sistema que o sustenta, o Primeiro-Ministro limitou-se a proclamar a sua própria e a nossa impotência.
Manuel Maria Múrias
(In A Rua, n.º 137, pág. 3, 25.01.1979)
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